Errância
Eu me lembro de sair perto
da mão forte de meu pai
(era como um escudo).
Ele ia beber no pé-sujo
e eu ficava solto pela rua
brincando com o disco voador.
Lembro também de perguntar-lhe
qual carro era mais complicado
para dirigir. (Eu queria ser presidente
e dirigir o carro mais difícil.)
Lembro depois na festa do colégio, no dia
dos pais, que era o único a ficar com a mãe.
Foi quando abandonei a infância.
(Ninguém me pediu mas
preferi pôr o mundo nas costas.)
Só lembro de acordar criança de novo
por volta dos vinte e poucos anos.
E assim virei vagabundo, sur-
fista medíocre e ex-advogado.
Subi o morro da Mangueira
certa noite e quase morri
por não respeitar os protocolos
da bandidagem.
Mas gostei do espanto de andar
na corda bamba.
(E aprendi de vez que não havia
quem segurasse a minha mão.)
E aí para mim ficou claro
que nunca mais ia deixar de
ser criança nessa vida.
SANTA CECILIA, Mauro. "Errância". In: Errância. Rio de Janeiro: Megamíni, 2015.
Um comentário:
O pai dentro de nós é mesmo inabandonável...
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