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27.5.19

Conferência de Antonio Cicero: "Poesia e música a partir de Homero"



Eis a conferência “Poesia e música a partir de Homero”, que fiz na Academia Brasileira de Letras no dia 16 de maio. Ela fez parte do ciclo de conferências “Poesia cantada: melodia e verso”, sob a coordenação do Acadêmico e jornalista Zuenir Ventura. A Acadêmica e escritora Ana Maria Machado é a coordenadora geral dos ciclos de conferências de 2019.


13.12.09

Fernando Pessoa e os mitos

O seguinte artigo foi publicado sábado, 13 de dezembro, na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo:

Fernando Pessoa e os mitos


"O MITO é o nada que é tudo", diz o famoso primeiro verso do poema "Ulisses", do livro "Mensagem", de Fernando Pessoa. Em anotação de 1930 que devia ser o esboço do prefácio para a edição projetada das suas obras, ele diz: "Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade".

Essa concepção dos mitos como obras parece-me estar de acordo com a concepção homérica. Na cultura oral primária grega, que desconhecia a escrita, "mythos" se opunha a "epos". "Epos" (de onde vem "epopeia", a produção de "epos") é o discurso que se reitera, como as canções, os provérbios, algumas rezas, os epítetos tradicionais dos heróis ou deuses, e cada palavra individual.

"Mythos" é, ao contrário, o que jamais se reitera, como uma conversa qualquer, isto é, aquilo que se diz sobre alguma coisa. Assim, o mito de Édipo, por exemplo, é simplesmente o que se diz sobre Édipo. Pois bem, o que é que se diz sobre Édipo? Para nós é principalmente o que os poetas disseram sobre Édipo; em primeiro lugar, é o que os maiores poemas sobre Édipo disseram sobre ele: e esses são as peças de Sófocles; em segundo lugar, é o que os outros, como Freud, disseram principalmente a partir do que Sófocles dissera. Assim também, o mito de Ulisses é principalmente o que dele nos contam os poemas homéricos; o de Hamlet, principalmente o que dele nos conta Shakespeare etc.

Segundo o historiador Heródoto, foram os poemas de Hesíodo e de Homero que criaram "uma teogonia para os helenos e deram as denominações e as honras e distribuíram as artes e indicaram os aspectos dos deuses".

Assim, Pessoa tem razão quando, em anotação, de 1918, tendo observado que "a religião cristã é essencialmente dogmática, no sentido de que tem princípios assentes, aos quais o crente tem, dentro de estreitos limites, que subordinar-se”, observa que “no paganismo não é assim. A sua ação imaginativa criadora não se sente presa. Pode inventar um belo mito, que, se na verdade for belo ou insinuador, entrará na religião. Tão humana comunhão com a vida dos deuses não é possível no cristismo. O cristão católico tem a liberdade de inventar aparecimentos de Maria a este ou àquele, mas há severos limites às suas faculdades mitopeicas".

Dado que o criador de mitos, como mostra Heródoto, é o poeta, então é o poeta que, ao criar mitos, exerce, segundo Pessoa, "o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade": e é esse poeta que ele pretende ser.

Observo que essa concepção do poeta como criador de mitos está longe de ser trivial em nossa época. Muito mais comum é a contrária, que herdamos do romantismo, mas cuja origem mais remota talvez esteja em Platão. Refiro-me à concepção segundo a qual o mito é um arquétipo imemorial, incriado, que os poetas, por uma espécie de anamnese, recuperam para a comunidade a que pertencem. Para Pessoa, segundo penso, o mito é exatamente o oposto disso: o produto da poesia.

Não é gratuitamente que Pessoa retoma o mito de Ulisses e sua lendária fundação de Lisboa. Seu Portugal representa o mais alto destino não tanto da Grécia, da Europa ou do Ocidente em particular, mas, no fundo, de todos esses e mais, isto é, o destino do mundo moderno. "A arte portuguesa", diz ele em "Ultimatum e Páginas de Sociologia Política", "será aquela em que a Europa (entendendo por Europa principalmente a Grécia Antiga e o universo inteiro) se mire e se reconheça sem lembrar do espelho".

É assim que a verdade profunda do seguinte texto de Pessoa fica mais evidente quando se compreende que a palavra "português" funciona nele como um curinga, podendo ser substituída por "brasileiro", "italiano", "russo" etc.:

"Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistamos já o Mar: resta que conquistemos o Céu [...]. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa! Criemos assim o Paganismo Superior, o Politeísmo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade".

28.6.09

Homero e as Musas

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 28 de junho.



Homero e as Musas


É COMUM O pressuposto de que tanto a consideração puramente estética da obra de arte quanto a autonomia da arte são fenômenos exclusivamente modernos. A verdade, porém, é que, paradoxalmente, já se manifestam modalidades de ambas entre os primeiros poetas gregos cujas obras chegaram até nós.

Como se sabe, os poetas arcaicos se consideravam inspirados pelas Musas, deusas que eles descreviam como filhas de outra divindade, a Memória. Normalmente, essa filiação é interpretada de duas maneiras. Por um lado, supõe-se que ela simbolize o fato de que os poemas preservavam a memória dos feitos originários da comunidade. Assim, o sentido da "Ilíada", de Homero, teria sido manter a memória da Guerra de Troia.

Essa interpretação, porém, é desmentida pelo fato de que a "Odisseia", por exemplo, nada tem a ver com fatos históricos. Ademais, Hesíodo, outro poeta arcaico, fazia suas Musas se gabarem de dizer "muitas mentiras parecidas com a verdade": o que dificilmente fariam, se pretendessem ser as guardiãs da memória do passado.

A outra interpretação se apoia no fato de que a poesia arcaica não era escrita, mas oral. Ela supõe que os poetas recitassem os poemas tradicionais que tivessem memorizado. A deusa Memória simbolizaria a memorização.

Entretanto, o estudo da poesia oral moderna mostrou que, ao recitar os poemas, os poetas orais primários não os repetem palavra por palavra, mas de modo criativo, num processo denominado "composition in performance" (mais ou menos "composição durante a apresentação"), no qual a memorização tem um papel limitado. De fato, Telêmaco, na "Odisseia", afirma serem tanto mais apreciadas as canções quanto mais novas.

Na verdade, tudo indica que os poetas consideram as Musas filhas da Memória, não porque os poemas por elas inspirados guardem a memória de outras coisas, ou porque sejam memorizáveis, mas porque são memoráveis. Já os primeiros poetas líricos, como Píndaro, jactavam-se de que a memorabilidade dos seus poemas conferia memorabilidade também às pessoas de que tratavam.

Mas por que o poeta faz questão de atribuir às Musas e não a si próprio a capacidade de produzir o memorável? Que Homero, por exemplo, faz questão disso, mostra-o a lenda, por ele relatada, do poeta Tâmiris, o Trácio. Atribuindo a si próprio a genialidade dos seus poemas, Tâmiris desafiou as Musas para um duelo. Tendo sido derrotado, as Musas lhe tomaram o talento e a visão.

No fundo, o poeta faz questão de depender das Musas porque tal associação o enobrece. Ele se considera o discípulo e o favorito das deusas. Assim, de certo modo, é como se delas descendesse. Homero faz Ulisses declarar que "entre todos os homens da terra, os poetas merecem honra e respeito, pois a eles a Musa, que ama a raça dos poetas, ensinou".
Com isso, o poeta conquista a liberdade de cantar, nas palavras de Telêmaco, na "Odisseia", "por onde quer que a mente o conduza". Se não tivesse sido atribuída origem divina às palavras do poeta, elas jamais teriam conquistado semelhante liberdade.

Há uma circularidade evidente no fato de que quem legitima a liberdade do poeta sejam as Musas, mas quem garanta a existência das Musas seja o poeta. Só a evidência de que ele esteja possuído pela divindade quebra tal círculo. Ora, a natureza da evidência de que as Musas possuem o poeta é sugerida pelos versos nos quais o poeta Teógnis afirma que as Musas cantavam "um belo poema: o belo é nosso, o não belo não é nosso".

A beleza dos poemas – que é o que os torna memoráveis – é prova de sua origem divina, e sua origem divina legitima a liberdade do poeta. Por direito, seus poemas são belos por serem divinos; de fato, porém, são divinos por serem belos.

Logo, a primeira preocupação do poeta não é fazer o poema "verdadeiro", mas fazer, por onde quer que, para tanto, sua mente – sua Musa – o leve, o poema inesquecivelmente belo, o poema memorável pela sua beleza; e a primeira exigência do seu público não é escutar um poema "verdadeiro", mas um poema cuja origem se encontre na dimensão da divindade ou, o que dá no mesmo, um poema que lhe dê prazer estético, pois o "cantor divino" é, como se lê na "Odisseia", aquele que "delicia ao cantar".

Uma vez que o puro esplendor do poema constitui a prova da sua autoria divina, nele as considerações morais ou religiosas se subordinam a considerações estéticas.
Se, como diz Goethe, os gregos sonharam mais esplendidamente o sonho da vida é porque -agora sou eu que o digo- sonharam sonhos de poetas e não de profetas, pastores ou sacerdotes.

5.10.08

Que é a poesia?

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo sábado, 4 de outubro:




Que é a poesia?

Para dizer o que penso ser a poesia, recorro, em primeiro lugar, ao poema "O Rio", de Manuel Bandeira:

“O rio

Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.”

Desde o título, "O Rio", torna-se inevitável pensar no famoso rio do filósofo grego Heráclito, em que não é possível pisar duas vezes. O primeiro verso reforça essa impressão: "Ser como o rio"... Mas a sentença de Heráclito – aparte certas interpretações recherchées – enfatiza o mobilismo universal, o fato de que coisa nenhuma jamais permanece a mesma. O rio de Bandeira, ao contrário, é em primeiro lugar a própria imagem da constância e até de um certo estoicismo: "Ser como o rio que deflui/ Silencioso dentro da noite./ Não temer as trevas da noite".

O rio a defluir silenciosamente dentro da noite não teme as trevas da noite porque ele é também o rio da noite, isto é, a noite enquanto rio. O infinitivo aqui é implicitamente desiderativo: ele manifesta um desejo. Mas quem é que aqui deseja? Talvez se possa dizer que aquele que deseja é o poeta, ou talvez o "eu" lírico, o heterônimo, o personagem em que o poeta se transforma para escrever o poema; mas o infinitivo excede qualquer subjetividade, qualquer "eu". A rigor, não interessa quem deseja, mas apenas o próprio desejo, que se identifica com o ser. Feito um fenômeno da natureza, feito o próprio rio silencioso dentro da noite e feito a própria noite, o desejo, o ser, os versos do poema e o próprio poema estão lá, no infinitivo, silenciosos como o rio e como a noite. Fundem-se no poema o leitor, o poeta, a noite, o rio, as estrelas: "Se há estrelas nos céus, refleti-las./ E se os céus se pejam de nuvens,/ Como o rio as nuvens são água,/ Refleti-las também sem mágoa / Nas profundidades tranqüilas".

Se há estrelas nos céus, o poema as tem na superfície. Se há nuvens que o impedem de refletir as estrelas, aquelas são refletidas na profundidade do seu ser, pois as nuvens são feitas da mesma água que ele. Aqui é de Tales, o primeiro filósofo grego, para quem tudo vem da água e tudo volta para a água, mais do que de Heráclito, que me lembro.

E me lembro sobretudo do poeta Jorge Luis Borges, cujo poema “Nuvens (I)” – do qual apresento a seguir uma tradução literal, seguida do original – diz:

“Nuvens (I)

Não haverá uma só coisa que não seja
uma nuvem. São nuvens as catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o tempo aplanará. São nuvens a Odisséia
que muda como o mar. Algo há distinto
cada vez que a abrimos. O reflexo
de tua cara já é outro no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A numerosa
nuvem que se desfaz no poente
é nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte noutra rosa.
És nuvem, és mar, és olvido.
És também aquilo que perdeste”.

"Nubes (I)

No habrá una sola cosa que no sea
una nube. Lo son las catedrales
de vasta piedra y bíblicos cristales
que el tiempo allanará. Lo es la Odisea,
que cambia como el mar. Algo hay distinto
cada vez que la abrimos. El reflejo
de tu cara ya es otro en el espejo
y en el día es un dudoso laberinto.
Somos los que se van. La numerosa
nube que se deshace en el poniente
es nuestra imagen. Incesantemente
la rosa se convierte en otra rosa.
Eres nube, eres mar, eres olvido.
Eres también aquello que has perdido."


As nuvens são as transformações da água originária, isto é, são todos os entes que o tempo aplanará. Também são nuvens os versos do poema de Homero. Há entretanto uma diferença: os entes em geral perderam a memória de sua origem aquática e se esqueceram de que são nuvens. A "Odisséia", porém – o poema por antonomásia –, muda como o mar. Algo há distinto cada vez que a abrimos. Eis a diferença entre o poema e os demais entes: o poema jamais olvida, no fluxo de sua superfície significante, morfológica, sintática, melódica, rítmica e de suas submersas correntes semânticas, a natureza líquida de todas as coisas e, principalmente, de si próprio.

Lembro que outro dos primeiros filósofos gregos, Anaximandro, dizia que todos os entes determinados provêm do indeterminado (que ele chamava "ápeiron") e têm como causa o indeterminado – que podemos entender como o movimento, a mudança, a vida, o tempo – do qual provêm. Em cada um deles, porém, o indeterminado se transformou em algum ente determinado. Também o poema é um ente determinado, mas um ente determinado que, refletindo o seu oposto, porta em si a marca d'água do movimento originário. Não apenas, cada vez que o lemos, ele se torna diferente do que era na leitura anterior, mas se torna diferente de si próprio no exato instante em que o estamos a ler. Chamo "poesia" essa propriedade do poema.

31.8.08

Platão: do "Simpósio"

Do discurso de Fedro sobre o amor, do Simpósio, de Platão:



[...] Mas Orfeu, filho de Eagro, foi de mãos vazias expulso do Hades pelos deuses, que lhe mostraram uma imagem da mulher pela qual ele viera, mas não a entregaram em pessoa, pois ele lhes pareceu ter fraquejado – mero cantor que era – por não ter tido a coragem de morrer, como Alceste, pelo seu amor, e ter maquinado entrar vivo no Hades. E foi por essa razão que eles o justiçaram, fazendo-o morrer pelas mãos de mulheres; ao contrário de Aquiles, filho de Tétis, a quem honraram e enviaram para as ilhas dos bem-aventurados, já que ele, embora informado pela mãe de que morreria, caso matasse Heitor, e que, se não o fizesse, regressaria para casa e terminaria seus dias na velhice, ousou preferir defender seu amante, Pátroclo, e vingá-lo; e assim morreu não apenas pelo seu amante mas para segui-lo: por isso os deuses o admiraram a tal ponto – por ter valorizado seu amante acima de tudo – que o honraram de modo tão magnífico. E Ésquilo diz tolice, quando afirma que Aquiles era o amante de Pátroclo, pois Aquiles era mais belo, não só do que Pátroclo, mas do que todos os outros heróis, e era ainda imberbe, logo muito mais jovem, como diz Homero. Pois na verdade a virtude mais honrada pelos deuses é a que diz respeito ao amor, e admiram e prezam e recompensam mais o carinho do amado pelo amante do que o do amante pelo amado: pois é mais divino o amante do que os rapazes que ama, já que está possuído por um deus: por isso Aquiles foi mais honrado que Alceste, quando foram enviados às ilhas dos bem-aventurados. [...]




De: PLATÃO. "Symposium". Platonis opera. Vol.2. BURNET, John (Org.). Oxford: Clarendon Press, 1901.


Texto grego:


14.8.08

Homero: verso da Ilíada

26.3.08

Rosa Maria Martelo: Proteu e a forma

Eis a recensão do meu livro Finalidades sem fim, feita pela brilhante ensaísta e professora da Universidade do Porto, Rosa Maria Martelo, e publicada na revista Relâmpago:


Proteu e a forma

Antonio Cícero, Finalidades sem Fim, Quasi Edições, 2007
Rosa Maria Martelo

Em Finalidades sem Fim, Antonio Cicero reuniu um conjunto de nove ensaios, escritos entre 1998 e 2003. Um desses ensaios é inédito, os restantes tinham sido objecto de publicação dispersa, em revistas ou obras colectivas. Conforme é dito na “Introdução”, alguns dos estudos assim coligidos sofreram modificações significativas aquando da preparação deste volume. E talvez esse seja um dos motivos pelos quais, ao ler estes ensaios, não é difícil captar um certo “ar de família” entre todos eles, embora esse “ar de família” tenha certamente menos a ver com o momento da organização de Finalidades sem Fim do que com o facto de, ao longo deste livro, se desenhar uma reflexão conduzida por um conjunto de questões articuladas de forma continuada e pessoal, o que nos permite acompanhar um pensamento em processo.

Neste livro, a elaborada formação filosófica do poeta Antonio Cicero é predominantemente orientada para a compreensão da poesia e, num sentido mais lato, da criação artística. Como o Autor esclarece no texto de abertura, “sete ensaios tratam de poesia; um, de música; outro, de pintura” (9). Porém, muitas das questões tratadas são comuns a diferentes campos da arte. Ainda na “Introdução”, Antonio Cicero lembra um dito de Goethe – “Poeta e artista: aquele é gênero, este é espécie” (9) – para acrescentar: “Aceitemos, ao menos provisoriamente, essa qualificação, de modo que me baste, doravante, dizer «poeta» ou «poesia» para significar artista e arte”. E, de facto, é muitas vezes no entrecruzar de poesia e arte (reunidas num sentido amplo de poiesis) que se desenvolve o pensamento elaborado nestes nove ensaios.

Antonio Cicero comentou numa entrevista que, muito mais do que estar preocupado com conhecer um pouco de tudo aquilo que se vai publicando, lhe interessavam os seus livros, acrescentando que muitos deles eram de autores clássicos, lidos na língua original. É uma afirmação que logo associo a um comentário de Eduardo Lourenço, que me lembro de ter ouvido referir, também numa entrevista, creio eu, o quanto tinha sofrido a olhar para a incomensurável extensão das paredes das bibliotecas sabendo que nunca poderia ler tudo quanto gostaria. Isto – explicava depois – até ter compreendido que um leitor apenas precisa de ler os seus livros. Saber quais são os nossos livros demora um certo tempo e passa pelo repetido desacerto de muitos desencontros, mas é verdade que – a partir de uma certa altura, pelo menos – é assim: temos os nossos livros, com os quais nos habituámos a pensar. Ora quando comecei a ler Finalidades sem Fim, não foram precisas muitas páginas para eu me lembrar de um dos meus livros, que é um pequeno ensaio de Jean-Luc Nancy, onde encontrei há alguns anos uma frase que, subitamente, condensava e reapresentava de forma límpida uma série de questões que para mim eram, e são, importantes: “A poesia” – escrevia Nancy – “não coincide consigo mesma: talvez seja essa não-coincidência, essa impropriedadde substancial, aquilo que faz propriamente a poesia”. No essencial, trata-se de uma afirmação que exclui a possibilidade de uma definição essencialista da poesia, mas ao mesmo tempo a define, embora através do movimento de auto-transformação criadora pelo qual a poesia se lança num permanente devir outra coisa que não o que nela possamos reconhecer, circunstancialmente, como poético.

À medida que ia lendo o primeiro ensaio de Finalidades sem Fim, “Poesia e paisagens urbanas”, que coloca a poesia sob o signo do desenraizamento, fui reconhecendo esta questão. E ela assume no livro um lugar tão significativo que, não por acaso, o fragmento do primeiro ensaio onde ela surge resumida reaparece, parcialmente, na contracapa do livro:

"(...) o verdadeiro poeta faz questão de ser fiel à poesia propriamente dita, mas não necessariamente às aparências acidentais que ela terá assumido e que a contingência histórica terá posto à disposição dele. (...) A poesia deve chegar a ser o que é. É para ser fiel à poesia em si que o verdadeiro poeta se insubordina não somente contra a poesia convencional, mas contra o olhar ou a apreensão convencional da poesia. (...) Contra essa concepção domesticada da poesia, o verdadeiro poeta se impõe uma tarefa dupla: por um lado, revelar a poesia em estado essencial e selvagem e, por outro, desmantelar as convenções que a elidem ou domesticam. (15-16)"

Como Antonio Cicero lembra a seguir, foi na passagem do séc. XIX para o séc. XX, com a emergência das vanguardas, que se radicalizou este entendimento, pelo qual a poesia se desidentifica das formas que simultaneamente permitem o seu reconhecimento. Entender que, para a poesia chegar a ser o que é, se torna necessário libertá-la de todo o convencionalismo, quando simultaneamente sabemos que essa libertação institui outros convencionalismos, que geram novos actos de libertação, e entender que nesse constante devir se inscreve a fidelidade à poesia, não estará muito longe da valorização, por parte de Jean-Luc Nancy, de uma não-coincidência da poesia consigo mesma, de uma impropriedade substancial, como sendo o ponto onde mais devemos esperar compreender o que a poesia é. E simplificando, mas num breve texto como este não posso senão simplificar, creio poder dizer que Finalidades sem Fim roda em torno desta questão (alargando-a ao campo das artes plásticas e da música), abrindo-a e reabrindo-a a partir de vários ângulos.

Neste primeiro ensaio, a questão do desenraizamento (do desenraizamento urbano, mas também do desenraizamento em sentido lato) conduz à revisitação das vanguardas e depois à ideia de ruptura que normalmente lhes vem associada, para deixar claro que a ruptura é “um subproduto” (18) de um outro movimento, esse sim, essencial: a relativização das formas antigas (19), a demonstração do carácter acidental das formas (18). Antonio Cicero dedica algum tempo a demonstrar o carácter eminentemente conceptual da experiência das vanguardas, deixando claro que, nelas, esta dimensão prevalece sobre a dimensão estética e que a grande herança deixada pelas vanguardas históricas foi a do reconhecimento de não podermos dizer “ex ante o que vai contar como poesia e o que não” (23). É, no dizer de Antonio Cicero, o levar “às últimas consequências as possibilidades de desenraizamento e urbanidade presentes na própria escrita alfabética”, da qual teria partido a progressiva consciência da contingência das formas. (24).

Assim, o ensaio seguinte é dedicado à poesia de Waly Salomão, que Antonio Cicero procura subtrair ao peso dos clichés que pesam sobre a imagem pública do autor, passando o terceiro ensaio para o domínio da música – “O tropicalismo e a MPB”. O modo como é lida a MPB, isto é, a valorização levada a cabo por Antonio Cicero do que considera ser “a elucidação conceitual empreendida pelo tropicalismo”, que “mostra que a MPB não tem limites preestabelecidos, pois não tem essência” (60), aproxima a sua análise do tropicalismo do que anteriormente descrevera como o movimento essencial das vanguardas históricas. Analogamente, também neste caso se trata, em seu entender, de destruir “as bases sobre as quais se consideravam como essencial ou privilegiadamente brasileiros determinados géneros ou formas, em detrimento de outros” (60), abrindo tanto o espaço da tradição como o da contemporaneidade. Estaríamos, assim, num espaço de consumação da modernidade, agora observado no plano musical. Antes, no primeiro ensaio que referi, Antonio Cicero tinha afirmado que o grande feito das vanguardas fora o seguinte: “Aprendemos, de uma vez por todas, não ser possível determinar nem a necessidade nem a impossibilidade – em princípio – de que a poesia empregue qualquer forma concebível. Abriu-se para ela a perspectiva de uma infinidade de caminhos possíveis, porém contingentes” (22). A modernidade da MPB estaria, naturalmente, na assimilação deste aprendizado no plano musical.

No contexto deste tipo de reflexões, o leitor não se surpreende com o título dos dois ensaios seguintes: “Drummond e a modernidade” e “Limites do moderno, ou de Mário de Andrade?”. Um aspecto muito interessante do ensaio dedicado a Carlos Drummond de Andrade passa pela recuperação da leitura que vinha sendo feita do papel das vanguardas, lembrando Antonio Cicero que “[a]ntes de desfetichizar as formas tradicionais, a vanguarda as manteve fetichizadas, porém inverteu o valor desse feitiço. Se tradicionalmente as formas convencionais haviam sido as únicas formas admissíveis na poesia, a vanguarda passou a tomá-las como as únicas formas inadmissíveis na poesia” (64).

A questão da contingência das formas é igualmente observada a partir do estudo do modernismo na pintura. No ensaio “A época da crítica: Kant, Greenberg e o modernismo”, Antonio Cicero demonstra que o desejo de uma pintura pura permite descobrir “o carácter acidental da própria pintura em relação à arte” (175). Esta questão acabará por estar presente ao longo de todo o livro, contribuindo, também ela, para que Finalidades sem Fim se leia mais como um longo ensaio em várias partes do que como um conjunto diversificado de ensaios, mesmo se os textos deste livro têm temas muito diferentes entre si. De certa maneira, é ainda esta questão, captada num momento absolutamente matricial, aquela que vai orientar toda a reflexão conduzida no último ensaio do livro, “Epos e Muthos em Homero”. Ao procurar distinguir rigorosamente estas duas noções, a partir de várias ocorrências nos poemas homéricos, e avaliando todas as implicações de se ver na primeira o discurso e na segunda o tema (236), o dizer e o dito (mas em modulações extremamente criteriosas que esta simples designação não pode senão trair), Antonio Cicero conclui:

"Por fim, deve-se sublinhar ainda outro efeito surpreendente da afirmação por Homero do caráter épico dos seus poemas. É que, ao reiterar manifestamente a própria canção divina das Musas, isto é, a canção-tipo, o poeta se libera da obrigação de imitar qualquer instância prévia, que dizer, qualquer variante particular da mesma canção entre os humanos. Se fosse obrigado a imitar um modelo humano, não estaria à altura nem mesmo desse modelo. É por – e para – beber da fonte das Musas que o poeta se sente, per impossibile, obrigado a realizar algo que, jamais tendo sido feito antes, encontra-se à altura daquilo que de melhor fizeram os poetas que o antecederam ou que lhe são contemporâneos. Da fonte da tradição – fons et origo – jorra a invenção." (246-7)

A distinção entre epos e muthos fora já o ponto de partida para o ensaio anterior, “Proteu”, onde Antonio Cicero, depois de analisar a narrativa feita por Menelau a Telémaco, na Odisseia, do seu encontro com Proteu, e depois de assinalar neste velho deus do mar e sua filha uma tensão entre o fluxo (o movimento) e a forma (186), passa pelas difíceis relações de Platão com os poetas, e por Anaximandro, analisando pormenorizadamente as suas posições. Destaco a conclusão:

"Toda a forma consiste num momento estancado e preservado do movimento do qual provém. Também o poema é uma forma, mas uma forma que porta em si a marca-d’água do movimento. Ele reflete no seu próprio ser o movimento originário. O poema é a forma que incorpora em si o seu oposto, isto é, o ápeiron, que é a poesia. Cada vez que o lemos, ele se torna diferente não só do que era na leitura anterior, mas de si próprio no exato instante em que o estamos a ler: Proteu nos braços de Eidotéia." (204)

Talvez não sejam precisos mais exemplos para deixar claro que há uma problemática única a atravessar o livro Finalidades sem Fim, fazendo dos vários ensaios diferentes tentativas de responder a interrogações afins ou complementares. Em “Poesia e Filosofia”, questões como a da sobrecodificação do poema, “dotado de um[n] altíssimo grau de escritura” (93) que Antonio Cicero associa à indissociabilidade entre significado e significante (96) e à intraduzibilidade, conduzem-nos novamente a uma noção afim da de epos: “os poemas são mais escritos porque são mais fixos que os não-poemas”, o que eles dizem não se separa do modo como dizem, do que são enquanto ocorrência de discurso (cf. 106). É, de resto, esta consideração do poema que faz dele “um objeto artificial desprovido, portanto, de fim, isto é, de causa final” (111).

Antonio Cicero recorda a explicação kantiana de que “a beleza se encontra na finalidade sem fim”, para poder demonstrar que, na sua hiper-codificação e despragmatização, o poema suscita uma apreensão estética, isto é: “livramo-nos do cálculo utilitário ou moral justamente para deixar que a obra, resplandecente provoque em nós o jogo livre das faculdades cognitivas” (119). Proteu nos braços de Eidotéia, a forma que contém em si a marca d’água do movimento, a irrupção do informe e a expectativa da forma. Sobre esta margem, a poesia e as outras artes constroem uma consciência crítica e estética que as abre ao devir. E é também sobre essa mesma margem que Antonio Cicero desenvolve uma muito estimulante reflexão sobre a poesia e as artes.



De: MARTELO, Rosa Maria. "Proteu e a forma". Recensão de 'Finalidades sem fim', de Antonio Cicero. In: Relâmpago. Revista de poesia. Lisboa, nº 21, outubro de 2007, p.223-226.

8.2.08