8.6.15

Alipio de Sousa Filho: "Parada gay de São Paulo capitula frente ao discurso conservador"




Concordo com o seguinte artigo do professor Alipio de Sousa Filho, da UFRN, publicado por Carta Potiguar em 06/06/2015 e divulgado pelo IHU On-Line (www.ihu.unisinos.br). 



Parada gay de São Paulo capitula frente ao discurso conservador

Jogar para a esfera pública a ideia que a homossexualidade e os gêneros trans (e suas sexualidades) são de origem embrionária, que os indivíduos nascem sexuados e determinados em seus gêneros, é de uma total irresponsabilidade política e profundamente deseducativo quando se trata de pretender a emancipação cultural e política da sociedade brasileira.  Mais não é que uma vexatória capitulação diante do pensamento conservador e do discurso ideológico, que só admitem a existência de sexualidades e práticas de gênero dissidentes da ideologia da heterossexualidade obrigatória, denunciada pelo próprio ativismo gay, quando subordinadas à concepção que as definem como fenômenos cuja causa se situa no domínio do biológico, da genética, uma realidade embrionária ou por uma mistura de aspectos obscuros da zona do psicológico com o fisiobiológico.

Se é certo que boa parte de gays, lésbicas e trans, pelo próprio sofrimento da discriminação, procura argumentos convincentes para si próprios e para os demais à volta sobre as “causas” de sua sexualidade e práticas de gênero, isso deve ser entendido por eles como uma busca que resulta de uma problemática artificialmente imposta pelo discurso ideológico (discurso do preconceito, da discriminação e da sujeição) e, portanto, sem legitimidade, pois o mesmo não se impõe igualmente a heterossexuais. Afinal, como bem é sabido, não há, na ciência ou no discurso moral, qualquer pergunta sobre a “causa” da heterossexualidade, pois esta é presumida como natural, normal. O que tem servido apenas para negar que se trata de uma instituição social construída como qualquer outra no curso da história e em culturas particulares.

Se muitos gays, lésbicas e trans encontram no argumento do natural, do biológico, na ideia que “nasci assim, cresci assim” (como na canção da Gabriela) a “explicação” para algo tão singular (e social, cultural, histórico, político etc.) como as vivências da sexualidade, aí não está uma verdadeira explicação da gênese ou psicogênese das sexualidades e gêneros dissidentes da norma heterossexual hegemônica. Aí está aquilo que, numa paráfrase de Marx, poderíamos dizer como sendo “o sopro da criatura oprimida, a esperança daqueles que não têm esperança”: em Marx, a entrega à religião tout court, que o autor concebeu como a forma perfeita da ideologia, ao deslocar da história e da política a origem das instituições sociais e, para nosso assunto, sugiro como entrega à ideologia da explicação biológica, pela qual todos se salvam (ou procuram se salvar) da acusação de fazer suas próprias escolhas, mais ainda quando elas não são socialmente legitimadas. Certo, não se trata de qualquer escolha: não se trata de algo como escolher qual roupa vestir, mas ainda assim é uma escolha, opção, preferência de nosso ser e seu desejo por outro ser e o que este representa, pensamos o que pode satisfazer, realizar etc.

Depois de Freud, Foucault e Deleuze, falar de biologia do sexo ou do gênero (“nasci assim, cresci assim”) é voltar a cair em enganos obscurantistas. O ser humano não se orienta por instintos, direção biológica ou determinantes genéticas. O ser humano, por sua falta de especialização e direção biológicas, é um criador de instituições sociais. Ele é somente social e desejo, e boa parte desse desejo fundado no social que o governa. Quantas vezes mais vão ser necessárias repetir que sexo e gênero não são realidades biológicas mas construções culturais, sociais e históricas e, por isso mesmo, realidades inteiramente modificáveis, substituíveis, revogáveis?

Ora, o que é subversivo e revolucionário, no domínio das práticas erótico-sexuais e de gênero, é assumir que o que se deseja e faz é resultado de nossas escolhas, opções, preferências, que resultam em construções, nossas construções, e com todos os ingredientes culturais e sociais a nosso dispor. E que se danem todos os reacionários (e principalmente os cães de guarda da reação conservadora no Brasil, hoje: esses senhores e senhoras das igrejas e seitas evangélicas!), ao não admitirem a liberdade dos indivíduos ao decidirem por sua autonomia erótica e construções de gênero, construções muito particulares, pessoais!

Tola é a compreensão daqueles que optam por admitir que “nasceram gays ou trans” para se fazerem aceitos, como se estivessem a pedir licença para existir, uma vez que, tendo “nascido” não têm a “culpa” do que são, quando deveriam sair às ruas bradando a ilegitimidade das instituições sociais que tornaram a heterossexualidade a única forma legítima da sexualidade, uma pura invenção social, cultural e histórica, como demonstram inúmeros autores e estudos.

Como escreveu a filósofa estadunidense Judith Butler, a nossa atitude crítica deve ser essencialmente a decretação da ilegitimidade da realidade instituída, por seu caráter construído, arbitrário, contingente e revogável! Foda-se a ideia (ideológica, isto é, construída, imposta, hegemonizada) segundo a qual a heterossexualidade é a única modalidade natural do sexo humano e, portanto, a única legítima, admissível e institucionalizável! Ao invés de se buscar a “naturalização” da homossexualidade e do gênero trans, o que devemos procurar  é a revogação da heterossexualidade como instituição única, universal, eterna e imutável!

Quando gays, lésbicas e trans procuram sua segurança ontológica, sua tábua de salvação, na ideia que também são “naturais”, “filhos da pródiga natureza”, pela vã ideia que serão aceitos no “reino dos normais”, não sabem o que estão fazendo! Como se saíssem das páginas do Etienne La Boétie, consentem sua própria “servidão voluntária”, ao consentirem sua própria dominação pela sujeição à ideologia do “gay genético”, “gay biológico”, “trans desde o embrião”, sem qualquer sinal de resistência e crítica a discurso que, ao final, mantém a todos os LGBT na zona do diagnóstico e da patologização. Pois, “ser gay desde o embrião”, na domesticação conservadora e normalizadora, não mais é que uma certidão de nascimento do desvio sexual que atesta a “causa” da diversidade sexual que se faz questão de afirmar. Esta entendida não como uma conquista da liberdade dos indivíduos na afirmação de sua autonomia erótica, de desejo e de construções de gênero mas como mera manifestação das “espécies sexuais” inscritas no DNA animal-humano.

A Parada de São Paulo perde a oportunidade de politizar o debate sobre sexualidade e práticas de gênero, enfrentando o discurso ideológico e conservador como deve: afirmando o direito supremo das pessoas à sua autonomia erótica! E, para isso, não há “causa” biológica, embrionária, de nascimento. Ninguém nasce isso ou aquilo! Nascemos quando nasce o desejo! Nosso desejo é a nossa causa!

A luta LGBT é uma luta política e somente na arena política deve ser travada, sem concessões ao pensamento conservador, ao discurso ideológico e ao poder médico.

Não se nasce mulher, aprende-se a sê-lo, escreveu Simone de Beauvoir, para contestar a ideologia da “essência feminina” como algo natural nas mulheres. Temos que dizer à sociedade: não se nasce gay, lésbica ou trans, como na canção, “somos o que queremos ser”!

Um comentário:

Andrea Almeida Campos disse...

Sem falar no que considero uma "dívida social" com aqueles que sofreram a opressão do desejo com a consequente capitulação do ser. Capitulação de não poucos. Pensei nisso ao assistir a um programa da BBC sobre Tchaikovsky nesse final de semana. Diversamente de ter morrido de cólera, há uma grande possibilidade de nosso gênio da música ter se suicidado uma semana após a primeira apresentação de sua "Pathétique". Rumores acerca de sua homossexualidade e a possibilidade da mesma ser alardeada o teriam levado ao gesto final. Tchaikovsky tinha 53 anos de idade. Em razão do preconceito, perdeu ele a vida, perdeu toda a humanidade, pelo menos, vinte anos mais de criação de obras-primas. Um "suicidado pela sociedade" nas melhores palavras de Antonin Artaud. Isso deve integrar um debate que é político sim, que diz respeito a todos nós e que, diversamente do que pode ter ocorrido a Tchaikovsky, não pode ser silenciado.