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16.5.10

Irracionalismo

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo", no sábado, 15 de maio:



A HISTÓRIA da filosofia clássica -e, em particular, da metafísica- ocidental pode ser entendida como o desenvolvimento gradual de uma crítica radical, feita pela razão, à autoridade tanto da tradição quanto do carisma. Descartes, por exemplo, como dizia Alexandre Koyré, preparou "a mais formidável arma de guerra contra a autoridade e a tradição". Kant afirmava que absolutamente tudo devia ser submetido à crítica, sob pena de perder a credibilidade.

Ora, quem acredita nas narrativas de intelectuais "pós-modernistas", como Foucault, Derrida, Deleuze ou Agamben, supõe que os filósofos clássicos e, sobretudo, Descartes produziram um pensamento conservador e repressivo.

Penso que, em grande parte, isso se deve à influência de Heidegger. É verdade que Deleuze não se refere tanto a ele quanto os outros acima citados, mas, ao tentar liquidar o conceito de sujeito, ele prossegue o gesto de Heidegger, como observa Agamben, para quem "a história das relações entre Heidegger e Deleuze -também via Blanchot, trâmite de muito heideggerianismo inconsciente na filosofia francesa contemporânea- ainda tem que ser feita".

Foi através de intelectuais franceses que Heidegger readquiriu, e até superou, seu prévio prestígio intelectual. Paradoxalmente -mas também compreensivelmente-, em parte isso talvez tenha a ver justamente com o feroz anticartesianismo do seu pensamento.

Suponho que não sejam poucos os estudantes franceses que se sintam oprimidos e enojados pelo consenso nacional e secular em torno de Descartes e pela obrigação de conhecer de trás para a frente as "Regras", o "Discurso", as "Meditações", os "Princípios". Heidegger os vinga, pois acusa Descartes de ter inaugurado a metafísica moderna da subjetividade.

Segundo Heidegger, a partir do cogito, de Descartes, o "eu" humano torna-se o único sujeito, para o qual todas as demais coisas são reduzidas a objetos. Concebido como autoconsciência, o sujeito é interiorizado e fechado, ou oposto ao mundo, exceto na medida em que este lhe possa ser instrumental.

Para Heidegger, essa instrumentalização do mundo, em que todas as coisas e, em última análise, os próprios seres humanos viram meros dispositivos, manifesta-se tanto no mundo terrorista do socialismo real e do nazismo quanto no que considera a desolação espiritual dos EUA.

Mas me parece que o namoro desses intelectuais franceses de esquerda com Heidegger tem, mais ainda, a ver com o fato de que, dadas as revelações sobre os regimes terroristas de Stálin, Mao Tsé-tung, Pol Pot etc., e dado o colapso da União Soviética, tenha-lhes parecido preferível abandonar de cabeça erguida o marxismo, trocando-o por um modo de pensar pretensamente ainda mais radical do que ele.

Com certeza, a filosofia de Heidegger lhes pareceu pelo menos tão capaz quanto a de Marx, tanto de diagnosticar (mas com maior "profundidade") a realidade (tida por eles como insuportável) do mundo capitalista e liberal em que vivemos, quanto de desprezá-la.

Além disso, é possível, com Heidegger, desdenhar (mas, igualmente, com argumentos mais "profundos") não só o que, desde o marxismo, esses intelectuais, em maior ou menor medida, já haviam considerado como o embuste da democracia, dos direitos humanos etc., mas também o humanismo, o conceito de homem, de sujeito, a razão.

De fato, Heidegger, por meio de um de seus famosos passes etimológicos, chega a tentar relativizar o conceito de razão ("ratio"), tal como empregado pela tradição filosófica, considerando-o como mais superficial do que o seu sinônimo alemão, ("Vernunft"), com o argumento infame de que este, derivado do verbo "vernehmen", "escutar", seria mais "auscultante" do que aquele...

A desqualificação da tradição filosófica não poderia mesmo deixar de se acompanhar de uma desqualificação da razão, uma vez que essa tradição consistiu exatamente no desdobramento da razão ao ponto máximo de sua ambição. Em Deleuze, Foucault e Derrida, o irracionalismo de esquerda é ainda envergonhado e não ousa dizer o seu nome.

Mas hoje, com Alain Badiou, por exemplo, ele é descarado. Vitalista, voluntarista e fideísta, como convém a um irracionalista, Badiou, emulando o apóstolo Paulo, prefere os acontecimentos milagrosos à racionalidade, a verdade dogmática à argumentação, a fé à razão.

E, segundo seu camarada Slavoj Zizek, "a força incomparável do pensamento de Badiou supera de longe tudo o que se publicou na França nos últimos anos". Pobre França!

2.5.10

A ideologia marxista hoje




O seguinte texto é uma versão um pouco mais longa do artigo que foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 1º de maio.


A ideologia marxista hoje


JÁ CITEI uma vez, nesta coluna, a observação do filósofo Theodor Adorno no ensaio "As Estrelas Descem à Terra" de que, ao semierudito, "a astrologia [...] oferece um atalho, reduzindo o que é complexo a uma fórmula prática e oferecendo, simultaneamente, uma agradável gratificação: o indivíduo que se sente excluído dos privilégios educacionais supõe pertencer a uma minoria que está "por dentro'". Na época, mostrei que tal descrição convém também à ideologia religiosa do apóstolo Paulo, assim como à de Martinho Lutero. Pois bem, o fato é que ela se aplica igualmente bem a ideologias seculares, tais como o marxismo vulgar.

Embora tencione dar uma chave para o entendimento do mundo, como uma religião, o marxismo, longe de se tomar como religião, considera-se inteiramente racional, declarando-se tanto filosofia quanto ciência da história e da sociedade. Isso faculta ao semierudito ter-se, do ponto de vista cognitivo, como superior também aos eruditos que, por diferentes razões, não tenham adotado a concepção marxista.

Como, além disso, essa concepção do mundo quer fundamentar uma teoria revolucionária, tendo em vista a superação do capitalismo e a instauração do comunismo, sociedade em que pretende que não haverá mais propriedade privada dos meios de produção, nem diferentes classes sociais nem os flagelos da exploração e da opressão do ser humano pelo ser humano, os marxistas, já pelo simples fato de se posicionarem a favor de tal revolução, consideram-se, a priori, superiores, também do ponto de vista ético, a todos que não o tenham feito.

Para esse modo de pensar, o mundo existente, em que domina o modo de produção capitalista, é inteiramente degradado. Nele, qualquer progresso é tido como meramente adjetivo, quando não fictício. A democracia existente -qualificada de "burguesa"- não é valorizada senão enquanto caminho para a revolução. Só esta deverá trazer um progresso real.

Hoje, porém, nem os marxistas podem pretender saber como se daria a superação do capitalismo. Não ignoro que, se questionados, certamente falariam em "socialismo". Concretamente, porém, que poderia significar para eles tal palavra?

Seu socialismo certamente nada teria a ver com a social-democracia, pois esta, sendo compatível com o capitalismo, não representaria sua superação. Tratar-se-ia então do socialismo como a estatização dos meios de produção, tal como se deu, por exemplo, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas?

Será realmente possível identificar a estatização com o socialismo, que seria a transição para o comunismo? Friedrich Engels diria que não, pois afirmava que "quanto mais forças produtivas o Estado moderno passa a possuir, quanto mais se torna um capitalista total real, tantos mais cidadãos ele explora. Os trabalhadores continuam assalariados, proletários. Longe de ser superada, a relação capitalista chega ao auge". Dado que a propriedade estatal dos meios de produção não garante a posse real deles pelos trabalhadores, ela é capaz de não passar de uma forma de capitalismo de Estado. A superação do capitalismo somente se daria quando a sociedade, aberta e diretamente, sem a intermediação do Estado, tomasse posse das forças produtivas. Note-se bem: a propriedade estatal dos meios de produção, consistindo na manifestação extrema de uma relação de produção capitalista, está longe de ser a posse social dos mesmos.

Os revolucionários russos não pensaram assim. Tomando a estatização da economia sob a ditadura do Partido Comunista, pretenso representante do proletariado, como a instauração do socialismo (que seria o primeiro passo para o comunismo), supuseram que já haviam deixado para trás o modo de produção capitalista.

O fato, porém, é que a própria extinção da URSS e o caráter selvagem e mafioso do capitalismo que hoje vigora na Russia se encarregaram de desmentir essa pretensão. Em obra recente, o marxista Alain Badiou reconhece que “sob a forma do Partido-Estado, experimentou-se uma forma inédita de Estado autoritário e mesmo terrorista, de todo modo muito separado da vida das pessoas”. E conclui: “O princípio da estatização era em si mesmo viciado e por fim ineficaz. O exercício de uma violência policial extrema e sangrenta não conseguiu salvá-lo de sua inércia burocrática interna e, na competição feroz que lhe impuseram seus adversários, não foram precisos mais de cinquenta anos para mostrar que ele jamais venceria”.

A Revolução Cultural Chinesa pode ser entendida como uma tentativa de mobilizar as massas contra o estabelecimento de uma situação semelhante, na China. Seu líder, Mao Tse-tung, chegou a dizer: “Não se sabe onde está a burguesia? Mas [nos países socialistas] ela se encontra no Partido Comunista!” Como, porém, as “massas” são necessariamente plurais, particulares, instáveis e manobráveis, o fato é que, na época moderna, qualquer “democracia direta” não pode passar de uma quimera. Não admira, portanto, que a Revolução Cultural se tenha tornado extremamente caótica e violenta, de modo que, por fim, tenha sido necessário, como diz Badiou, “restabelecer a ordem nas piores condições”. O resultado é que impera hoje na China o mais brutal capitalismo, tanto estatal quanto privado.

A verdade é portanto que, como nem a centralização, sob a égide do Partido, nem a mobilização das massas logram superar o capitalismo, não se sabe – jamais se soube realmente– como se daria tal superação.

Contudo, só a miopia ideológica impede de ver que, embora a "Revolução" se tenha revelado um beco sem saída, o mundo em que vivemos encontra-se em fluxo incessante; e que a sociedade aberta, os direitos humanos, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual compatível com a existência da sociedade, a autonomia da arte e da ciência etc. -que constituem exigências inegociáveis da crítica, isto é, da razão- constituem também as verdadeiras condições para torná-lo melhor.

21.3.10

A antifilosofia

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 20 de março. A versão aqui postada é mais longa do que a impressa que, por limitações de espaço, teve que ser um pouco abreviada.


A antifilosofia


O ROMANCISTA espanhol Javier Cercas, comentando que o pior vício que um filósofo pode ter é se esforçar para ser interessante, observava que "dizer que os homens buscam a felicidade é enfadonho e pouco original, porque os filósofos o dizem pelo menos desde Aristóteles, mas tem a vantagem de ser certo; reivindicar a infelicidade, a doença e a velhice, como faz agora o filósofo alemão Boris Groys, tencionando discordar do discurso dominante da apoteose juvenil, é sem dúvida original, mas tem a desvantagem de ser uma bobagem".

Lembrei-me disso ao ler um livro de Groys recentemente publicado na Alemanha, cujo título em português seria "Introdução à antifilosofia". A observação de Cercas se refere a outra obra desse autor, mas a busca da originalidade a qualquer preço também se encontra no livro mais recente.

Groys fala das "verdades" como produtos oferecidos no mercado. Na Grécia antiga, segundo ele, os sofistas produziam verdades para o mercado. Ao contrário deles, Sócrates se definia como filósofo, isto é, como aquele que ama a verdade, mas não a possui ou produz, ou como aquele que está disposto a adquirir verdades, desde que se convença de que o que lhe oferecem como verdade é o produto autêntico, e não uma falsificação. Assim, a diferença entre o sofista e o filósofo é que este é o consumidor crítico, enquanto aquele é o produtor de verdades.

Contudo, para Groys, o simples fato de descobrir que uma verdade funciona como mercadoria – a descoberta dos interesses econômicos por trás da formulação e da divulgação de uma doutrina – já bastaria para que Sócrates a recusasse. "De Sócrates, através de Marx, até a teoria crítica frankfurtiana", afirma Groys, "pensa-se que a verdade, quando se dá como mercadoria, não é verdade". Isso significa, segundo ele, que não há verdade, pois na economia mercantil nenhuma verdade escapa à condição de mercadoria. A própria filosofia, inclusive a de Sócrates, justamente na medida em que é consumidora crítica de verdades, também faz das verdades mercadorias.

Groys diz que é a partir da compreensão desse fato que surge a antifilosofia. Esta não funciona através da crítica, mas da ordem ou comando. Ordena-se, por exemplo, a transformar o mundo, em vez de explicá-lo (Marx); ou a proibir todas as questões filosóficas e calar sobre o que não pode ser dito (Wittgenstein); ou a transformar o próprio corpo num corpo sem órgãos e pensar de modo rizomático, e não lógico (Deleuze); etc. A verdade - não mais mercantil - somente se revela quando a ordem é obedecida. Primeiro vem o salto à fé; depois se manifesta a verdade da religião. Quem se recusa a obedecer permanece para sempre no escuro e não pode sequer criticar a ordem, pois não a compreende propriamente. A decisão primeira é vital, não filosófica. Creio, de fato, reconhecer esse tipo de irracionalismo decisionista em antifilósofos contemporâneos como Alain Badiou e Slavoj Zizek, que sincretizam Paulo de Tarso e Lenin, Robespierre e Mao Tse-tung.

A mesma recusa do pensamento crítico opera hoje, segundo Groys, não somente nas religiões e ideologias políticas, mas em livros que receitam pensamentos positivos, estratégias de mercado, indicações sobre o combate contra o império americano com a ajuda das "multidões" (Hardt e Negri), comportamentos adequados para os ativistas da esquerda ou da direita etc. Em última análise, as ordens da antifilosofia são conselhos de autoajuda.

Se a antifilosofia é como Groys a descreve, então devemos dizer que ela se baseia numa falácia (coisa que pouco lhe importa, já que ela despreza a crítica, a razão e a lógica). É que, assim como o fato de que todo pato seja animal não significa que todo animal seja pato, o fato de que toda avaliação de mercadorias seja uma espécie de pensamento crítico não significa que todo pensamento crítico seja uma espécie de avaliação de mercadorias; e o fato de que as mercadorias possam ser objetos da crítica não significa que todos os objetos da crítica sejam mercadorias.

Além disso, por que aceitar, sem mais, que as verdades sejam “produzidas” e não descobertas? E que sejam “produzidas” pelos sofistas e “consumidas” pelos filósofos? De onde Groys tira que os filósofos não descobrem ou pretendem descobrir verdades, de modo que se reduzem a meros “consumidores” de verdades “produzidas” por outros? Ou ainda que não sejam críticos os pensamentos dos “antifilósofos” que cita, ou de que eles não tentem provar as suas teses?

Ao escrever o livro em questão, Groys não se considerou antifilósofo, mas fenomenólogo. Ele pretende estar simplesmente a descrever, sem julgar, o que se passa. Mas talvez o modo mais generoso de entender suas teses seja tomá-las como, no fundo, irônicas em relação ao que chama de antifilosofia. Afinal, segundo ele, seus antifilósofos teriam rejeitado a filosofia porque pensavam ter descoberto seu caráter de mercadoria. Mas quem ignora que, entre os livros vendáveis – logo, que se realizam como mercadorias –, os de autoajuda superam, de longe, os de filosofia?

De modo menos generoso, mas mais sincero, diríamos que Groys é simplesmente cínico (no sentido moderno e vulgar dessa palavra). Ele não prova nada do que diz e, como observou Cercas, parece preocupado apenas com a originalidade de suas ideias. Para que? Evidentemente, para melhor “vendê-las”.

3.10.09

A ressurreição do apóstolo Paulo

Ao escrever o artigo que saiu hoje publicado na minha coluna da “Ilustrada”, da Folha de São Paulo, acabei por fazê-lo muito maior do que o espaço que me é reservado. Normalmente, quando isso acontece, edito o artigo, para que caiba no espaço disponível, sem perder o essencial do seu argumento. Foi o que tentei fazer com o artigo de hoje. Ao relê-lo no jornal, porém, achei que o resultado deixa a desejar: que carece de clareza e precisão. Por isso, excepcionalmente, publico aqui o artigo na sua versão – mais longa – original.


A ressurreição do apóstolo Paulo

HÁ POUCOS meses, o papa Bento 16 anunciou que haviam sido encontrados os restos mortais do apóstolo Paulo. Nesse ponto, Ratzinger estava atrasado. Em alguns círculos de esquerda, esse apóstolo já havia sido ressuscitado há algum tempo. Basta lembrar o livro de Alain Badiou, de 1997 ("São Paulo: a Fundação do Universalismo"), o de Giorgio Agamben, de 2000 ("O Tempo que Resta: Comentário à Carta aos Romanos"), a reedição, em 1993, do livro de Jacob Taubes ("A Teologia Política de Paulo") e as muitas páginas que Slavoj Zizek tem ultimamente dedicado a esse apóstolo (por exemplo, em "O Absoluto Frágil").

Ora, nenhum leitor das invectivas de Paulo contra a filosofia e a racionalidade (por exemplo, em 1Co 1:19-27 e 3:18-20, e Ro 1:21-22) pode ignorar que ele foi um dos fundadores do irracionalismo cristão. De fato, esses escritores me parecem ser atraídos exatamente pelo irracionalismo de Paulo. Por que?

Consideremos Badiou. Recentemente, ele tem escrito (por exemplo, na "Revista Piauí" de agosto de 2007), sobre a "hipótese comunista". Basicamente, esta consistiria na suposição de que seja possível eliminar a desigualdade das riquezas, a divisão de trabalho e o aparelho de Estado coercitivo, militar e policial, separado da sociedade civil.

Francamente, não sei se é mesmo possível eliminar a desigualdade ou o aparelho de Estado. Entretanto, Badiou diz também que essa "hipótese" é "uma ideia com função reguladora, e não um programa". Se isso significa que quem adota a "hipótese comunista" é aquele que orienta suas ações políticas no sentido de, entre outras coisas, promover a diminuição da desigualdade das riquezas, flexibilizar a divisão do trabalho e diminuir a necessidade do Estado coercitivo, então ela pode ser aceita por um reformista radical, como eu mesmo.

Badiou porém, longe de se considerar um reformista, pretende ser um revolucionário. Assim também creio serem quase todos os entusiastas da “hipótese comunista”. O que querem é uma revolução que, mais ou menos rapidamente, destrua o capitalismo e construa o comunismo, isto é, que rapidamente, como foi dito, elimine a desigualdade das riquezas, a divisão de trabalho e o aparelho de Estado coercitivo, militar e policial, separado da sociedade civil.

Entretanto, desconfio que nenhum desses revolucionários saberia dizer exatamente como se daria tal superação do capitalismo. Não ignoro que, se questionados, certamente falariam em “socialismo”. Concretamente, porém, que poderia significar para eles tal palavra?

Seu socialismo certamente nada teria a ver com a social-democracia, pois esta, sendo compatível com o capitalismo, não representa sua superação. Tratar-se-ia então do socialismo como a estatização dos meios de produção, tal como se proclamou, por exemplo, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas?

Será possível identificar a estatização com o socialismo? Friedrich Engels diria que não, pois afirmava que “quanto mais forças produtivas o Estado moderno passa a possuir, quanto mais se torna um capitalista total real, tantos mais cidadãos ele explora. Os trabalhadores continuam assalariados, proletários. Longe de ser superada, a relação capitalista chega ao auge”.

Para Engels, portanto, a propriedade estatal não era a solução. No máximo, ela podia ser usada como um meio para se chegar mais perto da solução. E qual seria essa, segundo ele? Que a sociedade, aberta e diretamente, tomasse posse das forças produtivas. Note-se bem: a propriedade estatal dos meios de produção, consistindo na manifestação extrema de uma relação de produção capitalista, está longe de ser a posse social dos mesmos.

Os revolucionários russos não pensaram assim. Tomando a estatização da economia sob a ditadura do Partido Comunista, pretenso representante do proletariado, como a constituição do “modo de produção socialista” (que seria o primeiro passo para o comunismo), supuseram que já haviam deixado para trás o modo de produção capitalista.

O fato, porém, é que a própria extinção da URSS e o caráter selvagem e mafioso do capitalismo que hoje vigora na Russia se encarregaram de desmentir essa pretensão. Em obra recente, Badiou comenta que “sob a forma do Partido-Estado, experimentou-se uma forma inédita de Estado autoritário e mesmo terrorista, de todo modo muito separado da vida das pessoas”. E conclui: “O princípio da estatização era em si mesmo viciado e por fim ineficaz. O exercício de uma violência policial extrema e sangrenta não conseguiu salvá-lo de sua inércia burocrática interna e, na competição feroz que lhe impuseram seus adversários, não foram precisos mais de cinquenta anos para mostrar que ele jamais venceria”.

A Revolução Cultural Chinesa é por Badiou entendida como uma tentativa de mobilizar as massas contra o estabelecimento de uma situação semelhante, na China. Seu líder, Mao Tse-tung, chegou a dizer: “Não se sabe onde está a burguesia? Mas ela está no Partido Comunista!” Como, porém, as “massas” são necessariamente plurais, particulares, instáveis e manobráveis, o fato é que, na época moderna, qualquer “democracia direta” não pode passar de uma quimera. Não admira, portanto, que a Revolução Cultural se tenha tornado extremamente caótica e violenta, de modo que, por fim, tenha sido necessário, como diz Badiou, “restabelecer a ordem nas piores condições”. O resultado é que impera hoje na China o mais brutal capitalismo, tanto estatal quanto privado.

A verdade é portanto que, como nem a centralização, sob a égide do Partido, nem a mobilização das massas logram superar o capitalismo, não se sabe – jamais se soube – como se daria tal superação.

Um famoso hino alemão oriental dizia: “Die Partei hat immer Recht”, isto é, "o Partido sempre está certo". Tal secularização do pensamento religioso constitui o ápice do irracionalismo e acabou por produzir incalculável sofrimento. As terríveis experiências do século 20 apenas confirmam empiricamente algo que, por direito, já se sabe desde a Ilustração: nem a Igreja, nem a Bíblia, nem o Partido, nem o líder genial, nem as massas, ninguém é capaz de sempre estar certo. Nada está acima de ser criticado. Por isso, a sociedade aberta, os direitos humanos, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual compatível com a existência da sociedade, a autonomia da arte e da ciência etc. são exigências inegociáveis da crítica, isto é, da razão.

Ora, não há por que pensar que não seja possível, mesmo nos marcos de uma sociedade aberta, promover a diminuição da desigualdade das riquezas, flexibilizar a divisão do trabalho e diminuir a necessidade do Estado coercitivo. Uma das provas de que as coisas podem melhorar é hoje a própria experiência brasileira, nos últimos quinze anos de governos democráticos de esquerda.

Mas, naturalmente, os seguidores do apóstolo Paulo não pensam assim. Apesar de reconhecer que "o marxismo, o movimento operário, a democracia de massas, o leninismo, o Partido do proletariado, o Estado socialista, todas essas invenções notáveis do século 20 não nos são mais realmente úteis", Badiou prefere crer na Revolução do que na razão. Para ele, a Revolução Francesa abrira um primeiro período revolucionário; a Revolução Russa, um segundo. Aguardando o próximo, ele confessa: "Não estou em condições de dizer com certeza o que é a essência do terceiro período revolucionário que vai se abrir". Ele tem certeza de que ocorrerá algo decisivo no terceiro – note-se bem a mística do numero – período revolucionário, embora não saiba o que será. Em suma, adota um estilo escatológico, sem nada dizer. Por que isso?

Porque ele é “revolucionário”, ou melhor, apocalíptico. Badiou rejeita a democracia parlamentar porque quer rejeitar em bloco a sociedade aberta em que vive: “A hipótese comunista”, afirma, “não coincide de maneira nenhuma com a hipótese democrática”. Se como dissemos, a sociedade aberta é uma exigência inegociável da crítica, isto é, da razão, então, embora não o confesse literalmente, é a razão que, no fundo Badiou tenciona relativizar. “Há algo no devir de uma verdade”, afirma ele, “que ultrapassa as possibilidades estritas da mente humana”.

Aqui entra o apóstolo Paulo. Embora a racionalidade clássica considerasse irracionalistas as teses de Paulo, estas, segundo Badiou, constituíram um "acontecimento" que superou aquela, inaugurando um novo tipo de universalismo e de verdade. “Todo procedimento de verdade”, diz ele, “rompe com o princípio axiomático que governa a situação e organiza a sua série repetitiva. Um procedimento de verdade interrompe a repetição e não pode portanto ser sustentado pela permanência abstrata própria à unidade da conta, subtraída da conta”. Ou seja, o “procedimento de verdade” é incomensurável com o que, antes da sua instauração, passa por verdade.

Segundo Badiou, o conhecimento (savoir), pertencente à ordem do Ser, opõe-se à verdade, manifesta em acontecimentos que não pertencem à ordem do ser, mas surgem ex nihilo, à maneira de milagres. Para Slavoj Zizek, também entusiasta de Paulo, "Badiou está inteiramente justificado ao insistir que -- usando o termo com seu peso teológico integral -- milagres ocorrem sim". A verdade milagrosa é singular, pois não poder ser classificada em gênero nenhum; universal, pois ultrapassa todas as particularidades acessíveis ao conhecimento; e axiomática, pois transcende tudo o que pode ser provado ou demonstrado.

Badiou pensa que a verdade só é discernível pelos membros da nova comunidade de crentes. A rigor, ela não passa, portanto, de uma crença. Comentando -- e aprovando -- tais teses, Zizek especula que a verdadeira fidelidade ao acontecimento é 'dogmática' no sentido preciso de fé incondicional, de uma atitude que não procura boas razões e que, por essa razão mesma, não pode ser refutada por nenhuma 'argumentação'". Ora, ocorre que aquilo que não pode ser refutado por nenhum argumento é exatamente o irracional. Em suma, trata-se aqui do mais puro irracionalismo religioso.

De todo modo, podemos nos perguntar qual é o procedimento de verdade que autoriza Badiou a afirmar suas teses. Certamente não pode ser o que ainda não foi instaurado; e como poderia ser o que vigora contemporaneamente, se este é objeto constante do seu escárnio?

O fato é que – como aliás convém a quem, como bom discípulo de Paulo de Tarso, literalmente exalta as três virtudes teologais – Badiou sustenta suas teses exclusivamente na fé.