30.6.15

Carlos Drummond de Andrade: "Conclusão"




Conclusão

Os impactos de amor não são poesia
(tentaram ser: aspiração noturna).
A memória infantil e o outono pobre
vazam no verso de nossa urna diurna.

Que é poesia, o belo? Não é poesia,
e o que não é poesia não tem fala.
Nem o mistério em si nem velhos nomes
poesia são: coxa, fúria, cabala.

Então, desanimamos. Adeus, tudo!
A mala pronta, o corpo desprendido,
resta a alegria de estar só, e mudo.

De que se formam nossos poemas? Onde?
Que sonho envenenado lhes responde,
se o poeta é um ressentido, e o mais são nuvens?



ANDRADE, Carlos Drummond de. "Conclusão" In:_____. "Fazendeiro do ar". In:_____. Poesia 1930-62: de 'Alguma poesia' a 'Lição de coisas'. Edição crítica preparada por Júlio Castañon Guimarães. São Paulo: Cosac Naify, 2012. 

28.6.15

Platão: Epigrama 78




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26.6.15

Waly Salomão: "Tarifa de embarque"




Sou sírio. O que é que te assombra, estrangeiro,
Se o mundo é a pátria em que todos vivemos,
Paridos pelo caos?"
- Meleagro de Gádara, 100 anos a.C.




"Tarifa de embarque"

Não te decepciones
ao pisares os pés no pó
que cobre a estrada real de Damasco.
Não descerres cortinas fantasmagóricas:
camadas de folheados
- água de flor de roseira
- água de flor de laranjeira –
que guloso engolias,
gravuras de aldeãs portando ânforas ou cântaros,
cartões do templo de Baal
e das ruínas do reino de Zanubia em Palmira,
fotos do Allepo, Latakia, Tartus, Arward
que em criança folheavas nas páginas da revista Oriente
na idade de ouro solitária e febril
por entre as pilhas de fardos de tecidos
da loja Samira;
arabescos, poços, atalaias, minaretes, muezins,
curvas caligrafias torravam teus cílios, tuas retinas
no vão afã de erigires uma fonte e origem e lugar ao sol
na moldura acanhada do mundo.
Síria nenhuma iguala a Síria
que guardas intacta na tua mente régia.
Nunca viste o narguilé de ouro que tua avó paterna
- Kadije Sabra Suleiman-
exibia e fumava e borbulhava nos dias festivos
da ilha de Arward.
Retire da tela teu imaginário inchado
de filho de imigrante
e sereno perambule e perambule desassossegado
e perambule agarrado e desgarrado perambule
e perambule e perambule e perambule.
Perambule
- eis o único dote que as fatalidades te oferecem.
Perambule
- as divindades te dotam deste único talento. 



SALOMÃO, Waly. "Tarifa de embarque". In:_____. "Tarifa de embarque". In:_____. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 


25.6.15

Mauro Santa Cecília: "Errância"




Errância

Eu me lembro de sair perto
da mão forte de meu pai
(era como um escudo).
Ele ia beber no pé-sujo
e eu ficava solto pela rua
brincando com o disco voador.
Lembro também de perguntar-lhe
qual carro era mais complicado
para dirigir. (Eu queria ser presidente
e dirigir o carro mais difícil.)
Lembro depois na festa do colégio, no dia
dos pais, que era o único a ficar com a mãe.
Foi quando abandonei a infância.
(Ninguém me pediu mas
preferi pôr o mundo nas costas.)
Só lembro de acordar criança de novo
por volta dos vinte e poucos anos.
E assim virei vagabundo, sur-
fista medíocre e ex-advogado.
Subi o morro da Mangueira
certa noite e quase morri
por não respeitar os protocolos
da bandidagem.
Mas gostei do espanto de andar
na corda bamba.
(E aprendi de vez que não havia
quem segurasse a minha mão.)
E aí para mim ficou claro
que nunca mais ia deixar de
ser criança nessa vida.



SANTA CECILIA, Mauro. "Errância". In: Errância. Rio de Janeiro: Megamíni, 2015.

23.6.15

Adriano Nunes: "Ars poetica"

Agradeço a Adriano Nunes por me ter dedicado o seguinte poema:



"Ars Poetica" - Para Antonio Cicero


Enquanto quebras a cabeça
Em busca dos ditames áureos da razão,
Aventura-se a vida a ser a mesma.
Mas eis que, subitamente, a ti vem
A quântica certeza
De que, ali, sobre a mesa, descansando,
Estáticos estão
Lápis e muitas folhas - o infinito em branco
A esperar por movimentos, lentos e rápidos,
Da tua afoita mão.
E, com prazer, escreves
Versos breves, sem medo
Das possibilidades da imaginação.
Misturas os metros mais rígidos
À liberdade do teu coração.
Guardas-te para o alegre momento
Da contemplação. Vês
Que vêm a palavra amada,
A ordem certa,
O sentido preciso,
Sobre os montes do olhar mais longe, 
Sobre as casas da Trácia,
Além-mar-do-amar-além,
Além do que sequer há,
Para o teu ser trazendo, 
Ilesos,
Domados,
O Tempo
E Pégaso.
Agora
Já podes
Voar,
Lançar-te
À sorte
Dos elos,
Beber 
Do álcool 
Mais forte
Da Arte.



NUNES, Adriano. "Ars poetica". No site: quefaçocomoquenãofaço. No URL: http://astripasdoverso.blogspot.com.br/. 22/06/2015. 




22.6.15

Armindo Rodrigues: "XVIII"




XVIII

Alado, o sol na água pousa
e dele treme a água amedrontada,
que a ardente imagem lhe devolve em rosa
e em si própria um distante sonho ousa
do céu amargo, que não sonha nada.




RODRIGUES, Armindo. "XVIII". In:_____. "Sabor do tempo". In:_____. Obra poética II. Lisboa: Sociedade de Expansão Cultural, 1970.

20.6.15

Alex Varella: "A invenção do nome" / Omar Salomão: "Nebula: A sombra das nuvens manchando a cidade

Imperdível: hoje, às 19h30, haverá, no Oi Futuro Ipanema, a inauguração das exposições de obras verbo-visuais de dois poetas: as de Alex Varella, intitulada "A invenção do nome" e a de Omar Salomão, intitulada "Nebula: A sombra das nuvens manchando a cidade".


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19.6.15

Martin Opitz: "Schönheit dieser Welt vergehet" / "Passa a beleza do mundo": trad. Geir Campos




Passa a beleza do mundo

Passa a beleza do mundo:
como o vento vagabundo,
como a flor que mal germina
e já por terra se inclina,
como a onda que vem ligeira
e dá a vaga à companheira...
Mas por que hei de assim glosar?
Mundo é vento e flor e mar.



Schönheit dieser Welt vergehet

Schönheit dieser Welt vergehet,
Wie ein Wind, der niemals stehet,
Wie die Blume, so kaum blüht
Und auch schon zur Erden sieht,
Wie die Welle, die erste kömmt
Und den Weg bald weiter nimmt.
Was für Urteil soll ich fallen?
Welt ist Wind, ist Blum und Wellen.



OPITZ, Martin. "Schönheit diser Welt vergehet". Trad. de Geir Campos. In: CAMPOS, Geir (org.). Antologia: O livro de ouro da poesia alemã (em alemão e português). Rio de Janeiro: Ediouro, s.d.

16.6.15

Erick Monteiro Moraes: "IX"




IX


A cabeça do poeta: noite
em miniatura — no interior
do ovo ainda inteiro e intacto
a noite elabora a gema,
poema à imagem do sol;

sob a casca em branco
a técnica do espanto
até que na temperatura exata
do ovo se evade
a forma áurea da ave.



MORAES, Erick Monteiro. "IX" In: site Humus humano. In URL http://www.humushumano.com/2015/06/ix.html.

13.6.15

Luiza Xavier: "Me Tarzan"



Me Tarzan

Ele se agarra
ao passado
como um macaco
num abraço
se atira
e vai de galho em galho

Ele se amarra
a qualquer
ideia do passado
como a um louco
em amarras

O presente
será sempre
o passado do presente
o presente do futuro
e o futuro do passado



XAVIER, Luiza. "Me Tarzan". In:_____. Caldas em compotas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014.

11.6.15

Emily Dickinson: "I'm nobody", 11 / "Não sou ninguém", 11: trad. Augusto de Campos




11

Não sou Ninguém! Quem é você?
Ninguém – Também?
Então somos um par?
Não conte! Podem espalhar!

Que triste – ser –  Alguém!
Que pública – a Fama –
Dizer seu nome – como a Rã –
Para as palmas da Lama!


11

I’m Nobody! Who are you?
Are you – Nobody – too?
Then there’s a pair of us!
Don’t tell! they’d advertise – you know!

How dreary – to be – Somebody!
How public – like a Frog –
To tell one’s name – the livelong June –
To an admiring Bog!




DICKINSON, Emily. Não sou ninguém. Poemas. Trad. de Augusto de Campos. Campinas: Unicamp, 2008.

9.6.15

Paulo Scott: "Papel suave"




Papel suave


se o destino é respirar
pode-se dizer então

que o estado inicial
é de afogamento

pés sem tornozelos
prontos para a revolução



SCOTT, Paulo. "Papel suave". In:_____. Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014

8.6.15

Antonio Cicero: artigos que complementam o de Alipio de Sousa Filho




Como complemento ao artigo do Alipio de Sousa Filho, "Parada gay de São Paulo capitula frente ao discurso conservador", que se encontra abaixo, chamo atenção para o fato de que já postei aqui mesmo alguns artigos que também se opõem ao tipo de discurso conservador a que Alipio se refere. Entre outros, destaco "Evolução e natureza" (em  http://antoniocicero.blogspot.com.br/2008/09/evoluo-e-natureza.html), de setembro de 2008, e "Sobre a lei contra a homofobia" (em http://antoniocicero.blogspot.com.br/2009/11/sobre-lei-contra-homofobia.html), de novembro de 2009. Este último se refere o projeto de lei PLC 122/2006, que os congressistas reacionários puseram no congelador. Esses dois artigos foram publicados originalmente na Folha de São Paulo.

Alipio de Sousa Filho: "Parada gay de São Paulo capitula frente ao discurso conservador"




Concordo com o seguinte artigo do professor Alipio de Sousa Filho, da UFRN, publicado por Carta Potiguar em 06/06/2015 e divulgado pelo IHU On-Line (www.ihu.unisinos.br). 



Parada gay de São Paulo capitula frente ao discurso conservador

Jogar para a esfera pública a ideia que a homossexualidade e os gêneros trans (e suas sexualidades) são de origem embrionária, que os indivíduos nascem sexuados e determinados em seus gêneros, é de uma total irresponsabilidade política e profundamente deseducativo quando se trata de pretender a emancipação cultural e política da sociedade brasileira.  Mais não é que uma vexatória capitulação diante do pensamento conservador e do discurso ideológico, que só admitem a existência de sexualidades e práticas de gênero dissidentes da ideologia da heterossexualidade obrigatória, denunciada pelo próprio ativismo gay, quando subordinadas à concepção que as definem como fenômenos cuja causa se situa no domínio do biológico, da genética, uma realidade embrionária ou por uma mistura de aspectos obscuros da zona do psicológico com o fisiobiológico.

Se é certo que boa parte de gays, lésbicas e trans, pelo próprio sofrimento da discriminação, procura argumentos convincentes para si próprios e para os demais à volta sobre as “causas” de sua sexualidade e práticas de gênero, isso deve ser entendido por eles como uma busca que resulta de uma problemática artificialmente imposta pelo discurso ideológico (discurso do preconceito, da discriminação e da sujeição) e, portanto, sem legitimidade, pois o mesmo não se impõe igualmente a heterossexuais. Afinal, como bem é sabido, não há, na ciência ou no discurso moral, qualquer pergunta sobre a “causa” da heterossexualidade, pois esta é presumida como natural, normal. O que tem servido apenas para negar que se trata de uma instituição social construída como qualquer outra no curso da história e em culturas particulares.

Se muitos gays, lésbicas e trans encontram no argumento do natural, do biológico, na ideia que “nasci assim, cresci assim” (como na canção da Gabriela) a “explicação” para algo tão singular (e social, cultural, histórico, político etc.) como as vivências da sexualidade, aí não está uma verdadeira explicação da gênese ou psicogênese das sexualidades e gêneros dissidentes da norma heterossexual hegemônica. Aí está aquilo que, numa paráfrase de Marx, poderíamos dizer como sendo “o sopro da criatura oprimida, a esperança daqueles que não têm esperança”: em Marx, a entrega à religião tout court, que o autor concebeu como a forma perfeita da ideologia, ao deslocar da história e da política a origem das instituições sociais e, para nosso assunto, sugiro como entrega à ideologia da explicação biológica, pela qual todos se salvam (ou procuram se salvar) da acusação de fazer suas próprias escolhas, mais ainda quando elas não são socialmente legitimadas. Certo, não se trata de qualquer escolha: não se trata de algo como escolher qual roupa vestir, mas ainda assim é uma escolha, opção, preferência de nosso ser e seu desejo por outro ser e o que este representa, pensamos o que pode satisfazer, realizar etc.

Depois de Freud, Foucault e Deleuze, falar de biologia do sexo ou do gênero (“nasci assim, cresci assim”) é voltar a cair em enganos obscurantistas. O ser humano não se orienta por instintos, direção biológica ou determinantes genéticas. O ser humano, por sua falta de especialização e direção biológicas, é um criador de instituições sociais. Ele é somente social e desejo, e boa parte desse desejo fundado no social que o governa. Quantas vezes mais vão ser necessárias repetir que sexo e gênero não são realidades biológicas mas construções culturais, sociais e históricas e, por isso mesmo, realidades inteiramente modificáveis, substituíveis, revogáveis?

Ora, o que é subversivo e revolucionário, no domínio das práticas erótico-sexuais e de gênero, é assumir que o que se deseja e faz é resultado de nossas escolhas, opções, preferências, que resultam em construções, nossas construções, e com todos os ingredientes culturais e sociais a nosso dispor. E que se danem todos os reacionários (e principalmente os cães de guarda da reação conservadora no Brasil, hoje: esses senhores e senhoras das igrejas e seitas evangélicas!), ao não admitirem a liberdade dos indivíduos ao decidirem por sua autonomia erótica e construções de gênero, construções muito particulares, pessoais!

Tola é a compreensão daqueles que optam por admitir que “nasceram gays ou trans” para se fazerem aceitos, como se estivessem a pedir licença para existir, uma vez que, tendo “nascido” não têm a “culpa” do que são, quando deveriam sair às ruas bradando a ilegitimidade das instituições sociais que tornaram a heterossexualidade a única forma legítima da sexualidade, uma pura invenção social, cultural e histórica, como demonstram inúmeros autores e estudos.

Como escreveu a filósofa estadunidense Judith Butler, a nossa atitude crítica deve ser essencialmente a decretação da ilegitimidade da realidade instituída, por seu caráter construído, arbitrário, contingente e revogável! Foda-se a ideia (ideológica, isto é, construída, imposta, hegemonizada) segundo a qual a heterossexualidade é a única modalidade natural do sexo humano e, portanto, a única legítima, admissível e institucionalizável! Ao invés de se buscar a “naturalização” da homossexualidade e do gênero trans, o que devemos procurar  é a revogação da heterossexualidade como instituição única, universal, eterna e imutável!

Quando gays, lésbicas e trans procuram sua segurança ontológica, sua tábua de salvação, na ideia que também são “naturais”, “filhos da pródiga natureza”, pela vã ideia que serão aceitos no “reino dos normais”, não sabem o que estão fazendo! Como se saíssem das páginas do Etienne La Boétie, consentem sua própria “servidão voluntária”, ao consentirem sua própria dominação pela sujeição à ideologia do “gay genético”, “gay biológico”, “trans desde o embrião”, sem qualquer sinal de resistência e crítica a discurso que, ao final, mantém a todos os LGBT na zona do diagnóstico e da patologização. Pois, “ser gay desde o embrião”, na domesticação conservadora e normalizadora, não mais é que uma certidão de nascimento do desvio sexual que atesta a “causa” da diversidade sexual que se faz questão de afirmar. Esta entendida não como uma conquista da liberdade dos indivíduos na afirmação de sua autonomia erótica, de desejo e de construções de gênero mas como mera manifestação das “espécies sexuais” inscritas no DNA animal-humano.

A Parada de São Paulo perde a oportunidade de politizar o debate sobre sexualidade e práticas de gênero, enfrentando o discurso ideológico e conservador como deve: afirmando o direito supremo das pessoas à sua autonomia erótica! E, para isso, não há “causa” biológica, embrionária, de nascimento. Ninguém nasce isso ou aquilo! Nascemos quando nasce o desejo! Nosso desejo é a nossa causa!

A luta LGBT é uma luta política e somente na arena política deve ser travada, sem concessões ao pensamento conservador, ao discurso ideológico e ao poder médico.

Não se nasce mulher, aprende-se a sê-lo, escreveu Simone de Beauvoir, para contestar a ideologia da “essência feminina” como algo natural nas mulheres. Temos que dizer à sociedade: não se nasce gay, lésbica ou trans, como na canção, “somos o que queremos ser”!

7.6.15

Nicolás Gómez Dávila: aforismos




O livro que não escandalize um pouco o especialista não tem razão de existir.

***

Grande artista é aquele que triunfa, seja qual for a teoria estética através da qual o contemplem.

***

Poucas ideias não empalidecem ante um olhar fixo.




DÁVILA, Nicolás Gómez. Sucesivos escolios a un texto implícito. Barcelona: Áltera, 2002.


4.6.15

Jorge Salomão: "algo se move"







































SALOMÃO, Jorge. "algo se move". In:_____. Mosaical. Rio de Janeiro: Gryphus, 1994.

2.6.15

Adriano Nunes: "A música e Israel"




A música e Israel


Certamente os raivosos de plantão e os que levantam bandeiras para tudo (sem nem saber por que as levantam!) devem estar-se questionando: qual das atitudes seria a pequena e mais mesquinha: cantar ou não cantar em Israel. Aqui, pelos ditames da razão, derrubo as bandeiras e dou vez à arte, respondendo: pequeno e mesquinho é deixar de cantar em qualquer lugar! Levar a música onde quer que se possa não é ato de compactuar com formas e sistemas de governo. Ou ações governamentais. A arte é uma finalidade sem fim. E, por ser sem fim, é que pode atender a todas as expectativas humanas, pois através da sua amplidão e beleza é capaz de mudar o mundo, tornando-o civilizado e melhor. Assim, a música, não só atinge os ouvidos, mas o coração. Arte panfletária impregnada de política não é arte. É manifesto. A arte é livre e sempre será. Agrada gregos, troianos, palestinos, israelitas, árabes, russos, todos, de algum modo. Canta-se em momentos de alegria ou de dor. Evitar cantar em qualquer lugar é tomar o lugar como inexistente. É negar a um povo a dignidade humana. Logo, pedir a plenos pulmões que Caetano Veloso e Gilberto Gil não cantem em Israel é alimentar a discórdia e tomar partido, numa situação que não pode ser medida sob o simples olhar da retaliação. Só os israelitas e palestinos sabem bem quem eles são. E porque agem dessa maneira uns com os outros. Se a paz ainda não veio, é porque ainda há muito que se fazer por ela. E uma das formas da paz surgir é evitar esses bloqueios e campanhas mesquinhos, tanto pra um lado como para o outro. O artista é um ser livre. Sua liberdade consiste justamente em conseguir amar as diferenças. Respeitá-las. Bálsamo será o canto dos baianos em Israel. Talvez, alcance até os palestinos. Ambos não estarão, ali, a dizer que apoiam guerra alguma, pois como diz belamente Gil em "A paz": "a paz invadiu o meu coração/ de repente me encheu de paz/como se o vento de um tufão/arrancasse os meus pés do chão/onde já não me enterro mais". Esse "não me enterro mais" denota que nós, seres humanos, somos de todos os lugares. E, por não pertencermos a um só lugar, não temos que levantar bandeira contra um lugar específico. Que Gil e Caetano cantem. E que seus cantos ecoem cosmo afora e anulem os pensamentos mesquinhos e repletos de ódio e retaliações. A arte é uma mistura humana inclassificável.


Adriano Nunes

Waly Salomão: "Hoje"





HOJE

                                para Chico Alvim


O que menos quero pro meu dia
polidez,boas maneiras.
Por certo,
                 um Professor de Etiquetas
não presenciou o ato em que fui concebido.
Quando nasci, nasci nu,
ignaro da colocação correta dos dois pontos,
do ponto e vírgula,
e, principalmente, das reticências.
(Como toda gente, aliás...)

Hoje só quero ritmo.
Ritmo no falado e no escrito.
Ritmo, veio-central da mina.
Ritmo, espinha-dorsal do corpo e da mente.
Ritmo na espiral da fala e do poema.

Não está prevista a emissão
de nenhuma “Ordem do dia”.
Está prescrito o protocolo da diplomacia.
AGITPROP – Agitação e propaganda:
Ritmo é o que mais quero pro meu dia-a-dia.
Ápice do ápice.

Alguém acha que ritmo jorra fácil,
pronto rebento do espontaneísmo?
Meu ritmo só é ritmo
quando temperado com ironia.
Respingos de modernidade tardia?
E os pingos d’água
dão saltos bruscos do cano da torneira
              e
passam de um ritmo regular
para uma turbulência
               aleatória.

Hoje...



SALOMÃO, Waly. "Hoje". In:_____. "Algaravias". In:_____. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.