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26.6.11
Ferreira Gullar: "Instituição e rebeldia"
O seguinte -- excelente -- artigo de Ferreira Gullar foi publicado na sua coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no domingo, 12 de junho.
Instituição e rebeldia
TODOS CONCORDAM que é muito difícil definir o que é arte. Não obstante, se refletimos sobre o que conhecemos e consideramos expressão artística, verificamos que, em que pese a enorme variedade de estilos e concepções, há ali um traço comum que nos permite englobá-la numa mesma definição: é arte. Houve épocas em que era quase impossível fazê-lo de modo amplo, uma vez que a conceituação estreita reduzia a expressão artística a princípios e normas, fora das quais a arte seria impossível.
Foi precisamente o abandono dessas regras que tornou possível a visão abrangente que caracterizou a crítica de arte do século 20, capaz de compreender as mais diversas manifestações artísticas, desde as pinturas parietais do paleolítico até a limpidez da estatuária grega, o delírio barroco e a poética revolucionária do cubismo, do expressionismo, do dadaísmo.
Um dos traços mais característicos dessa visão nova da arte era a valorização do fator expressivo e autônomo das formas em detrimento da representação do real: compreendeu-se que, mais que copiar a realidade, a arte a recria e a inventa.
Mas o impulso irreverente, que movia os artistas do começo do século 20, ultrapassou não apenas a concepção acadêmica como pôs em questão o próprio conceito de arte.
Quem levou essa atitude a seu ponto extremo foi Marcel Duchamp, ao afirmar: "Será arte tudo o que eu disser que é arte". Essa afirmação, tomada ao pé da letra, significa que nada é arte, ou seja, que o fazer artístico não tem qualquer sentido.
Mas nem ele próprio acreditava nisso, tanto que suas obras mais importantes -"O Grande Vidro" (1915-1923) e "Étant Donnés" (1946-1966)- demandaram-lhe muitos anos de trabalho e criatividade.
De qualquer modo, não foi esse lado de sua personalidade que influiu sobre futuras gerações de artísticas, e sim aquele outro lado, o da antiarte. De uma maneira ou de outra, o que se chama hoje de arte conceitual ou arte contemporânea parte do princípio duchampiano de que tudo é arte ou pode ser dado como tal. Noutras palavras, todos os valores -sejam teóricos, artesanais ou estéticos- que serviam para esse tipo de expressão tornaram-se dispensáveis.
Isso não é uma crítica, apenas uma constatação. Qualquer que seja a importância que se atribua a esta ou aquela obra dita "contemporânea" -casais nus no MoMA, por exemplo- não possui aquelas referidas qualidades que constituem as obras de arte: casais nus que se exponham num museu não foram feitos por nenhum artista nem por ninguém. São apenas algo que se mostra como uma expressão, um conceito, qualquer que seja ele -enfim uma "boa ideia". Em face dessa constatação é inevitável concluir que tais manifestações estão fora do campo da arte.
No entanto, esses casais nus foram mostrados no Museu de Arte Moderna de Nova York, um dos mais conceituados museus do mundo. Como se explica isso?
A primeira resposta que me ocorre é que, no campo das artes plásticas, o conceito de obra de arte, como produto do trabalho e fruto de uma linguagem elaborada pelo artista, já não vale.
Entre os que conceituam, gerem ou decidem sobre o que merece ou não ser exibido e destacado, o que vale é, em vez da obra, o questionamento do que se chama de arte e do próprio museu ou certames nacionais e internacionais, criados para expor obras de arte. Agora, esses espaços tornaram-se locais onde se "nega" a arte.
A palavra "nega" está aí entre aspas porque não é agora uma negação contestadora de fato. Já foi, quando Duchamp expôs o seu famoso urinol, intitulado "Fontaine". Agora, instituição e rebeldia se identificam e uma redime a outra. O museu, as bienais, são hoje locais onde a não arte -seja urinol ou casais nus- vira arte.
Trata-se, de fato, de um impasse: a rebeldia que necessita da instituição para ser rebelde é a negação da rebeldia. Não por acaso, o artista escolhido para representar o Brasil na Bienal de Veneza, este ano, se declara contra salões, premiações e a própria Bienal onde vai expor.
Claro, porque, se se mostrar contente de expor ali, deixará de ser rebelde e, como sua obra é a não obra, tudo o que lhe resta é o espaço institucional, onde ela é aceita como rebeldia. Fora de lá, não é.
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7.3.10
Mind the gap
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 6 de março:
Mind the gap
NO METRÔ do Rio de Janeiro, quando o trem se aproxima de uma estação, ouve-se uma voz a anunciá-la, dizendo, por exemplo: "Próxima estação: Botafogo". De um tempo para cá, começaram a anunciar a próxima estação também em inglês, como: "Next station: Botafogo". Em português, às vezes dão outras informações, como "estação de transferência para a Gávea" etc. Em inglês, porém, só dizem o nome da estação. Por isso, recentemente fiquei surpreso quando, tendo ouvido a advertência "cuidado com o vão entre o trem e a plataforma", ouvi, em seguida: "Mind the gap".
Isso me transportou para muitos anos atrás, quando eu morava em Londres. Lembro-me de que me divertia ao ouvir essa mesma sentença em algumas estações do metrô. É que "mind the gap" quer dizer, literalmente, "atenção ao vão", "cuidado com o vão" ou "cuidado com a lacuna", e tudo isso já era sugestivo. Ademais, a palavra "mind" pode ser também usada como substantivo, significando "mente". A expressão "mind the gap" pode, portanto, ser ouvida mais ou menos como "a mente, o vão" ou “a mente, a lacuna”. E eu "viajava" um pouco com essa ambigüidade.
Naturalmente, não fui o único a perceber a graça de "mind the gap". Há pouco tempo, tomei conhecimento de que existem ao menos um filme, uma produtora de cinema, uma companhia de teatro e um romance chamados "Mind the Gap", todos inspirados na frase dita no metrô de Londres.
De todo modo, o prazer que eu sentia com a ambiguidade da sentença "mind the gap" dita no metrô era de natureza estética. Eu apreendia essa sentença à maneira de um "ready made" poético. Como se sabe, o conceito de "ready made", cunhado pelo artista plástico Marcel Duchamp, designa um objeto já existente que, deslocado do seu contexto e colocado numa exposição ou num museu, pede para ser apreciado esteticamente. É o caso do urinol que Duchamp submeteu a uma exposição.
Na verdade, a intenção do gesto de Duchamp havia sido mais a de contestar a instituição da arte do que a de revelar a possibilidade de que qualquer coisa, mesmo a mais improvável, pudesse ser objeto de fruição estética: de que esta residisse mais na atitude estética do receptor do que na própria coisa. No entanto, creio que foi desse modo que a maior parte dos artistas e críticos sempre a entenderam.
Mais próxima de celebrar a atitude estética parece-me ser a peça musical de John Cage "4'33"". Descrevo-a para o leitor que não a conheça. Trata-se de uma composição de três movimentos, composta para qualquer instrumento ou combinação de instrumentos. Os músicos entram, mas não tocam música nos instrumentos que seguram ou ante os quais se sentam. O primeiro movimento dura trinta segundos, o segundo, dois minutos e vinte e três segundos, e o terceiro, um minuto e quarenta segundos. O que os ouvintes realmente ouvem é o “silêncio” que, na verdade, consiste no som ambiente: a tosse de alguém, o ranger de uma poltrona, a respiração do ouvinte ao lado, o som distante de um avião que passa. Trata-se, portanto, de aprender a captar esteticamente, como se fosse música, o que chamamos de “silêncio” ou de “ruído”.
O fato é que assim como, nas artes plásticas, o "ready made" levou muitos artistas e críticos de arte a considerarem obsoleta a arte de pintar ou esculpir, na poesia ele levou muitos poetas e críticos literários a considerarem obsoleta a arte de fazer poemas. Entende-se: se é possível encontrar prazer estético num texto recortado do jornal, num trecho de diálogo de uma novela mexicana, numa sentença grafitada, numa frase ouvida ao léu ou na advertência do metrô, quem precisa da arte da poesia, de poemas ou de poetas?
A melhor resposta a uma pergunta dessas seria, evidentemente: "Ninguém". Não é preciso arte ou poesia. "Toda arte é perfeitamente inútil", como diz Oscar Wilde. E: "A única desculpa para fazer uma coisa inútil é admirá-la intensamente".
Mas a verdade é que, embora a celebração da atitude estética tenha sido extremamente importante, é evidente que seria uma tolice inferir que, em consequência dela, a arte se tenha tornado obsoleta. Do fato de ser possível obter prazer estético de diversas fontes não decorre que se trate do mesmo prazer, seja quantitativa, seja qualitativamente. Do fato de que se possa obter prazer estético tanto da sentença ouvida no metrô de Londres quanto do poema "Numa estação de metrô", de Ezra Pound, não decorre que ambos tenham o mesmo valor. Pensar o contrário equivaleria a supor que, do fato de que os seres humanos são capazes de se deleitar com o farfalhar das copas das árvores ao vento, de habitar cavernas e de comer frutas silvestres, devamos jogar fora a música, a arquitetura e a culinária.
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19.9.08
Entrevista à revista Azougue
No ensaio “Poesia e paisagens urbanas”, você argumenta que as vanguardas acabaram, não porque falharam, mas justamente porque tiveram êxito no seu papel de expandir os horizontes da arte. Qual é a relação entre este papel histórico e a potência ou contundência particular que diversas de suas obras nos legaram? Estarão superadas em virtude de seus momentos históricos? De que maneira permanecem?
Não há uma resposta genérica a essa pergunta. É preciso considerar cada obra de arte individualmente. O importante é reconhecer que a importância histórica de uma obra não coincide necessariamente com o seu valor estético. Fontaine, de Duchamp, tem uma enorme importância conceitual e histórica, mas o seu valor estético é praticamente nulo, como, aliás, o próprio Duchamp reconhecia. Por outro lado, Les demoiselles d’Avignon, de Picasso, tem, além da sua importância histórica, um grande valor estético. A prova de que há uma diferença é que não é preciso ver Fontaine para saber tudo o que importa sobre essa obra, mas, a menos que se veja Les demoiselles d’Avignon, é impossível saber tudo o que realmente importa sobre esse quadro.
O modernismo fundamentou-se na especificidade dos gêneros artísticos. Como você vê o desguarnecimento das fronteiras entre as artes que caracteriza o momento “pós-moderno”?
Tanto a busca da essência de cada arte quanto a rejeição dessa essência fazem parte da modernidade. Elas são os dois lados de uma mesma moeda, dois diferentes caminhos abertos pela compreensão moderna de que as formas que nos foram legadas pela tradição são arbitrárias, convencionais, contingentes. É verdade que a própria busca da essência acaba também resultando na sua rejeição, isto é, na convicção de que a arte não tem uma essência descritível, mas esse processo se passa no interior da mesma modernidade. Assim, o movimento Dada, que data da Primeira Guerra, já funde todas as artes. Não há “pós-modernidade”. Esta noção é espúria. O que vivemos hoje é a modernidade plenamente auto-consciente. Uma vez, num ensaio sobre Hélio Oiticica, eu a chamei de supermoderna. Haroldo de Campos, ao ler esse ensaio, me disse gostar muito desse conceito, mas observou que preferia a palavra “supramoderno” a “supermoderno”. Eu prefiro esta última, pelas suas ressonâncias pop-nietzscheanas.
No caso brasileiro, você diria que a antropofagia de Oswald de Andrade está circunscrita a seu momento histórico? Quais rupturas e continuidades estabelece com as experiências contemporâneas?
Os manifestos de Oswald só têm valor histórico, mas a obra poética dele e a noção de antropofagia, não. Contra o nacionalismo e o regionalismo defensivos, tudo o que é mais forte no Brasil – Machado de Assis, Joaquim Nabuco, o Modernismo, Manuel Bandeira, o samba, Drummond, a bossa-nova, João Cabral, o Concretismo, o Néo-
concretismo, o Tropicalismo e mesmo, contra todas as aparências, o próprio Guimarães Rosa – foram agressiva e seletivamente cosmopolitas, isto é, antropofágicos.
Grosso modo, podemos identificar duas frentes principais nas vanguardas: a objetiva (alinhada com as promessas civilizatórias da revolução industrial e da razão) e a subjetivas (a exploração do inconsciente, do sagrado e dos desregramentos via uma postura crítica com relação à modernidade). No Brasil, e em momentos distintos, a primeira frente parece influenciar aquelas vertentes que se integraram ao projeto de modernização do país e seguem um programa estético racionalista; a segunda, por sua vez, caracteriza os movimentos artísticos definidos como marginais, subjetivistas e, muitas vezes, acusados de diletantismo. Como avalia as passagens destas frentes oriundas do modernismo europeu para a cultura brasileira?
Para dizer a verdade, acho que, com exceção da teoria (mas não tanto da prática) de João Cabral e dos manifestos e teorias da fase heróica dos concretistas, praticamente não há poetas que se alinhem com as promessas civilizatórias da revolução industrial e da razão, ou que tenham um programa estético racionalista. Não vejo elogio nenhum do racionalismo na poesia de Bandeira, Drummond, Cecília Meireles ou Ferreira Gullar, por exemplo. Por outro lado, o surrealismo (que explora o inconsciente,o sagrado, os desregramentos etc.) não conseguiu ter, no Brasil, a expressão que teve na França, na Espanha ou em Portugal, por exemplo. Quanto à poesia marginal, parece-me ser outra coisa. Não é possível identificá-la com o surrealismo. Pelo menos quantitativamente, ela é muito forte. Mas acho que eu faria outro recorte da poesia brasileira. Para mim, há os poetas que tomam a poesia como a construção de uma obra de arte – entre os quais eu colocaria não só Cabral e os concretistas, mas esses cujos nomes citei – e os poetas que tomam a poesia como expressão vital, entre os quais eu colocaria os marginais. Interessam-me muito mais os primeiros.
Em Finalidades sem fim, você considera as inovações das vanguardas européias (o desenraizamento, o cosmopolitismo) como desdobramentos da conquista da escrita pela cultura ocidental herdeira da Grécia. Ao mesmo tempo, certas vanguardas abriram caminho ao não-ocidental e fizeram disso um dos focos de crítica à modernidade letrada: instauraram a via cosmopolita, entre outras coisas, justamente por incluírem as contribuições da alteridade. Não acha então que, ao fazerem assim, as vanguardas mostraram que pensamentos cosmopolitas e desenraizados, ao contrário do que sustentam nossos pressupostos imperiais, podem ser encontrados também por outras partes que não nos centros estendidos da cultura européia modernista?
Permitam-me explicar melhor o que penso. A razão – que é, em primeiro lugar, a capacidade de criticar – e a modernidade não são produtos do Ocidente, nem pertencem a ele ou a qualquer cultura particular. Não poderia haver etnocentrismo ou “pressuposto imperial” mais descarado do que a pretensão de que a razão e a modernidade pertencessem exclusivamente ao Ocidente. Ao contrário: no Ocidente, a modernidade surge como uma fenda, como uma crítica, exercida pela razão, à própria cultura ocidental. Quando Montaigne, em nome da razão, critica a França, a Europa, a Cristandade etc., comparando-as desfavoravelmente a outras culturas, inclusive à dos índios brasileiros, ele está, enquanto indivíduo portador da razão, a se separar da França, da Europa, da Cristandade etc.: ele está, a partir da razão, a relativizar a cultura ocidental, que é a cultura em que foi criado. Nesse momento, ele está sendo moderno, e está sendo um dos introdutores da modernidade na Europa. A modernidade não surge, portanto, como um desenvolvimento da própria cultura ocidental, mas como uma crítica a esta, feita por indivíduos que, em certa medida, já dela se separaram, já dela se desenraizaram, e que, ao criticá-la, fazem uso da razão, que não pertence a cultura nenhuma e está disponível a todos os seres humanos, de todas as culturas. Pois bem, a escrita alfabética, por ser, em princípio, acessível a todas as pessoas, foi um mais fortes fatores que favoreceram o desenvolvimento da crítica em geral e, com ela, o desenraizamento, no Ocidente. Essa é sem dúvida essa uma das principais causas pelas quais historicamente foi no Ocidente que a modernidade se manifestou com mais força. Isso não quer dizer que ela não se tenha manifestado também em outras partes do mundo, como já mostrou, por exemplo, Amartya Sen, falando da Índia. Quanto à “crítica à modernidade letrada”, de que você fala, observo que qualquer crítica concebível é necessariamente uma manifestação da própria modernidade letrada: a modernidade letrada só pode ser criticada pela própria modernidade letrada.
Com sua “Fontaine” e seus ready-mades, Marcel Duchamp inaugura uma vertente para a arte que ganha força com o movimento da arte conceitual nos anos 1960 e continua a dominar a assim chamada “arte contemporânea”. Essa vertente artística conceitual não se fundamenta na estética, ao contrário, procura superá-la. Ao ler seu Finalidades sem fim, entendo que para você não existe arte sem estética. Das duas uma: ou a “arte contemporânea” não é arte, ou sua concepção de arte está superada...
Em primeiro lugar, há outras possibilidades que vocês não estão levando em conta. Uma delas é que eu entenda por “estética” algo diferente do que alguns desses “artistas contemporâneos” entendem. E isso, de fato, ocorre. A descoberta de Kant de que a apreciação estética é independente de todo interesse foi normalmente interpretada como se significasse que a apreciação estética fosse puramente formal, desprezando qualquer conteúdo ou significado. Se fosse assim, também eu acharia que Kant estava errado nesse ponto. Schiller, porém, que, a meu ver, melhor entendeu – ou desenvolveu – esse aspecto do pensamento de Kant, afirmava, ao contrário, que apreciar esteticamente uma coisa significa permitir que ela se relacione com a totalidade das nossas diversas potências, sem ser um objeto determinado para nenhuma delas em particular. Devemos entender que, enquanto obra de arte, um objeto não tem nenhuma função utilitária (seja fisiológica, seja política ou seja comercial), nem nenhuma função prática ou cognitiva: que enquanto obra de arte ele não serve para nada. É sem nenhum fim ulterior que uma obra de arte mobiliza de maneiras surpreendentes as nossas faculdades, a nossa razão, a nossa inteligência, a nossa sensibilidade, a nossa sensualidade, a nossa sensitividade, as nossas emoções, o nosso humor etc. e faz com que todas essas faculdades interajam, e que interajam de maneiras também surpreendentes, nem utilitárias, nem práticas, nem cognitivas. Se a “arte contemporânea” de que vocês estão falando não é capaz de fazer isso, então, realmente, não é arte. Observo, porém, que, para mim, “arte contemporânea” é tudo o que se faz contemporaneamente. Uma obra de Luciano Figueiredo, uma canção de Caetano Veloso e um poema de Eucanaã Ferraz, por exemplo, são arte contemporânea e fazem isso. Observo que há também quem negue que a arte tenha a ver com a estética porque ache que a arte não tem que ser bela. Isso, porém, é uma tolice, pois “belo” é uma noção transcendental e não descritiva. Quando chamamos alguma coisa de “bela”, isso quer dizer apenas que a aprovamos, do ponto de vista estético: e podemos aprová-la embora outras pessoas a desaprovem, isto é, a chamem de “feia”. Por exemplo, o quadro, que já citei, Les demoiselles d’Avignon foi em parte inspirado por máscaras africanas, que, na época, eram tidas como feias. Hoje as achamos belas. Esse próprio quadro era tido por feio por quase todo o mundo, quando foi pintado. Hoje, quase todo o mundo o acha belo. Assim, se aprovo uma obra de “arte contemporânea”, vou chamá-la de “bela”; se a chamo de “feia”, estou simplesmente manifestando minha desaprovação.
Um dos conceitos que você apresenta em Finalidades sem fim é o de “modernidade plena” – aliás o fim das vanguardas seria um sintoma da realização da modernidade, sua “plenitude”. O conceito de “modernidade plena” parece inferir uma espécie de superioridade da cultura ocidental sobre as outras. O cosmopolitismo faz um par, portanto, com o autoritarismo iluminista. Sua constante defesa da open society não implica também em desconsiderar toda uma vertente da filosofia que, ao menos desde Nietzsche, reflete de modo crítico sobre as mazelas da modernidade? Como vê esta tensão?
Como já observei ao responder à pergunta 5, a modernidade não é um produto do Ocidente. É um acidente que ela se tenha manifestado com mais força e antes na Europa do que noutras regiões. Dado que a modernidade constitui uma fissura na cultura em que surge, ela manifesta antes a fraqueza do que a força desta. Quanto ao “autoritarismo iluminista”, trata-se de um mito. Autoritárias são as religiões e as culturas pré-modernas, não o iluminismo que é, ao contrário, um movimento de crítica a toda autoridade. É curioso que o pensamento realmente autoritário, como, por exemplo, o católico, tenha conseguido pôr a pecha de autoritário justamente no iluminismo. Penso que o Marxismo foi cúmplice dessa inversão, ao qualificar – ou melhor, desqualificar – a democracia e o individualismo como “burgueses”. Um dos resultados dessa confusão toda é o absurdo – bem contemporâneo – de considerar Nietzsche como um pensador anti-autoritário. Para realmente conhecer o pensamento de Nietzsche, os nietzscheanos de hoje deviam deixar Deleuze, Klossowski e seus epígonos de lado, e ler o próprio Nietzsche. Eles saberiam então que o autor de Assim falou Zaratustra condena a modernidade, não porque esta seja autoritária, mas por não o ser suficientemente; e que defende autoridade, hierarquia e tradição até o ponto de idolatrar o sistema de castas. Deixem-me escolher duas, entre centenas de citações que poderiam provar o que digo. No § 39 de Crepúsculo dos ídolos, intitulado “Crítica da modernidade”, Nietzsche diz: “Para que haja instituições, é preciso haver uma espécie de vontade, de instinto, de imperativo, antiliberal até a malvadeza: a vontade de tradição, de autoridade, de responsabilidade por séculos adiante, de solidariedade entre cadeias de gerações, para a frente e para trás in infinitum. [...] O Ocidente inteiro não tem mais os instintos de que nascem as instituições, de que nasce o futuro: talvez nada contrarie tanto o seu ‘espírito moderno’”. E no § 57 de O Anticristo, diz: “Quem eu mais odeio, dessa gentalha de hoje em dia?” E responde: “a gentalha socialista, os apóstolos da chandala, que corroem o instinto, o prazer, o sentimento de satisfação do trabalhador com sua existenciazinha – que o tornam invejoso, que lhe ensinam a vingança... A injustiça jamais se encontra na desigualdade de direitos, mas na aspiração a direitos iguais...”
Em O homem sem conteúdo, Agamben diz que o homem contemporâneo está perigosamente amortecido pelo juízo crítico da arte e prega uma superação da estética. Em suas palavras, “Perhaps nothing is more urgent – if we really want to engage the problem of art in our time – than a destruction of aesthetics that would, by clearing away what is usually taken for granted, allow us to bring into question the very meaning of aesthetics as the science of the work of art.” Como você analisa o trabalho e proposições de Agamben sobre arte e estética? Quais são as opções para além da matriz kantiana?
Se não me engano, esse livro é um dos primeiros de Agamben. Parece escrito por um discípulo de Heidegger que, como seu mestre, tem ojeriza à modernidade. O horror à estética é o horror à autonomia da arte, que é uma das grandes conquistas da modernidade. E o que ele oferece no lugar da autonomia da arte? Absolutamente nada além de nostalgia pela época da heteronomia da arte. Agamben parece não ter compreendido Kant quando diz que este pensa que, para julgarmos uma obra de arte, devemos ter um conceito do que o objeto deveria ser, pois “o fundamento da obra de arte é algo diferente de nós, isto é, o princípio formal-criativo do artista”. O que Agamben não percebe é que, nesse contexto, Kant entende por obra de arte a obra da técnica. Para Kant, há uma diferença entre as obras de arte ordinárias (que são obras da técnica) e as obras das belas-artes, que, são antes produtos do gênio – logo, da natureza – do que da arte, de modo que devem ser apreciadas como se fossem produtos da natureza: “devemos”, diz Kant, “estar conscientes de que se trata de arte [técnica], e não de natureza; porém a finalidade na forma do mesmo deve parecer tão livre de todo constrangimento de regras arbitrárias como se fosse um produto da pura natureza”. Sobre Kant, deve-se dizer que ele foi, sem dúvida, o maior filósofo da modernidade, de modo que, goste-se dele ou não, ele é inevitável. Mas, naturalmente, Kant também foi humano, de modo que tem que ser complementado em alguns pontos, corrigido em outros, e superado em terceiros. Tento, na medida das minhas escassas possibilidades, fazer todas essas coisas, quando faço filosofia. O que não dá é para enterrar a Crítica do juízo antes da hora, como Agamben pretende fazer.
No Brasil de hoje, talvez no mundo, parece haver um duplo fenômeno de proliferação dos poetas e de diminuição da circulação da poesia (por exemplo, no debate público e no mercado). Uma das possíveis explicações para isso é a resistência que a poesia tem de se tornar um produto mercantil, ou seja, de ser tornar objeto da cultura de massas. Ao mesmo tempo, numa sociedade de consumo e laica, parece não haver mais uma função social para o poeta, substituído por outros personagens. A poesia, compreendida como a arte de criar poemas, se tornou anacrônica?
Parece-me que a poesia escrita sempre será – pelo menos em tempo previsível – coisa para poucas pessoas. É que ela exige muito do seu leitor. Para ser plenamente apreciado, cada poema deve ser lido lentamente, em voz baixa ou alta, ou ainda “aural”, como diz o poeta Jacques Roubaud. Alguns de seus trechos, ou ele inteiro, devem ser relidos, às vezes mais de uma vez. Há muitas coisas a serem descobertas num poema, e tudo nele é sugestivo: os sentidos, as alusões, a sonoridade, o ritmo, as relações paronomásicas, as aliterações, as rimas, os assíndetos, as associações icônicas etc. Todos os componentes de um poema escrito podem (e devem) ser levados em conta. Muitos deles são interrelacionados. Tudo isso deve ser comparado a outros poemas que o leitor conheça. E, de preferência, o leitor deve ser familiarizado com os poemas canônicos. Como eu disse na resposta a outra pergunta, o leitor deve convocar e deixar que interajam uns com os outros, até onde não puder mais, todos os recursos de que dispõe: razão, intelecto, experiência, cultura, emoção, sensibilidade, sensualidade, intuição, senso de humor etc. Sem isso tudo, a leitura do poema não compensa: é uma chatice. Um quadro pode ser olhado en passant; um romance, lido à maneira “dinâmica”; uma música, ouvida distraidamente; um filme, uma peça de teatro, um ballet, idem. Um poema, não. Nada mais entediante do que a leitura desatenta de um poema. Quanto melhor ele for, mais faculdades nossas, e em mais alto grau, são por ele solicitadas e atualizadas. É por isso que muita gente tem preguiça de ler um poema, e muita gente jamais o faz. Os que o fazem, porém, sabem que é precisamente a exigência do poema – a atualização e a interação das nossas faculdades – que constitui a recompensa (incomparável) que ele oferece ao seu leitor. Mas os bons poemas são raridades. A função do poeta é fazer essas raridades. Felizmente elas são anacrônicas, porque nos fazem experimentar uma temporalidade inteiramente diferente da temporalidade utilitária em que passamos a maior parte das nossas vidas.
In: Azougue: edição especial 2006-2008. Organização Sergio Cohn, Pedro Cesarino e Renato Rezende. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.
Não há uma resposta genérica a essa pergunta. É preciso considerar cada obra de arte individualmente. O importante é reconhecer que a importância histórica de uma obra não coincide necessariamente com o seu valor estético. Fontaine, de Duchamp, tem uma enorme importância conceitual e histórica, mas o seu valor estético é praticamente nulo, como, aliás, o próprio Duchamp reconhecia. Por outro lado, Les demoiselles d’Avignon, de Picasso, tem, além da sua importância histórica, um grande valor estético. A prova de que há uma diferença é que não é preciso ver Fontaine para saber tudo o que importa sobre essa obra, mas, a menos que se veja Les demoiselles d’Avignon, é impossível saber tudo o que realmente importa sobre esse quadro.
O modernismo fundamentou-se na especificidade dos gêneros artísticos. Como você vê o desguarnecimento das fronteiras entre as artes que caracteriza o momento “pós-moderno”?
Tanto a busca da essência de cada arte quanto a rejeição dessa essência fazem parte da modernidade. Elas são os dois lados de uma mesma moeda, dois diferentes caminhos abertos pela compreensão moderna de que as formas que nos foram legadas pela tradição são arbitrárias, convencionais, contingentes. É verdade que a própria busca da essência acaba também resultando na sua rejeição, isto é, na convicção de que a arte não tem uma essência descritível, mas esse processo se passa no interior da mesma modernidade. Assim, o movimento Dada, que data da Primeira Guerra, já funde todas as artes. Não há “pós-modernidade”. Esta noção é espúria. O que vivemos hoje é a modernidade plenamente auto-consciente. Uma vez, num ensaio sobre Hélio Oiticica, eu a chamei de supermoderna. Haroldo de Campos, ao ler esse ensaio, me disse gostar muito desse conceito, mas observou que preferia a palavra “supramoderno” a “supermoderno”. Eu prefiro esta última, pelas suas ressonâncias pop-nietzscheanas.
No caso brasileiro, você diria que a antropofagia de Oswald de Andrade está circunscrita a seu momento histórico? Quais rupturas e continuidades estabelece com as experiências contemporâneas?
Os manifestos de Oswald só têm valor histórico, mas a obra poética dele e a noção de antropofagia, não. Contra o nacionalismo e o regionalismo defensivos, tudo o que é mais forte no Brasil – Machado de Assis, Joaquim Nabuco, o Modernismo, Manuel Bandeira, o samba, Drummond, a bossa-nova, João Cabral, o Concretismo, o Néo-
concretismo, o Tropicalismo e mesmo, contra todas as aparências, o próprio Guimarães Rosa – foram agressiva e seletivamente cosmopolitas, isto é, antropofágicos.
Grosso modo, podemos identificar duas frentes principais nas vanguardas: a objetiva (alinhada com as promessas civilizatórias da revolução industrial e da razão) e a subjetivas (a exploração do inconsciente, do sagrado e dos desregramentos via uma postura crítica com relação à modernidade). No Brasil, e em momentos distintos, a primeira frente parece influenciar aquelas vertentes que se integraram ao projeto de modernização do país e seguem um programa estético racionalista; a segunda, por sua vez, caracteriza os movimentos artísticos definidos como marginais, subjetivistas e, muitas vezes, acusados de diletantismo. Como avalia as passagens destas frentes oriundas do modernismo europeu para a cultura brasileira?
Para dizer a verdade, acho que, com exceção da teoria (mas não tanto da prática) de João Cabral e dos manifestos e teorias da fase heróica dos concretistas, praticamente não há poetas que se alinhem com as promessas civilizatórias da revolução industrial e da razão, ou que tenham um programa estético racionalista. Não vejo elogio nenhum do racionalismo na poesia de Bandeira, Drummond, Cecília Meireles ou Ferreira Gullar, por exemplo. Por outro lado, o surrealismo (que explora o inconsciente,o sagrado, os desregramentos etc.) não conseguiu ter, no Brasil, a expressão que teve na França, na Espanha ou em Portugal, por exemplo. Quanto à poesia marginal, parece-me ser outra coisa. Não é possível identificá-la com o surrealismo. Pelo menos quantitativamente, ela é muito forte. Mas acho que eu faria outro recorte da poesia brasileira. Para mim, há os poetas que tomam a poesia como a construção de uma obra de arte – entre os quais eu colocaria não só Cabral e os concretistas, mas esses cujos nomes citei – e os poetas que tomam a poesia como expressão vital, entre os quais eu colocaria os marginais. Interessam-me muito mais os primeiros.
Em Finalidades sem fim, você considera as inovações das vanguardas européias (o desenraizamento, o cosmopolitismo) como desdobramentos da conquista da escrita pela cultura ocidental herdeira da Grécia. Ao mesmo tempo, certas vanguardas abriram caminho ao não-ocidental e fizeram disso um dos focos de crítica à modernidade letrada: instauraram a via cosmopolita, entre outras coisas, justamente por incluírem as contribuições da alteridade. Não acha então que, ao fazerem assim, as vanguardas mostraram que pensamentos cosmopolitas e desenraizados, ao contrário do que sustentam nossos pressupostos imperiais, podem ser encontrados também por outras partes que não nos centros estendidos da cultura européia modernista?
Permitam-me explicar melhor o que penso. A razão – que é, em primeiro lugar, a capacidade de criticar – e a modernidade não são produtos do Ocidente, nem pertencem a ele ou a qualquer cultura particular. Não poderia haver etnocentrismo ou “pressuposto imperial” mais descarado do que a pretensão de que a razão e a modernidade pertencessem exclusivamente ao Ocidente. Ao contrário: no Ocidente, a modernidade surge como uma fenda, como uma crítica, exercida pela razão, à própria cultura ocidental. Quando Montaigne, em nome da razão, critica a França, a Europa, a Cristandade etc., comparando-as desfavoravelmente a outras culturas, inclusive à dos índios brasileiros, ele está, enquanto indivíduo portador da razão, a se separar da França, da Europa, da Cristandade etc.: ele está, a partir da razão, a relativizar a cultura ocidental, que é a cultura em que foi criado. Nesse momento, ele está sendo moderno, e está sendo um dos introdutores da modernidade na Europa. A modernidade não surge, portanto, como um desenvolvimento da própria cultura ocidental, mas como uma crítica a esta, feita por indivíduos que, em certa medida, já dela se separaram, já dela se desenraizaram, e que, ao criticá-la, fazem uso da razão, que não pertence a cultura nenhuma e está disponível a todos os seres humanos, de todas as culturas. Pois bem, a escrita alfabética, por ser, em princípio, acessível a todas as pessoas, foi um mais fortes fatores que favoreceram o desenvolvimento da crítica em geral e, com ela, o desenraizamento, no Ocidente. Essa é sem dúvida essa uma das principais causas pelas quais historicamente foi no Ocidente que a modernidade se manifestou com mais força. Isso não quer dizer que ela não se tenha manifestado também em outras partes do mundo, como já mostrou, por exemplo, Amartya Sen, falando da Índia. Quanto à “crítica à modernidade letrada”, de que você fala, observo que qualquer crítica concebível é necessariamente uma manifestação da própria modernidade letrada: a modernidade letrada só pode ser criticada pela própria modernidade letrada.
Com sua “Fontaine” e seus ready-mades, Marcel Duchamp inaugura uma vertente para a arte que ganha força com o movimento da arte conceitual nos anos 1960 e continua a dominar a assim chamada “arte contemporânea”. Essa vertente artística conceitual não se fundamenta na estética, ao contrário, procura superá-la. Ao ler seu Finalidades sem fim, entendo que para você não existe arte sem estética. Das duas uma: ou a “arte contemporânea” não é arte, ou sua concepção de arte está superada...
Em primeiro lugar, há outras possibilidades que vocês não estão levando em conta. Uma delas é que eu entenda por “estética” algo diferente do que alguns desses “artistas contemporâneos” entendem. E isso, de fato, ocorre. A descoberta de Kant de que a apreciação estética é independente de todo interesse foi normalmente interpretada como se significasse que a apreciação estética fosse puramente formal, desprezando qualquer conteúdo ou significado. Se fosse assim, também eu acharia que Kant estava errado nesse ponto. Schiller, porém, que, a meu ver, melhor entendeu – ou desenvolveu – esse aspecto do pensamento de Kant, afirmava, ao contrário, que apreciar esteticamente uma coisa significa permitir que ela se relacione com a totalidade das nossas diversas potências, sem ser um objeto determinado para nenhuma delas em particular. Devemos entender que, enquanto obra de arte, um objeto não tem nenhuma função utilitária (seja fisiológica, seja política ou seja comercial), nem nenhuma função prática ou cognitiva: que enquanto obra de arte ele não serve para nada. É sem nenhum fim ulterior que uma obra de arte mobiliza de maneiras surpreendentes as nossas faculdades, a nossa razão, a nossa inteligência, a nossa sensibilidade, a nossa sensualidade, a nossa sensitividade, as nossas emoções, o nosso humor etc. e faz com que todas essas faculdades interajam, e que interajam de maneiras também surpreendentes, nem utilitárias, nem práticas, nem cognitivas. Se a “arte contemporânea” de que vocês estão falando não é capaz de fazer isso, então, realmente, não é arte. Observo, porém, que, para mim, “arte contemporânea” é tudo o que se faz contemporaneamente. Uma obra de Luciano Figueiredo, uma canção de Caetano Veloso e um poema de Eucanaã Ferraz, por exemplo, são arte contemporânea e fazem isso. Observo que há também quem negue que a arte tenha a ver com a estética porque ache que a arte não tem que ser bela. Isso, porém, é uma tolice, pois “belo” é uma noção transcendental e não descritiva. Quando chamamos alguma coisa de “bela”, isso quer dizer apenas que a aprovamos, do ponto de vista estético: e podemos aprová-la embora outras pessoas a desaprovem, isto é, a chamem de “feia”. Por exemplo, o quadro, que já citei, Les demoiselles d’Avignon foi em parte inspirado por máscaras africanas, que, na época, eram tidas como feias. Hoje as achamos belas. Esse próprio quadro era tido por feio por quase todo o mundo, quando foi pintado. Hoje, quase todo o mundo o acha belo. Assim, se aprovo uma obra de “arte contemporânea”, vou chamá-la de “bela”; se a chamo de “feia”, estou simplesmente manifestando minha desaprovação.
Um dos conceitos que você apresenta em Finalidades sem fim é o de “modernidade plena” – aliás o fim das vanguardas seria um sintoma da realização da modernidade, sua “plenitude”. O conceito de “modernidade plena” parece inferir uma espécie de superioridade da cultura ocidental sobre as outras. O cosmopolitismo faz um par, portanto, com o autoritarismo iluminista. Sua constante defesa da open society não implica também em desconsiderar toda uma vertente da filosofia que, ao menos desde Nietzsche, reflete de modo crítico sobre as mazelas da modernidade? Como vê esta tensão?
Como já observei ao responder à pergunta 5, a modernidade não é um produto do Ocidente. É um acidente que ela se tenha manifestado com mais força e antes na Europa do que noutras regiões. Dado que a modernidade constitui uma fissura na cultura em que surge, ela manifesta antes a fraqueza do que a força desta. Quanto ao “autoritarismo iluminista”, trata-se de um mito. Autoritárias são as religiões e as culturas pré-modernas, não o iluminismo que é, ao contrário, um movimento de crítica a toda autoridade. É curioso que o pensamento realmente autoritário, como, por exemplo, o católico, tenha conseguido pôr a pecha de autoritário justamente no iluminismo. Penso que o Marxismo foi cúmplice dessa inversão, ao qualificar – ou melhor, desqualificar – a democracia e o individualismo como “burgueses”. Um dos resultados dessa confusão toda é o absurdo – bem contemporâneo – de considerar Nietzsche como um pensador anti-autoritário. Para realmente conhecer o pensamento de Nietzsche, os nietzscheanos de hoje deviam deixar Deleuze, Klossowski e seus epígonos de lado, e ler o próprio Nietzsche. Eles saberiam então que o autor de Assim falou Zaratustra condena a modernidade, não porque esta seja autoritária, mas por não o ser suficientemente; e que defende autoridade, hierarquia e tradição até o ponto de idolatrar o sistema de castas. Deixem-me escolher duas, entre centenas de citações que poderiam provar o que digo. No § 39 de Crepúsculo dos ídolos, intitulado “Crítica da modernidade”, Nietzsche diz: “Para que haja instituições, é preciso haver uma espécie de vontade, de instinto, de imperativo, antiliberal até a malvadeza: a vontade de tradição, de autoridade, de responsabilidade por séculos adiante, de solidariedade entre cadeias de gerações, para a frente e para trás in infinitum. [...] O Ocidente inteiro não tem mais os instintos de que nascem as instituições, de que nasce o futuro: talvez nada contrarie tanto o seu ‘espírito moderno’”. E no § 57 de O Anticristo, diz: “Quem eu mais odeio, dessa gentalha de hoje em dia?” E responde: “a gentalha socialista, os apóstolos da chandala, que corroem o instinto, o prazer, o sentimento de satisfação do trabalhador com sua existenciazinha – que o tornam invejoso, que lhe ensinam a vingança... A injustiça jamais se encontra na desigualdade de direitos, mas na aspiração a direitos iguais...”
Em O homem sem conteúdo, Agamben diz que o homem contemporâneo está perigosamente amortecido pelo juízo crítico da arte e prega uma superação da estética. Em suas palavras, “Perhaps nothing is more urgent – if we really want to engage the problem of art in our time – than a destruction of aesthetics that would, by clearing away what is usually taken for granted, allow us to bring into question the very meaning of aesthetics as the science of the work of art.” Como você analisa o trabalho e proposições de Agamben sobre arte e estética? Quais são as opções para além da matriz kantiana?
Se não me engano, esse livro é um dos primeiros de Agamben. Parece escrito por um discípulo de Heidegger que, como seu mestre, tem ojeriza à modernidade. O horror à estética é o horror à autonomia da arte, que é uma das grandes conquistas da modernidade. E o que ele oferece no lugar da autonomia da arte? Absolutamente nada além de nostalgia pela época da heteronomia da arte. Agamben parece não ter compreendido Kant quando diz que este pensa que, para julgarmos uma obra de arte, devemos ter um conceito do que o objeto deveria ser, pois “o fundamento da obra de arte é algo diferente de nós, isto é, o princípio formal-criativo do artista”. O que Agamben não percebe é que, nesse contexto, Kant entende por obra de arte a obra da técnica. Para Kant, há uma diferença entre as obras de arte ordinárias (que são obras da técnica) e as obras das belas-artes, que, são antes produtos do gênio – logo, da natureza – do que da arte, de modo que devem ser apreciadas como se fossem produtos da natureza: “devemos”, diz Kant, “estar conscientes de que se trata de arte [técnica], e não de natureza; porém a finalidade na forma do mesmo deve parecer tão livre de todo constrangimento de regras arbitrárias como se fosse um produto da pura natureza”. Sobre Kant, deve-se dizer que ele foi, sem dúvida, o maior filósofo da modernidade, de modo que, goste-se dele ou não, ele é inevitável. Mas, naturalmente, Kant também foi humano, de modo que tem que ser complementado em alguns pontos, corrigido em outros, e superado em terceiros. Tento, na medida das minhas escassas possibilidades, fazer todas essas coisas, quando faço filosofia. O que não dá é para enterrar a Crítica do juízo antes da hora, como Agamben pretende fazer.
No Brasil de hoje, talvez no mundo, parece haver um duplo fenômeno de proliferação dos poetas e de diminuição da circulação da poesia (por exemplo, no debate público e no mercado). Uma das possíveis explicações para isso é a resistência que a poesia tem de se tornar um produto mercantil, ou seja, de ser tornar objeto da cultura de massas. Ao mesmo tempo, numa sociedade de consumo e laica, parece não haver mais uma função social para o poeta, substituído por outros personagens. A poesia, compreendida como a arte de criar poemas, se tornou anacrônica?
Parece-me que a poesia escrita sempre será – pelo menos em tempo previsível – coisa para poucas pessoas. É que ela exige muito do seu leitor. Para ser plenamente apreciado, cada poema deve ser lido lentamente, em voz baixa ou alta, ou ainda “aural”, como diz o poeta Jacques Roubaud. Alguns de seus trechos, ou ele inteiro, devem ser relidos, às vezes mais de uma vez. Há muitas coisas a serem descobertas num poema, e tudo nele é sugestivo: os sentidos, as alusões, a sonoridade, o ritmo, as relações paronomásicas, as aliterações, as rimas, os assíndetos, as associações icônicas etc. Todos os componentes de um poema escrito podem (e devem) ser levados em conta. Muitos deles são interrelacionados. Tudo isso deve ser comparado a outros poemas que o leitor conheça. E, de preferência, o leitor deve ser familiarizado com os poemas canônicos. Como eu disse na resposta a outra pergunta, o leitor deve convocar e deixar que interajam uns com os outros, até onde não puder mais, todos os recursos de que dispõe: razão, intelecto, experiência, cultura, emoção, sensibilidade, sensualidade, intuição, senso de humor etc. Sem isso tudo, a leitura do poema não compensa: é uma chatice. Um quadro pode ser olhado en passant; um romance, lido à maneira “dinâmica”; uma música, ouvida distraidamente; um filme, uma peça de teatro, um ballet, idem. Um poema, não. Nada mais entediante do que a leitura desatenta de um poema. Quanto melhor ele for, mais faculdades nossas, e em mais alto grau, são por ele solicitadas e atualizadas. É por isso que muita gente tem preguiça de ler um poema, e muita gente jamais o faz. Os que o fazem, porém, sabem que é precisamente a exigência do poema – a atualização e a interação das nossas faculdades – que constitui a recompensa (incomparável) que ele oferece ao seu leitor. Mas os bons poemas são raridades. A função do poeta é fazer essas raridades. Felizmente elas são anacrônicas, porque nos fazem experimentar uma temporalidade inteiramente diferente da temporalidade utilitária em que passamos a maior parte das nossas vidas.
In: Azougue: edição especial 2006-2008. Organização Sergio Cohn, Pedro Cesarino e Renato Rezende. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.
1.6.08
Ainda a vanguarda
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 31 de maio de 2008:
FSP, 1 de Junho de 2008
ANTONIO CICERO
Ainda a vanguarda
EM ARTIGO que aqui publiquei em 3 do corrente, afirmei que, tendo cumprido a sua função, a vanguarda acabou. Não cheguei, porém, a explicar que uma das principais razões pelas quais penso assim é que estou convencido de que o feito principal da vanguarda enquanto vanguarda não foi de natureza propriamente estética ou artística, mas cognitiva e, mais precisamente, conceitual.
Em outras palavras, não é que, a partir da experiência da vanguarda, a arte tenha ficado melhor do que era, mas que, sobre ela, se aprendeu alguma coisa que não se sabia antes. Deu-se um aprendizado, um progresso cognitivo após o qual se passou a saber algo fundamental, antes não plenamente reconhecido, sobre a natureza da arte.
Com certeza o divórcio mais célebre entre o feito conceitual e o feito estético de uma obra não se deu no campo da poesia, mas no das artes plásticas. Refiro-me, é claro, a "Fontaine", o urinol que Marcel Duchamp pôs de cabeça para baixo e expôs como arte. Como se sabe, a partir de "Fontaine" e do conceito correlato de ready-made, foi profunda e amplamente posto em discussão o próprio conceito de arte. Ou seja, uma peça de valor artístico ou estético praticamente insignificante foi capaz de ter uma importância conceitual incalculável.
Ora, evidentemente, o valor puramente conceitual de uma coisa está naquilo que ela ensinou, e não nela própria. É claro que nada impede que uma obra seja importante tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista conceitual. Se o seu valor é exclusivamente conceitual, porém, ela não passa de veículo para o que ensina. Logo que o que ensina é aprendido, ela passa a ser mero exemplo do que ensinou, dotado, no máximo, de um valor histórico.
Em outras palavras, uma vez realizado o feito conceitual de uma obra puramente cognitiva, ela se torna supérflua. Assim como quem quiser aprender a lei da gravidade fará melhor lendo um livro-texto de física clássica do que os "Principia" de Newton, cujo texto original tem hoje um valor meramente histórico, assim também mais vale ler sobre "Fontaine" e ver as suas fotos do que contemplar uma das suas réplicas (a obra "original" desapareceu há muito tempo). O mesmo jamais poderia ser dito de uma obra dotada de valor estético, como "Les Demoiselles d'Avignon", de Picasso, ou o soneto "Salut", de Mallarmé, cujas presenças são insubstituíveis.
Supor que uma obra importante do ponto de vista cognitivo fosse necessariamente importante do ponto de vista artístico ou estético foi um equívoco comum da vanguarda e dos seus admiradores.
Por outro lado, não perceber ou negar que uma obra estética ou artisticamente insignificante ("Fontaine" é o caso clássico) pudesse ter uma grande importância conceitual e histórica foi o erro dos detratores da vanguarda.
Não só o feito da vanguarda enquanto vanguarda foi primariamente conceitual, mas o que com esse feito se aprendeu pode ser enunciado em poucas palavras. Aprendeu-se, de uma vez por todas, não ser possível determinar nem a necessidade nem a impossibilidade -em princípio- de que a arte empregue qualquer forma concebível. Abriu-se para ela a perspectiva de uma infinidade de caminhos possíveis, porém contingentes. O "gênero" artístico revelou-se como convencional e perdeu toda a importância. A obra de arte não se vale de direitos hereditários ou de prerrogativas de família. Isso não significa que todas as obras se equivalham, mas que cada uma é antes um indivíduo do que um membro de uma espécie ou gênero e que é enquanto indivíduo que exige ser considerada.
Ora, o caminho até essas descobertas -que, no fundo, são o desdobramento de uma só- já foi cumprido e não tem como se estender. Não é possível ir "além" ou voltar "aquém" delas. Nesse sentido, não há mais vanguarda. O seu percurso já foi cumprido e nenhum artista ou crítico moderno pode dar-se ao luxo de ignorá-lo.
No artigo mencionado, eu já havia observado que se, etimologicamente, vanguarda é, como se sabe, o destacamento que, progredindo à frente do grosso do exército, abre caminho para este, de modo que, analogamente, dizem-se vanguarda também os artistas que, progredindo à frente dos demais, abrem caminho para estes, então essa designação só é de fato inteiramente adequada aos artistas cujo progresso não pode deixar de ser reconhecido e assimilado pelos demais.
Tal é o caso do progresso cognitivo que acabo de descrever que, sendo tão irrepetível quanto a descoberta da lei da gravidade, não pode mais ocorrer na arte experimental contemporânea.
FSP, 1 de Junho de 2008
ANTONIO CICERO
Ainda a vanguarda
EM ARTIGO que aqui publiquei em 3 do corrente, afirmei que, tendo cumprido a sua função, a vanguarda acabou. Não cheguei, porém, a explicar que uma das principais razões pelas quais penso assim é que estou convencido de que o feito principal da vanguarda enquanto vanguarda não foi de natureza propriamente estética ou artística, mas cognitiva e, mais precisamente, conceitual.
Em outras palavras, não é que, a partir da experiência da vanguarda, a arte tenha ficado melhor do que era, mas que, sobre ela, se aprendeu alguma coisa que não se sabia antes. Deu-se um aprendizado, um progresso cognitivo após o qual se passou a saber algo fundamental, antes não plenamente reconhecido, sobre a natureza da arte.
Com certeza o divórcio mais célebre entre o feito conceitual e o feito estético de uma obra não se deu no campo da poesia, mas no das artes plásticas. Refiro-me, é claro, a "Fontaine", o urinol que Marcel Duchamp pôs de cabeça para baixo e expôs como arte. Como se sabe, a partir de "Fontaine" e do conceito correlato de ready-made, foi profunda e amplamente posto em discussão o próprio conceito de arte. Ou seja, uma peça de valor artístico ou estético praticamente insignificante foi capaz de ter uma importância conceitual incalculável.
Ora, evidentemente, o valor puramente conceitual de uma coisa está naquilo que ela ensinou, e não nela própria. É claro que nada impede que uma obra seja importante tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista conceitual. Se o seu valor é exclusivamente conceitual, porém, ela não passa de veículo para o que ensina. Logo que o que ensina é aprendido, ela passa a ser mero exemplo do que ensinou, dotado, no máximo, de um valor histórico.
Em outras palavras, uma vez realizado o feito conceitual de uma obra puramente cognitiva, ela se torna supérflua. Assim como quem quiser aprender a lei da gravidade fará melhor lendo um livro-texto de física clássica do que os "Principia" de Newton, cujo texto original tem hoje um valor meramente histórico, assim também mais vale ler sobre "Fontaine" e ver as suas fotos do que contemplar uma das suas réplicas (a obra "original" desapareceu há muito tempo). O mesmo jamais poderia ser dito de uma obra dotada de valor estético, como "Les Demoiselles d'Avignon", de Picasso, ou o soneto "Salut", de Mallarmé, cujas presenças são insubstituíveis.
Supor que uma obra importante do ponto de vista cognitivo fosse necessariamente importante do ponto de vista artístico ou estético foi um equívoco comum da vanguarda e dos seus admiradores.
Por outro lado, não perceber ou negar que uma obra estética ou artisticamente insignificante ("Fontaine" é o caso clássico) pudesse ter uma grande importância conceitual e histórica foi o erro dos detratores da vanguarda.
Não só o feito da vanguarda enquanto vanguarda foi primariamente conceitual, mas o que com esse feito se aprendeu pode ser enunciado em poucas palavras. Aprendeu-se, de uma vez por todas, não ser possível determinar nem a necessidade nem a impossibilidade -em princípio- de que a arte empregue qualquer forma concebível. Abriu-se para ela a perspectiva de uma infinidade de caminhos possíveis, porém contingentes. O "gênero" artístico revelou-se como convencional e perdeu toda a importância. A obra de arte não se vale de direitos hereditários ou de prerrogativas de família. Isso não significa que todas as obras se equivalham, mas que cada uma é antes um indivíduo do que um membro de uma espécie ou gênero e que é enquanto indivíduo que exige ser considerada.
Ora, o caminho até essas descobertas -que, no fundo, são o desdobramento de uma só- já foi cumprido e não tem como se estender. Não é possível ir "além" ou voltar "aquém" delas. Nesse sentido, não há mais vanguarda. O seu percurso já foi cumprido e nenhum artista ou crítico moderno pode dar-se ao luxo de ignorá-lo.
No artigo mencionado, eu já havia observado que se, etimologicamente, vanguarda é, como se sabe, o destacamento que, progredindo à frente do grosso do exército, abre caminho para este, de modo que, analogamente, dizem-se vanguarda também os artistas que, progredindo à frente dos demais, abrem caminho para estes, então essa designação só é de fato inteiramente adequada aos artistas cujo progresso não pode deixar de ser reconhecido e assimilado pelos demais.
Tal é o caso do progresso cognitivo que acabo de descrever que, sendo tão irrepetível quanto a descoberta da lei da gravidade, não pode mais ocorrer na arte experimental contemporânea.
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