31.1.19

Antonio Cicero: "Alguns versos"




Alguns versos

As letras brancas de alguns versos me espreitam,
em pé, do fundo azul de uma tela, atrás
da qual luz natural adentra a janela
por onde, ao levantar quase nada o olhar,
vejo o sol aberto amarelar as folhas
da acácia em alvoroço: Marcelo está
para chegar. E de repente, de fora
do presente, pareço apenas lembrar
disso tudo como de algo que não há de
retornar jamais e em lágrimas exulto
de sentir falta justamente da tarde
que me banha e escorre rumo ao mar sem margens
de cujo fundo veio para ser mundo
e se acendeu feito um fósforo, e é tarde.




CICERO, Antonio. "Alguns versos". In:_____. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002.

29.1.19

William Shakespeare: "Sonnet 18" / "Soneto 18": trad. de Geraldo Carneiro



Soneto 18

Te comparar com um dia de verão?
Tu és mais temperada e adorável.
Vento balança em maio a flor-botão
E o império do verão não é durável.
O sol às vezes brilha com rigor,
Ou sua tez dourada é mais escura;
Toda beleza enfim perde o esplendor,
Por acaso ou descaso da Natura;
Mas teu verão nunca se apagará,
Perdendo a posse da beleza tua,
Nem a morte rirá por te ofuscar,
Se em versos imortais te perpetuas.
    Enquanto alguém respire e veja e viva,
    Viva este poema, e nele sobrevivas.





Sonnet 18

Shall I compare thee to a summer’s day?
Thou art more lovely and more temperate:
Rough winds do shake the darling buds of May,
And summer’s lease hath all too short a date:
Sometime too hot the eye of heaven shines,
And often is his gold complexion dimmed,
And every fair from fair sometime declines,
By chance, or nature’s changing course untrimmed:
But thy eternal summer shall not fade,
Nor lose possession of that fair thou ow’st,
Nor shall death brag thou wand’rest in his shade,
When in eternal lines to time thou grow’st,
    So long as men can breathe or eyes can see,
    So long lives this, and this gives life to thee.







SHAKESPEARE, William. "Sonnet 18" / "Soneto 18". In:_____. O discurso do amor rasgado. Poemas, cenas e fragmentos de William Shakespeare. Trad. de Geraldo Carneiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

27.1.19

Eugénio de Andrade: "Canção breve"



Canção breve

Tudo me prende à terra onde me dei:
o rio subitamente adolescente,
a luz tropeçando nas esquinas,
as areias onde ardi impaciente.

Tudo me prende do mesmo triste amor
que há em saber que a vida pouco dura,
e nela ponho a esperança ou o calor
de uns dedos com restos de ternura.

Dizem que há outros céus e outras luas
e outros olhos densos de alegria,
mas eu sou destas casas, destas ruas,
deste amor a escorrer melancolia.




ANDRADE, Eugénio de. "Canção breve". In:_____. Primeiros poemas; As mãos e os frutos; Os amantes sem dinheiro. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2006.

26.1.19

Heinrich Heine: "Die Fräulein stand am Meere" / "Uma garota, lá na praia": trad. de André Vallias



Uma garota, lá na praia,
Acompanhando o pôr do sol,
Com olhos rasos d’água solta
Suspiros fundos e alguns ais.

Ora, garota, paciência!
É sempre a mesma velha história:
Agora o astro sai de cena –
De manhãzinha, está de volta.





Das Fräulein stand am Meere
Und seufzte lang und bang,
Es rührte sie so sehre
Der Sonnenuntergang.

Mein Fräulein! seyn Sie munter,
Das ist ein altes Stück;
Hier vorne geht sie unter
Und kehrt von hinten zurück.




HEINE, Heinrich. "Die Fräulein stand am Meere" / "Uma garota, lá na praia". In:_____. Heine, heim? Poeta dos contrários. Org. e trad. por André Vallias. São Paulo: Perspectiva, 2011. 

24.1.19

Nelson Ascher: "Exegi monumentum"



Exegi monumentum

Ergui pra mim, mais alto
que o Empire State Building, menos
biodegradável mesmo
que o urânio, um monumento

que, à chuva ácida ileso
e imune à inversão térmica,
não tem turnover nem
sairá de moda nunca.

Não morrerei de todo:
cinqüenta ou mais por cento
de meu ego hão de incólumes
furtar-se à obsolescência

programada e hei de estar
no Quem É Quem enquanto
Hollywood dê seus Oscars
anuais ou supermodels

desfilem mudas pelas
mil e uma passarelas.
Onde transborda infecto
nosso Tietê, nas várzeas

garoentas sempre cujos
quatrocentões votavam
antanho em Jânio Quadros,
lembrar-se-ão de que fui

quem adaptou primeiro
em Sampa, ao berimbau
tropicalista, Horácio.
Credita-me tais méritos

e põe durante este ano
fiscal, Academia
Sueca, em minha conta
a grana do Nobel.




ASCHER, Nelson. "Exegi monumentum". In:_____. Parte alguma. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

21.1.19

Adriano Nunes: "Fluir"



Agradeço ao poeta Adriano Nunes por me ter dedicado o seguinte belo ensaio:




Fluir – para Antonio Cicero
Quando tocamos na palavra “rio”, parece vir, de imediato, a imagem de Heráclito de Éfeso (Ἡράκλειτος;  540-475 a.C.). Pois bem: em nossa língua, a portuguesa, a palavra “rio” vem do latim vulgar rius, do latim rīvus ("riacho, pequeno riacho"). Em espanhol também temos “río” e na língua francesa, encontramos, por sua vez, “rivière”. No antigo francês, havia a palavra “ru” pronunciada /ʁy/(ri, onde o “i” é fechado e tem pronúncia símile à letra ü alemã), também significando “pequeno riacho”. Nem no português nem no espanhol, temos alguma palavra que se assemelhe a “fluxo”, para definir e significar “rio”, o que definiria intrinsecamente melhor o que um rio é.
Na língua francesa, “rio” é usualmente e mais comumente designado por “rivière” cuja base etimológica também é a latina rius. “Rivière” também existe na língua inglesa, porém não significa “rio”, mas sim um colar de diamantes ou outras pedras preciosas. Todavia, a língua de Baudelaire apresenta uma palavra, que tem um uso menos comum, chamada “fleuve” (rio) originada, por sua vez, do latim “fluvius”. Lembrem-se de que, no latim clássico, a letra “v” é pronunciada como “u”, assim, a palavra soa “fluius”.
Vejam agora que interessante: dizem que a língua alemã é a língua da filosofia por sua capacidade de expressão máxima com as palavras, para dar sentido e significado às coisas. Não é que “rio”, em alemão, é “Fluss”, palavra que vem do antigo alemão “fluz” e que já chegou a ser Fluß (ortografia pré-1996)! Ainda, em alemão, podemos encontrar a palavra “Strom” que significa córrego (rio pequeno), corrente, corrente elétrica; eletricidade. Paremos, um pouco, aqui, para não cairmos em um labirinto etimológico aparentemente sem fim!
Essas derivações foram expostas para que percebamos as semelhanças linguísticas a fim de chegarmos a Heráclito, especificamente a alguns fragmentos, como o Fragmento 12. Neste fragmento, o filósofo grego diz “ποταμοῖσι τοῖσιν αὐτοῖσιν ἐμβαίνουσιν ἕτερα καὶ ἕτερα ὕδατα ἐπιρρεῖ” (sobre aqueles que entram nos mesmos rios, sempre diferentes águas fluem). No Fragmento 49a, há: ποταµοῖς τοῖς αὐτοῖς ἐµϐαίνοµέν τε καὶ οὐκ ἐµϐαίνοµεν, εἶµέν τε καὶ οὐκ εἶµέν (entramos e não entramos nos mesmos rios, somos e não somos). E, por fim, o Fragmento 91: “ποταμῷ γὰρ οὐκ ἔστιν εμβῆναι δὶς τῷ αὐτῷ καθ' Ἡράκλειτον οὐδὲ θνητῆς οὐσίας δὶς ἅψασθαι κατὰ ἕξιν <τῆς αὐτῆς>· ἀλλ' ὀξύτητι καὶ τάχει μεταβολῆς] σκίδνησι καὶ πάλιν συνάγει [(μᾶλλον δὲ οὐδὲ πάλιν οὐδ' ὕστερον, ἀλλ' ἅμα)] συνίσταται καὶ ἀπολείπει καὶ πρόσεισι καὶ ἄπεισι” (Em um mesmo rio não se pode entrar duas vezes, de acordo com Heráclito, nem é possível tocar substância mortal duas vezes no que diz respeito ao seu estado. Mas, graças à rapidez e à força da mudança, dispersa-se e reúne-se outra vez, (ou melhor, une-se e passa nem novamente nem depois, mas simultaneamente) constitui-se e dissolve-se, aproxima-se e segue.).
O que notamos é a relação íntima entre “fluir” e “rio”, por isso, em alemão, a palavra “Fluss” parece atender melhor ao significado de “rio” do que as palavras das línguas de origem latina. Com o latim isso não pode ser atestado, já que há a palavra fluvius que também se significa “rio”. E com o grego antigo, que se pode afirmar? Na língua de Homero, “rio” é “ποταμός”, por isso temos em nossa língua “hipopótamo” (cavalo do rio), entre outras palavras. A sua etimologia é mesmo incerta. Mais comumente tenta-se explicá-la como relacionada a πῑ́πτω (cair). Poderia também ser relacionada a πετάννῡμι (expandir), o que a tornaria idêntica ao proto-germânico faþmaz (“abraçar”). Notem como os rios se expandem e abraçam o mar! A palavra πετάννῡμι (expandir) vem do proto-indo-europeu peth-. Alguns cognatos incluem fæm (do inglês antigo) e do latim “pateō”, “patulus”. Notem agora uma semelhança interessante: a palavra latina “patulus” é um adjetivo cujo significado original compreendia “aberto”, “bem aberto”, “escancarado”, ”espalhado, “estendido”. “Patulus” tem proximidade com “ποταμός”, (/po.ta.mós/).
O poeta e filósofo Antonio Cicero, em seu ensaio "Que é a poesia?" publicado na "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no dia 4 de outubro de 2008, ao analisar o poema "O Rio", de Manuel Bandeira, diz, brilhantemente, que “desde o título, "O Rio", torna-se inevitável pensar no famoso rio do filósofo grego Heráclito, em que não é possível pisar duas vezes. O primeiro verso reforça essa impressão: "Ser como o rio"... Mas a sentença de Heráclito – aparte certas interpretações recherchées – enfatiza o mobilismo universal, o fato de que coisa nenhuma jamais permanece a mesma. O rio de Bandeira, ao contrário, é em primeiro lugar a própria imagem da constância e até de um certo estoicismo: "Ser como o rio que deflui/ Silencioso dentro da noite./ Não temer as trevas da noite"”
Assim tudo flui e, em poesia, essa fluidez pode mesmo parecer e ser estática, num paradoxo que faz com que a poesia, enquanto arte, seja, nos moldes kantianos, uma finalidade sem fim e destituída de quaisquer interesses. Se pensarmos então que tudo muda e que as mudanças podem, de algum modo, ser necessárias ou urgentes, não poderemos esquecer os belos versos de Camões que parecem ser uma grande filosofia: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,/Muda-se o ser, muda-se a confiança;/Todo o mundo é composto de mudança,”. Ora, mas Camões emprega justamente uma forma fixa, o soneto decassílabo, para tratar do tema da mudança!
Como esquecer também as linhas belas do Sermão do Mandato (1643), de Vieira, quando após defender que tudo muda e que “tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba”, conclui afirmando que “o amor perfeito, e que só merece o nome de amor, vive imortal sobre a esfera da mudança, e não chegam lá as jurisdições do tempo. Nem os anos o diminuem, nem os séculos o enfraquecem, nem as eternidades o cansam.”. Ainda que ele se refira a um amor metafísico, sobre-humano, não nos custa imaginar que o amor talvez fosse/seja a única coisa que escapasse/escape às jurisdições do tempo in totum, por isso tanto Cristo, ao proclamar o amor como o maior de tudo, quanto Immanuel Kant, ao afirmar categoricamente que a humanidade é um fim em si mesmo, talvez estivessem a dizer-nos o quanto é fundamental respeitar as diferenças e as igualdades, todas as pessoas, todas as mudanças.
E mais: não à-toa, Kant põe o tempo, em Kritik der reinen Vernunft como uma intuição pura, tratando-o em sua Estética Transcendental, pois estética em seu significado grego original quer dizer “sensação”. É preciso não só, portanto, o entendimento puro, mas também a intuição sensível para que as mudanças não só sejam percebidas como fenômenos, mas inteligivelmente compreendidas e explicadas. Deste modo, o sábio alemão afirma que “o tempo é uma representação necessária que constitui o fundamento de todas as intuições. Não se pode suprimir o próprio tempo em relação aos fenômenos em geral, embora se possam perfeitamente abstrair os fenômenos do tempo. O tempo é, pois, dado a priori. Somente nele é possível toda a realidade dos fenômenos.”.
Este percurso ensaístico finda com a possibilidade de novos momentos, porque, sendo um acontecimento, transcende e flui. Que rio ou mar poderiam ser mais imensos e ter tanta força com as suas águas do que a Poesia? Se para Kant, nada pode suprimir o tempo por ser uma condição necessária a priori, a poesia, astutamente, escapa às armadilhas do tempo, como grandeza supratemporal, pois não apenas pode engendrá-lo como excluí-lo das realidades fatuais.
Adriano Nunes

20.1.19

Jorge Luis Borges: "Blind Pew": trad. de Josely Vianna Baptista



Blind Pew

Longe do mar e da formosa guerra,
que assim o amor todo o perdido louva,
o bucaneiro cego fatigava
os terrosos caminhos da Inglaterra.

Escorraçado pelos cães das granjas,
caçoada dos meninos do povoado,
dormia um enfermiço e gretado
sono no enegrecido pó das sanjas.

Sabia que em remotas praias de ouro
era seu um recôndito tesouro
e isso serenava sua adversa sorte;

a ti também, em outras praias de ouro,
te aguarda incorruptível teu tesouro:
a vasta e vaga e necessária morte.




Blind Pew

Lejos del mar y de la hermosa guerra, 
que así el amor lo que ha perdido alaba, 
el bucanero ciego fatigaba 
los terrosos caminos de Inglaterra.

Ladrado por los perros de las granjas, 
pifia de los muchachos del poblado, 
dormía un achacoso y agrietado 
sueño en el negro polvo de las zanjas.

Sabía que en remotas playas de oro 
era suyo un recóndito tesoro 
y esto aliviaba su contraria suerte;

a ti también, en otras playas de oro, 
te aguarda incorruptible tu tesoro: 
la vasta y vaga y necesaria muerte.





BORGES, Jorge Luis. "Blind Pew". In:_____. O fazedor. Trad. de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008



18.1.19

Antonio Cicero: "Oráculo"




Oráculo


Vai e diz ao rei:

Cai a casa magnífica,

O santuário de Apolo;

Fenece o louro sagrado;

A voz da vidente emudece;

As fontes murmurantes se calam para sempre.



Diz adeus adeus.

Tudo erra, tanto

A terra vagabunda quanto

Tu, planetário.

Criança e rei,

Delira e ri:

Meu sepulcro não será tua masmorra.

Alimenta teu espírito também com meu cadáver,

Pisa sobre estas esplêndidas ruínas e,

Se não há caminhos,

Voa.

Voa ri delira

Nessa viagem sem retorno ou fim.







CICERO, Antonio. "Oráculo". In:_____. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1997.

15.1.19

Alex Varella: "Ela é de Alexandria" e "O pombo flâneur"



Ela é de Alexandria

A luz negra de seu corpo ilumina todo o porto.
Ela é de Alexandria, da baía de Alexandria.
Eu venho de Sírias,
pelo Egito, por Jônia,
por Creta,
pela Grécia.
Em meu corpo corre o sangue do mar.




O pombo flâneur

Todo pombo é flâneur, mas o carioca ainda mais.
Conta Paulo Mendes Campos que era verão,
e dois deles tinham marcado um encontro,
às cinco azul em ponto,
nos céus do Rio de Janeiro.
Os tradicionais relógios da Mesbla e da Central marcavam a hora,
mas não marcavam o tempo,
(nenhum relógio marca o tempo).
Atravessando a cidade num fio de luz,
a vista ardendo de azul,
aquele pombo se atrasou
e, arrulhando,
em uma sentença se explicou:
“-- Desculpe , meu amor,
mas o dia estava tão bonito que eu vim andando;
eu tinha de vir andando!”




VARELLA, Alex. "Ela é de Alexandria" e "O pombo flâneur".

13.1.19

Salgado Maranhão: "Refrão secreto"



Refrão secreto

Aqui,
a carne aberta
aos relâmpagos
                         (ante as estalagens
de edificações do ser).

Palavras que cicatrizam
granito; palavras
que viralizam o tempo
                                   que se alcova
com os larápios.

Há que se varrer
a memória a serrote;

há que se brotar
com as enchentes.

Tudo é o mesmo
estar-se
            em sonho
e substância:

nos córregos que atravessam
as uvas; no desejo
esticado ao deserto.

Se eu pudesse inserir
a galáxia em meu peito,
seria só o refrão
                         de um coração
que late —;

entre paixões ferinas
e revólveres de chocolate.





MARANHÃO, Salgado. "Refrão secreto". In:_____. A sagração dos lobos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017.

11.1.19

Jorge Fernandes da Silveira: "Samira no miradouro"



SAMIRA NO MIRADOURO

mais pesada fosse a
pedra
sobre
as minas de prata
o ouro do dia
o vento desfazia a tarde em
nuvem
de fitas

Margarida
ao me curvar
para colher da
cova a
palma caída
me deu a sua mão
e

sabíamos
se de mármore
talhada mais
bela não seria
Samira
ó pedra
no miradouro
a fitar o
infinito
encantado de
vê-la


15 de agosto de 1994





SILVEIRA, Jorge Fernandes da. “Samira no miradouro”. In:_____. Memorial de Jorge da Silveira: a poor boy from nichtheroy. Rio de Janeiro: Desalinho, 2018.

9.1.19

Alphonsus de Guimaraens Filho: "Soneto dos quarenta anos"



Soneto dos quarenta anos

Não me ficou da vida mágoa alguma
de que possa lembrar aos quarenta anos
senão esses cansados desenganos
que o mar que trouxe leva como espuma.

Foram-se os anos, mas que são os anos?
Chama que em sombra esfaz-se, apenas bruma.
As horas que eu vivi, de uma em uma,
deixaram sonhos e deixaram danos.

Muita morte passou n'alma ferida:
meu pai e meus irmãos, mortos amados.
Mas pela minha vida passou vida,

passou amor também, passou carinho.
E pelos dias claros ou magoados
não fui feliz e nem sofri sozinho.




GUIMARÃES FILHO, Alphonsus de. "Soneto dos quarenta anos". In: Suplemento Literário de Minas Gerais. Belo Horizonte, Maio de 2018.

7.1.19

Alain Bosquet: "Le mot par le mot" / "Do verbo o verbo...": trad. por Mário Laranjeira



Do verbo o verbo...

É o poema em mim que escreve o meu poema,
do verbo o verbo se origina.
Ele é meu ocupante; e nem sei se me ama.
Quer a poesia, essa inquilina,

meu espaço vital gerir e, furibunda,
ralha: quem sabe estou errado.
Há de absolver-me um dia; em sua porção mais funda,
eu lhe preparo um melhor fado.

Faremos par feliz; há de a minha alegria 
vencer-lhe toda inquietação.
Os trêmulos detesta; a mim não cederia 
emprego algum: a narração,

nem a trama, ou a letra, ou mesmo a melodia, 
pois tudo quer decidir logo.
Meu cérebro retrai-se e a minha razào fria 
Não vale um dado posto em jogo.

Sou para o meu poema esqueleto ilusório;
numa mortalha ia melhor.
Ele é adulto, pode ser o promontório,
a ave, o azul e a tília em flor.

Nada mais a dizer, poeta; quieto assim
sonhando com sonhar eu vou.
Em si mesmo se pensa o poema, sem mim;
luxúria de que me privou.





Le mot par le mot

C'est le poème en moi qui écrit mon poème ;
Le mot par le mont engendré.
Il est mon occupant ; je ne sais pas s'il m'aime.
Mon locataire veut gérer

Mon espace vital et, de plus, il me gronde : 
peut-être suis-je dans mon tort. 
Il m'absoudra un jour ; en ses couches profondes, 
je lui prépare un meilleur sort.

Nous formerons un couple heureux ; mon allégresse 
aura raison de ses soucis. 
Il a horreur des trémolos ; il ne me laisse 
aucun emploi : ni le récit,

ni le déroulement, ni l'air, ni la musique
car il prétend tout décider. 
Mon cerveau se rétracte et ma pauvre logique 
vaut moins, dit-il, qu'un coup de dé.

Je suis pour mon poème un squelette inutile, 
qui ferait mieux dans un linceul. 
Il est adulte, il peut devenir la presqu'île, 
l'oiseau, l'azur et le tilleul.

Je n'ai plus rien à dire, Ô poète : en silence 
je rêve au défi de rêver. 
Mon poème sans moi en soi-même se pense, 
luxure dont il m'a privé.





BOSQUET, Alain. "Le mot par le mot" / "Do verbo o verbo...". In: LARANJEIRA, Mário (seleção, org. e trad.) Poetas de França hoje (1945-1995). São Paulo: EDUSP, 1996. 

5.1.19

Ferreira Gullar: "Visita"



Visita

no dia de
finados ele foi
ao cemitério
porque era o único
lugar do mundo onde
podia estar
perto do filho mas
diante daquele
bloco negro
de pedra
impenetrável
entendeu
que nunca mais
poderia alcançá-lo

Então
apanhou do chão um
pedaço amarrotado
de papel escreveu
eu te amo filho
pôs em cima do
mármore sob uma
flor
e saiu
soluçando





GULLAR, Ferreira. "Visita". In:_____. "Muitas vozes". In:_____. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.

3.1.19

P.B. Shelley: "Time" / "Tempo": trad. por Adriano Scandolara



O tempo

Ó insondável Mar! marulho de anos,
      Tempo em cujos pelágios fundas mágoas
Salmouram só do pranto dos humanos!
      Maré sem margens, sob as vossas águas
Podeis os fins do ser mortal tocar
      E, nauseado, a uivar, pedindo mais,
Em suas margens vis os restos vomitais;
Pérfido na bonança, atroz na fúria,
   Quem vai vos desbravar,
   Ó insondável Mar?




Time

Unfathomable Sea! whose waves are years,
      Ocean of Time, whose waters of deep woe
Are brackish with the salt of human tears!
      Thou shoreless flood, which in thy ebb and flow
Claspest the limits of mortality!
      And sick of prey, yet howling on for more,
Vomitest thy wrecks on its inhospitable shore;
      Treacherous in calm, and terrible in storm,
         Who shall put forth on thee,
         Unfathomable Sea?





SHELLEY, Percy B. “Time” / “O tempo”. In:_____. Prometeu desacorrentado e outros poemas. Trad. por Adriano Scandolara. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

1.1.19

M.D. Magno: "The sun of a beach"



The sun of a beach

Purgando os recalcantes batistérios,
pudesse a inteligência mais arguta,
frente ao grave prestígio do “mistério”,
se outorgar claridade absoluta.

Só há o Haver (e não-Haver não há)
sem mínimo “mistério” que o garanta
– só isto tentariam concertar
as demandas daquele que se espanta...

Contudo, nada vale, mesmo o Nada
da radical Indiferença posta,
em caução de conforto à nossa estada.

Nenhum Bem, nenhum Mal, nos salvarão;
nem os ouros da vida, nem a bosta.
O jeito é dizer Sim – mesmo se Não.




MAGNO, M.D. “The sun of a beach”. In:_____. “S’obras (1982-1999)”. In:_____. Literadura. Rio de Janeiro: Novamente, 2018.