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25.6.21

Waly Salomão: "Olho de lince"

 



Olho de lince


quem fala que sou esquisito hermético

é porque não dou sopa estou sempre elétrico

nada que se aproxima nada me é estranho

                fulano sicrano e beltrano

seja pedra seja planta seja bicho seja humano

quando quero saber o que ocorre à minha volta

ligo a tomada abro a janela escancaro a porta

experimento invento tudo nunca jamais me iludo

quero crer no que vem por beco escuro

me iludo passado presente futuro

                    urro arre i urro

viro balanço reviro na palma da mão o dado

                       futuro presente passado

tudo sentir total é chave de ouro do meu jogo

é fósforo que acende o fogo de minha mais alta razão

na seqüência de diferentes naipes

                       quem fala de mim tem paixão








SALOMÃO, Waly. "Olho de lince". In:_____. "Waly Salomão". In: MORICONI, Ítalo (org.). Destino poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

3.4.21

Waly Salomão: "Clandestino"

 



Clandestino


para Adriana Calcanhotto



vou falar por enigmas

apagar as pistas visíveis

cair na clandestinidade.

descer de pára-quedas

/camuflado/

numa clareira clandestina

da mata atlântica.


já não me habita mais nenhuma utopia

animal em extinção,

quero praticar poesia

– a menos culpada de todas as ocupações.


já não me habita mais nenhuma utopia.

meu desejo pragmático-radical

é o estabelecimento de uma reserva de ecologia

– quem aqui diz estabelecimento diz ESCAVAÇÃO –

que arrancará a erva daninha do sentido ao pé-da-letra,

capinará o cansanção dos positivismos e literalismos,

inseminará e disseminará metáforas,

cuidará da polinização cruzada,

cultivará hibridismos bolados pela engenharia genética,

adubará e corrigirá a acidez do solo,

preparará a dosagem adequada de calcário,

utilizará o composto orgânico

excrementado

pelas minhocas fornicadoras cegas

e propagará plantas por alporque

ou por enxertia.


já não me habita mais nenhuma utopia.


sem recorrer

ao carro alegórico:

olhar o que é,

como é, por natureza, indefinido.

quero porque quero o êxtase,

uma réplica reversora da república de Platão

agora expulsando para sempre a não-poesia

da metamorfose do mundo.


já não me habita mais nenhuma utopia.

bico do beija-flor suga glicose.

no camarão

em flor.


(de um livro em preparação, sem nome fixo)





SALOMÃO, Waly. "Clandestino". In:_____ "Pescados vivos". In:_____ Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

15.5.20

Waly Salomão: "RIO(COLOQUIAL-MODERNISTA).DOC"




RIO(COLOQUIAL-MODERNISTA).DOC



O deus que banha o Rio de Janeiro

fica murrinha nos dias sem sol.

Mas é só o sol brilhar:

o Rio arreganha suas sem-vergonhas,

e o deus experimenta

novíssimas aptidões

para o prazer.



Aí o deus e o Rio se esparramam no tempo,

sem ziquiziras.






SALOMÃO, Waly. "RIO(COLOQUIAL-MODERNISTA).DOC". In:_____. "Algaravias: câmara de ecos". In:_____. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

21.8.19

Waly Salomão: "Cobra-coral"




Cobra-coral

Para de ondular, agora, cobra-coral:
a fim de que eu copie as cores com que te adornas,
a fim de que eu faça um colar para dar à minha amada,
a fim de que tua beleza
                    teu langor
                    tua elegância
                              reinem sobre as cobras não corais





SALOMÃO, Waly. "Cobra-coral". In:_____. "Tarifa de embarque". In:_____. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

23.5.19

"Poesia e Prosa": programa de Maria Bethania em homenagem a Waly Salomão




Assistam à bela homenagem que Maria Bethania fez ao poeta Waly Salomão, em seu programa "Poesia e Prosa", no canal Arte 1. Do programa participaram José Miguel Wisnik, Jards Macalé e Antonio Cicero.


9.8.18

Waly Salomão: "Tlaquepaque"



Tlaquepaque


Há que haver manjar dos deuses para aquele que descrê dos deuses

Meus pés esfolados recorrem becos, vielas, ruas,

avenidas intermináveis,

sem fonte alguma desencadear.

Busco tal ou qual cosmético – aceite de jojoba – como Édipo
[arrancava os próprios olhos

E Antígona escavava a terra para contra a lei do estado dar
[sepultura ao corpo familiar amado.

Há que haver ambrosia para aquele que descrê dos deuses.





SALOMÃO, Waly. "Tlaquepaque". In:_____. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

30.5.18

Waly Salomão: "Câmara de ecos"



Câmara de ecos

Cresci sob um teto sossegado,
meu sonho era um pequenino sonho meu.
Na ciência dos cuidados fui treinado.

Agora, entre meu ser e o ser alheio
a linha de fronteira se rompeu.



SALOMÃO, Waly. "Câmara de ecos". In:_____. "Algaravias: Câmara de ecos [1996]". In:_____. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.


1.4.17

Eu, Waly Salomão e Derek Walcott


Eu, Waly Salomão e Derek Walcott, na casa deste, na ilha de
Saint Lucia, no Caribe, em 1994.















Em 1994, o poeta Waly Salomão e eu fomos -- graças ao apoio de
Ana Lucia Magalhães Pinto, que dirigia o departamento cultural do
Banco Nacional -- à Ilha de Saint Lucia, para convidar o poeta
Derek Walcott a vir ao Brasil, participar do ciclo internacional de
conferências intitulado "Banco Nacional de Ideias", que Waly e eu
organizamos até 1995. O poeta caribenho veio e pronunciou uma
bela palestra em São Paulo.


23.7.16

J.P. Cuenca: "Tudo é teatro"




Ontem foi publicado na Folha de São Paulo o seguinte ótimo artigo de João Paulo Cuenca:


Tudo é teatro

Feira de livros, cidade do interior. Depois de um debate aproxima-se uma estudante e pergunta, sem qualquer vestígio de timidez: "Você é um personagem?" Não sei o que dizer. Respondo algo como "acho que sim". E ela retruca: "O tempo inteiro?"

No prefácio da edição da Aeroplano de "Me segura qu'eu vou dar um troço" (1972), livro do Waly Salomão recém reeditado pela Companhia das Letras, o Antônio Cícero lembra da prisão do poeta e o cita numa entrevista: "Eu transformava aquele episódio, teatralizava logo aquele episódio, imediatamente, na própria cela, antes de sair. Eu botava como personagens e me incluía, como Marujeiro da Lua. Eu botava como personagens essas diferentes pessoas e suas diferentes posições no teatro: tinha uma Agente Loira Babalorixá de Umbanda, tinha um Investigador Humanista e o investigador duro. O que quer dizer tudo isso? Você transforma o horror, você tem que transformar. E isso é vontade de quê? De expressão, de que é isso? Não é a de se mostrar como vítima."

A teatralização da vida e dos seus dramas, hoje concentrada no smartphone onde metade dos leitores lerá este texto, não é de hoje –e muito menos dos anos 1970, que o diga o engenhoso fidalgo mais famoso de todos. O tema pode ser iluminado de diferentes ângulos, mas o que me traz aqui é o que o Cícero tira dessa declaração do Waly Salomão.

Ele escreve: "A vítima é o objeto nas mãos do outro. Todos nós já fomos vítimas de diferentes coisas, em diferentes momentos; porém é preciso ativamente rejeitar esses momentos, relegando-os, ainda que recentíssimos, ao passado –ainda que recentíssimo. Quem aceita a condição de vítima no presente, quem diz: "sou vítima" está, ipso facto, a tomar como consumada a condição de não ser livre. É contra essa atitude de implícita renúncia à liberdade que Waly teatraliza sua situação."

A teatralização defendida por Cícero –e por Waly– não deve ser interpretada como simples defesa do delírio dentro de um esquema binário entre realidade e imaginação. A proposta não é escapista, muito pelo contrário: trata-se de estar profundamente acordado. "Não se trata de opor o teatro ao não-teatro. O que ele julga é, antes, que tudo é teatro."


A potência desse teatro, máquina que rejeita autocomiseração, está numa certa posse de si, mesmo em momentos extremos. No limite, o único poder que temos é sobre nossa própria consciência. É ela –não as prisões que habitamos, corpos ou celas– que faz de nós quem somos. Os personagens de nós mesmos que somos.



21.7.16

Waly Salomão e eu: foto de Bob Wolfenson




Tenho muita saudade de Waly Salomão. Ontem Arthur Nogueira me lembrou da seguinte foto, que o grande Bob Wolfenson tirou de nós dois:



10.3.16

Waly Salomão: "Em face dos últimos acontecimentos"




EM FACE DOS ÚLTIMOS ACONTECIMENTOS


Na minha mente é que as rosas desabrocham
E esplendem
E aí quedam
                    -- ai de mim! --
Num instante de tempo muito mais acelerado
Do que a esbaforida eternidade de um dia
Das rosas do poeta Malherbe.



SALOMÃO, Waly. "Em face dos últimos acontecimentos". In: "Tarifa de embarque". In:_____. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.




2.1.16

Waly Salomão: "Dona de castelo"




Dona de castelo

amor perfeito
amor quase perfeito
amor de perdição paixão que cobre
todo o meu pobre peito pela vida afora
vou-me embora embromadora
você para mim agora
passa como jogadora
sem graça nem surpresa
diga que perdi a cabeça
se eu me levantar da mesa e partir
antes do final do jogo
louco seria prosseguir essa partida
peça falsa que se enraíza
e faz negro todo meu desejo pela vida afora
vou-me embora, embromadora
e quando eu saltar de banda
e quanto eu saltar de lado
vou desabar seu castelo de cartas marcadas
e tramas variadas
SIM
seu castelo de baralho vai se desmanchar
desmantelado
decifrado
sobre o borralho da sarjeta
CHEGOU O INVERNO


                                             letra musicada por Jards Macalé





SALOMÃO, Waly. "Dona de castelo". In:_____. Gigolô de bibelôs. São Paulo: Brasiliense, 1983.

3.8.15

Waly Salomão: "Fallax opus"





FALLAX OPUS

OBRA ENGANADORA
                   
           Como se fosse dialogando com Zé Celso Martinez Correia


– Falar é fogo-fátuo

Chego e constato:
– Teatro não se explica
Teatro é ato

Afônico sim, afásico não
Eu, poeta, perco a voz
E quase me some o nume
Ícaro caído
Asas crestadas pelo sol
Dos refletores
Caricatura de Ícaro
Sapecado

Estatelado no átrio pergunto:
– Aonde eu entro?
Onde eu entro?

Um eco cavo cavernoso retruca:
– No entreato
No entreato
No entreato



SALOMÃO, Waly. "Fallax opus". In:_____. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

26.6.15

Waly Salomão: "Tarifa de embarque"




Sou sírio. O que é que te assombra, estrangeiro,
Se o mundo é a pátria em que todos vivemos,
Paridos pelo caos?"
- Meleagro de Gádara, 100 anos a.C.




"Tarifa de embarque"

Não te decepciones
ao pisares os pés no pó
que cobre a estrada real de Damasco.
Não descerres cortinas fantasmagóricas:
camadas de folheados
- água de flor de roseira
- água de flor de laranjeira –
que guloso engolias,
gravuras de aldeãs portando ânforas ou cântaros,
cartões do templo de Baal
e das ruínas do reino de Zanubia em Palmira,
fotos do Allepo, Latakia, Tartus, Arward
que em criança folheavas nas páginas da revista Oriente
na idade de ouro solitária e febril
por entre as pilhas de fardos de tecidos
da loja Samira;
arabescos, poços, atalaias, minaretes, muezins,
curvas caligrafias torravam teus cílios, tuas retinas
no vão afã de erigires uma fonte e origem e lugar ao sol
na moldura acanhada do mundo.
Síria nenhuma iguala a Síria
que guardas intacta na tua mente régia.
Nunca viste o narguilé de ouro que tua avó paterna
- Kadije Sabra Suleiman-
exibia e fumava e borbulhava nos dias festivos
da ilha de Arward.
Retire da tela teu imaginário inchado
de filho de imigrante
e sereno perambule e perambule desassossegado
e perambule agarrado e desgarrado perambule
e perambule e perambule e perambule.
Perambule
- eis o único dote que as fatalidades te oferecem.
Perambule
- as divindades te dotam deste único talento. 



SALOMÃO, Waly. "Tarifa de embarque". In:_____. "Tarifa de embarque". In:_____. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 


2.6.15

Waly Salomão: "Hoje"





HOJE

                                para Chico Alvim


O que menos quero pro meu dia
polidez,boas maneiras.
Por certo,
                 um Professor de Etiquetas
não presenciou o ato em que fui concebido.
Quando nasci, nasci nu,
ignaro da colocação correta dos dois pontos,
do ponto e vírgula,
e, principalmente, das reticências.
(Como toda gente, aliás...)

Hoje só quero ritmo.
Ritmo no falado e no escrito.
Ritmo, veio-central da mina.
Ritmo, espinha-dorsal do corpo e da mente.
Ritmo na espiral da fala e do poema.

Não está prevista a emissão
de nenhuma “Ordem do dia”.
Está prescrito o protocolo da diplomacia.
AGITPROP – Agitação e propaganda:
Ritmo é o que mais quero pro meu dia-a-dia.
Ápice do ápice.

Alguém acha que ritmo jorra fácil,
pronto rebento do espontaneísmo?
Meu ritmo só é ritmo
quando temperado com ironia.
Respingos de modernidade tardia?
E os pingos d’água
dão saltos bruscos do cano da torneira
              e
passam de um ritmo regular
para uma turbulência
               aleatória.

Hoje...



SALOMÃO, Waly. "Hoje". In:_____. "Algaravias". In:_____. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

13.10.14

A Biblioteca de Grifos de Waly Salomão




Clique para ampliar:
 



19.8.14

Waly Salomão: "Garrafa"





Garrafa

Vá dizer aos camaradas
Que fui para o alto-mar
E que minha barca naufraga.

Leme partido.
Casco arrombado.
Sem farol afunda
Nas pedras dos arrecifes.

Bandeira aos farrapos. Nenhuma estrela guia
Célere desce lá do céu para minha companhia.
Destroços: proa, velame, quilha,
prancha, rede de pescar, arpão,
bússola, astrolábio, boia, sonar...

Que fui para o alto-mar
E que Medina e Meca já não significam
                                 mais nada para mim.

Entrevado
Vista turva
Porto nenhum avisto
Nas trevas da cerração.

Pelejo entre os vagalhões e as rocas
Não apuro os nós de lonjuras das seguras docas
Tampouco os altos e baixos relevos das pedras
                                                         que roncam ais
                                            no quebra-mar do cais
Ou os tapetes de mijo e restos de peixes
E patas de caranguejo e frutas podres
Tecidos pelas alpercatas e os pés nus sobre a rampa
                                                        do Mercado-Modelo.

Um marinheiro conserta sua embarcação
                                   — corpo de intempestiva casa —
Em pleno alto-mar aberto.
                                             Vá dizer aos meus amigos.



SALOMÃO, Waly. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

24.5.14

Waly Salomão: "Barroco"




Barroco

Mundo e ego: palcos geminados.

Quero crer que creio
E finjo e creio
Que mundo e ego
Ambos
São teatros
Díspares
E antípodas.

Absolutos que se refratam/difratam...
Espelhos estilhaçados que não se colam.

Entanto são
Ecos de ecos que se interpenetram
Partículas de ecos ocos, partículas, partículas de ecos plenos que
                                                                               [se conectam
Aí cosmos são cagados, cuspidos e escarrados pelo opíparo caos
E o uso do adjetivo está correto
Pois que o caos é um banquete.
Fantasmas de óperas.
                                   Ratos de coxias.
                                                               Atos truncados.

Há uma lasca de palco
                                   em cada gota de sangue
                                   em cada punhado de terra
                                                                          de todo
                                                                         [e qualquer poema.




SALOMÃO, Waly. "Pescados vivos". In:_____. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.