Como eu, Antonio Cicero, a convite e sob a direção literária de Jorge Reis-Sá, acabo de publicar em Lisboa, na Coleção Plural da Imprensa Nacional de Portugal, três livros de poesia num só volume, com o nome de Guardar a cidade e os livros porventura, o excelente programa A Ronda da Noite, da RTP -- Rádio e Televisão de Portugal -- pôs no ar uma conversa sobre poesia e filosofia que tive com Luis Caetano, o grande autor e apresentador de programas culturais. Ouçam: A Ronda da Noite:
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31.3.21
20.10.19
28.7.18
Evando Nascimento: "Uma literatura pensante: Pessoa, Clarice e as plantas"
Assistam ao vídeo da bela palestra pronunciada pelo escritor, pensador e professor universitário Evando Nascimento, na ABL, intitulada "Uma literatura pensante: Pessoa, Clarice e as plantas". Essa conferência fez parte do ciclo de conferências intitulado "Poesia e Filosofia", que concebi e coordenei no mês de julho.
17.7.18
Antonio Cicero: "A poesia e a filosofia no mundo contemporâneo"
Na semana passada proferi uma palestra intitulada "A poesia e a filosofia no mundo contemporâneo", na Academia Brasileira de Letra. O vídeo correspondente foi postado no YouTube pela ABL. Ei-lo:
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9.7.18
A poesia e a filosofia no mundo contemporâneo
Na próxima quinta-feira, dia 12 de julho, às 17h30, darei, no Teatro R. Magalhães Jr., da Academia Brasileira de Letras, a palestra "A poesia e a filosofia no mundo contemporâneo". Ela será parte do ciclo de conferências "Poesia e Filosofia" do qual -- a convite da Primeira Secretária d ABL, a escritora Ana Maria Machado -- sou o coordenador, no corrente mês. A entrada será franca.
Como parte do mesmo ciclo de conferências, ocorreu, na quinta-feira passada, no mesmo local, a bela e erudita conferência de Alberto Pucheu, "Espantografias: entre poesia e filosofia". Na quinta-feira, dia 26 do corrente mês, terá lugar a conferência de Evando Nascimento, intitulada "Uma literatura pensante: Pessoa, Clarice e as plantas".
Como parte do mesmo ciclo de conferências, ocorreu, na quinta-feira passada, no mesmo local, a bela e erudita conferência de Alberto Pucheu, "Espantografias: entre poesia e filosofia". Na quinta-feira, dia 26 do corrente mês, terá lugar a conferência de Evando Nascimento, intitulada "Uma literatura pensante: Pessoa, Clarice e as plantas".
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16.11.17
A.C. Grayling: trecho de "As religiões não merecem tratamento especial"
Dado que hoje – 16 de novembro –
é reconhecido pela UNESCO como o Dia Mundial da Filosofia, resolvi postar a
tradução de um pequeno trecho de um artigo do filósofo inglês A.C. Grayling. O
texto, que me parece muito oportuno no momento atual, intitula-se “As religiões não merecem tratamento especial”.
Já no século XVII,
o filósofo Descartes dizia, no seu Discurso do
método, que, “a pluralidade de vozes não
é uma prova que valha nada para as verdades um pouco
difíceis de descobrir , porque
é bem mais provável que um homem só as tenha encontrado do que
todo um
povo”. Ou seja, ele sabia que nenhuma crença – nenhuma crença religiosa, por
exemplo – merece intrinsecamente mais respeito do que qualquer convicção individual.
Mas passemos às palavras de
A.C. Grayling:
Está na hora de inverter o senso comum de que o comprometimento
religioso intrinsecamente mereça respeito e deva ser tratado com luvas de
pelica e protegido pelo costume e, em alguns casos, por leis que proíbem que ele seja criticado ou ridicularizado.
Está na hora de nos recusarmos a andar na ponta dos pés em torno de
pessoas que exigem respeito, consideração, tratamento especial ou qualquer
outro tipo de imunidade simplesmente porque têm uma fé religiosa, como se ter
fé fosse uma virtude merecedora de privilégios, e como se fosse nobre acreditar
em afirmações sem base e em superstições antigas. Nada disso: a fé é o
comprometimento com uma crença contrária à evidência e à razão.
Ora, acreditar em algo contra a
evidência e contra a razão – acreditar em algo por fé – é ignóbil,
irresponsável e ignorante, e merece o oposto do respeito. Está na hora de dizer
a verdade.
Está na hora de exigir dos crentes
que mantenham na esfera privada suas escolhas e preferências pessoais
nesses assuntos irracionais e frequentemente perigosos. Qualquer um tem a
liberdade de acreditar no que quiser, desde que não incomode (ou intimide ou
mate) os outros; mas ninguém tem o direito de exigir privilégios meramente na
base de ser devoto desta ou daquela das muitas religiões do mundo.
E, como essa última observação
implica, está na hora de exigirmos – nós, que não somos religiosos – o direito
de não sofrer interferência por parte de pessoas e organizações religiosas. Ninguém tem
o direito de impor suas próprias práticas e escolhas morais às pessoas que não
compartilham do seu ponto de vista.
GRAYLING, A.C. Trecho
de “Religions don’t desserve special treatment”. In: The Guardian, 19 de outubro de 2006.
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2.10.17
Entrevista a Nahima Maciel, do "Correio Brasiliense"
A seguinte entrevista foi dada por mim a Nahima Maciel, do Correio Brasiliense, durante a 33ª Feira do Livro de Brasília, em junho deste ano:
Antonio Cicero afirma que a poesia permite ampliar a experiência do ser
O poeta e filósofo esteve na capital federal para pareticipar da 33ª Feira do Livro de Brasília
24/06/2017
Nahima Maciel
A filosofia é inevitável e, nos dias de hoje, extremamente necessária. É a “metalinguagem terminal”, nas palavras do poeta e filósofo Antonio Cicero. Tem uma certa coerência e alguma utilidade, já que filosofar pode ser um caminho para melhorar o mundo. A poesia é outra coisa. Não tem utilidade prática alguma e permite apreender o mundo em uma outra dimensão que não aquela das coisas funcionais. “A poesia é a língua-objeto terminal”, explica Cicero, que esteve em Brasília para a 33ª Feira do Livro de Brasília para falar do tropicalismo, tema do evento. O filósofo acaba de lançar A poesia e a crítica, coletânea com textos de palestras e ensaios proferidos e escritos nos últimos 11 anos.
Em 2016, Cicero lançou um disco em parceria com Arthur Nogueira. Presente foi uma espécie de celebração dos 70 anos do artista, mas também um aviso de que, a partir de agora, pretende se dedicar apenas à poesia. E essa, no caso do Brasil, está muito ligada à música graças a movimentos como a bossa nova e a tropicália. Na apresentação de A poesia e a crítica, Cicero conta como se encantou com Caetano Veloso no final dos anos 1960, quando foi morar em Londres para estudar e fugir da ditadura. Veloso, na época no exílio e casado com Dedé Gadelha, prima de Cícero, era capaz de colocar abaixo as barreiras entre o erudito e o popular graças a uma grande liberdade de pensamento, a mesma que fez Tom Jobim e Vinicius de Moraes ignorarem essas fronteiras.
Dessa forma, a poesia e a música sempre andaram juntas, mais agarradas uma à outra no Brasil do que em outros países. “Você vê um músico extraordinário como Tom Jobim fazendo música popular, um poeta como Vinicius de Moraes, erudito, de repente fazendo canções com Tom Jobim. Depois, veio uma geração incrível de pessoas influenciadas por eles. O próprio Caetano, um grande poeta. Não tem como negar. O Chico Buarque. São grandes poetas e músicos que estão fazendo coisas novamente consideradas menores, mas que não são menores”, diz Cicero, ao comentar o estardalhaço feito em torno do prêmio Nobel de literatura concedido a Bob Dylan. Abaixo, Cícero fala sobre filosofia, sobre o Brasil e sobre a poesia no mundo contemporâneo.
Ainda é importante falar de filosofia hoje?
Não se pode evitar a filosofia. Chamo a filosofia de metalinguagem das metalinguagens. Metalinguagem é a linguagem que fala de outra linguagem. Se estou falando sobre um livro de poesia ou qualquer outra coisa, minha linguagem é metalinguística em relação a ele. A poesia é a metalinguagem das metalinguagens. A língua sobre a qual se fala é a língua-objeto. Não é possível falar da filosofia sem filosofar porque só a filosofia fala de si própria. A filosofia é a metalinguagem terminal e a poesia é a língua-objeto terminal. Então, você não pode atacar a filosofia sem ser filosófico. E a filosofia, justamente por isso, fala das últimas coisas, ou das primeiras. Ela fala sobre o ser de maneira geral, sobre o sentido da vida. A ética faz parte da filosofia, a estética, também. Não há como evitar. A filosofia puramente quer ser. Tem a ver com a razão e com o intelecto. A religião tem a ver com fé, emoção.
Está difícil falar de ética hoje no Brasil?
Um dos problemas que vejo no Brasil é que todas as ideologias tradicionais funcionam quase como uma religião. Os conjuntos de ideias que as pessoas tinham sobre o Brasil ou o mundo, aparentemente, falharam todos. Depois da queda da cortina de ferro, tudo falhou. Parece que não deu certo. As previsões e as esperanças para a esquerda não deram certo. A URSS não funcionou, a China maoísta, que era contra a URSS porque achava que tinha um marxismo-leninismo mais puro, não deu certo. Isso criou uma situação muito complicada para as pessoas que tinham essa ideologia, o que não quer dizer que as ideologias de direita sejam melhores ou funcionem melhor. Não acredito nisso. Na verdade, nenhuma deu certo. Agora é uma hora de se pensar de novo no que Marx realmente queria.
Como assim?
O materialismo histórico, que pretende ser o marxismo científico, não deu certo. A partir dele previa-se, por exemplo, que a classe operária teria salários cada vez menores; que haveria uma queda da taxa de lucro dos capitalistas; que as tentativas das nações capitalistas de evitar as crises econômicas falhariam; que haveria revoluções socialistas nos países mais avançados, não nos menos avançados. Essas previsões falharam. Karl Popper, um pensador austríaco, dizia que a ciência – e Marx pensava que tinha feito uma filosofia científica – não pode estar sempre procurando provar que está certa, como faz o marxismo. Ao contrário, a verdadeira ciência está sempre procurando coisas que poderiam “desprovar” o que ela afirma. Está sempre se submetendo a testes. E enquanto os testes não destruírem a teoria científica, ela se segura. Mas pode vir alguém no futuro que faça uma experimentação e mostre que tudo está errado. A ciência é isso, está sempre ali sendo testada.
O que faz de um poema, um poema?
Essa coisa é muito difícil de responder. Já tive várias maneiras de falar desse assunto. Não existe uma definição que seja universalmente aceitável do que é poesia. Goethe dizia que a gente fala da poesia como uma das artes, mas isso está errado: a gente devia pensar em cada arte como sendo uma das várias formas de poesia. E poesia como se fosse um nome para as artes em geral. E tem a poesia que produz os poemas. Não só versos, porque há poemas em prosa e poemas visuais. O importante nas diferentes artes é que elas nos oferecem uma maneira de apreender o próprio ser, a vida, o mundo, diferente daquele que temos cotidianamente.
E como é nossa forma de ver o mundo no cotidiano?
É extremamente utilitária. A gente faz as coisas todas tendo em vista determinados propósitos, determinadas finalidades. Tudo é muito calculado. A gente apreende o mundo a partir dessa maneira de ver as coisas, cada coisa tem um sentido, serve para uma coisa. E a gente tende a ver as próprias pessoas assim. A poesia, não.
A poesia possibilita, como você fala em um dos textos do livro, uma nova dimensão do ser. Que dimensão?
A gente passa a apreender o mundo de uma maneira diferente quando entra num poema, numa pintura, numa peça musical. Nosso mundo se amplia porque a gente percebe as coisas de uma maneira que a gente não percebia antes. É como se fosse uma outra dimensão. Existe a dimensão utilitária e existe essa dimensão estética, usando essa palavra com cuidado porque muita gente pode apreender o próprio estético como utilitário, como se fosse o que a gente acha bonito. Não é isso, é uma coisa mais ampla. Vamos dizer, apreender de um modo artístico a linguagem, sentir. Isso enriquece nossa maneira de estar no mundo. Devemos ter essa maneira de estar no mundo mesmo sem estar lendo um poema. É possível curtir as coisas de uma maneira diferente. A poesia nos leva a isso e nos abre muitas perspectivas sobre as diferentes coisas que estão no mundo e na nossa vida. E ela faz isso subvertendo a maneira normal de a gente realmente ver as coisas, captar, apreender.
Se falou muito da ligação entre música e poesia quando Bob Dylan ganhou o Nobel, mas no Brasil essa discussão existe há muito tempo. Falamos mais nisso por termos a música que temos?
Acho que sim. No Brasil aconteceu mais fortemente do que nos outros países essa compreensão de que não é possível separar radicalmente o que é alta cultura, cultura erudita, do que é cultura popular. A ideia, que é uma ideia moderna e necessária, é que não se julgue uma obra a partir do lugar que a ela é convencionalmente designado. Se trata de uma obra erudita ou popular? Não. O que interessa é, primeiro, você olhar a própria coisa e ela ser capaz de ter esse efeito de que falei, estético ou artístico. Pode ser mais forte ou menos forte, mas isso não depende de ela ser erudita ou popular. O Bob Dylan pode, de repente, ter isso tão forte quanto um compositor de música erudita. Não dá mais para julgar com preconceito.
E qual o papel da Bossa Nova e da Tropicália nisso?
A bossa nova foi o movimento que realmente tematizou isso e compreendeu totalmente o que tinha acontecido. E quem fez isso mais claramente ainda foram os tropicalistas. Eles compreenderam totalmente essa situação e fizeram uma revolução nesse sentido. Isso foi muito importante. Foram eles que tornaram possível a gente compreender que aquela hierarquia tinha dançado.
Você vislumbra alguma outra revolução desse tipo possível na cultura brasileira?
Não. Mas acho que não precisa ter. Já foi feita essa revolução, já se sabe disso. O que tem é muita coisa muito ruim e algumas poucas coisas boas. Mas sempre foi assim, em todas as épocas e em todas as áreas. A gente sempre acha que agora é pior. Tenho a impressão de que quem viveu a experiência tropicalista pode ter isso muito forte. Eu vivi, mas tento me conter porque, às vezes, acho que ainda não deu tempo de perceber as coisas boas que estão sendo feitas. Há tanta coisa. A internet multiplicou. Todo mundo escreve poesia hoje. Mesmo quem não gosta. É estranhíssimo. E claro que a maior parte não é boa. Mas alguns poetas são muito bons.
A internet fez mal para a poesia?
Acho que não fez mal, mas permitiu a muita gente escrever. Isso tem um lado bom, talvez pessoas que não apareciam antes apareçam agora. Mas é que é tanta coisa que é muito difícil você filtrar. E demora um tempo. Essas coisas vão sendo filtradas com o tempo.
8.3.17
Inês Pedrosa: "Porque não há nada em vez de tudo?"
Publico a seguir o belo texto da conferência que a grande romancista portuguesa Inês Pedrosa pronunciou no festival literário Correntes d'Escritas em 25 de fevereiro do corrente ano.
Tema da mesa: “Por que
não há nada em vez de tudo?”
O que é tudo?
O que é nada? O que é em vez de? Vivemos, como assinalou Milan
Kundera, no planeta da inexperiência: as nossas vidas são um rascunho contínuo,
que um dia acaba. Poucos conseguem verdadeiramente fazer da certeza da morte a
ciência da vida. Viver cada dia como se fosse o ultimo seria demasiado triste.
Mas viver cada dia como o dia único que de facto é far-nos-ia sentir muito mais
felizes do que, em geral, sabemos ser. A espécie humana é biologicamente desejante.
Lembro-me daquela criança que atroava o café com a sua birra. Perguntavam-lhe o que queria: um sumo, um refrigerante, um leite
com chocolate, uma água. A tudo a criança dizia que não, cada vez mais
desesperada. Acabou por se explicar, gritando: «Eu quero uma coisa que
não haja!».
Todos somos aquele menino filósofo.
Todos queremos uma coisa que não haja em vez das múltiplas coisas que existem.
E se tivéssemos tido a sorte genética da Nicole Kidman ou do Marcelo
Mastroianni? E se tivéssemos o talento e a riqueza de Tolstoi? E se eu tivesse
nascido homem num país rico? O “e se” é, por si só, um tesouro, se conseguirmos
apontá-lo para o futuro particular e não para o passado genérico: e se eu escrevesse um romance que
captasse o não-dito do meu tempo? E se
eu valorizasse o amor que tenho? E se
eu fizesse alguma coisa pelos que sofrem ao meu lado? E se eu me dedicasse a corrigir uma injustiça concreta? E se eu deitasse para o lixo todos os sentimentos
comparativos e me concentrasse em ser apenas, num superlativo solitário, o
melhor que posso ser?
Os estrangeiros em turismo dizem que nos
falta, demasiadas vezes, a capacidade de dar valor ao que há. Queixamo-nos
quando chove, porque está frio, e quando faz sol, porque o calor é excessivo.
Nunca estamos bem, e parece que esse apego ao mal-estar faz parte de nós. No
entanto, raras vezes nos ocorre aproveitar essa incomodidade permanente para ir
à procura de qualquer coisa que ainda não
haja. Imobilizamo-nos a olhar para o que há, nas mãos de outros – e tornamo-nos
estátuas falantes do ressentimento. Em alguns casos, esfolamo-nos niponicamente
a trabalhar para conseguir aumentar aquilo que há – é a isso que, em geral, se
chama ambição. E o que fazemos ao sonho das coisas que não há? Espero que nunca
cheguemos à anorexia onírica das japonesas solteiras que passam o ano a
trabalhar para gozarem a semana de férias a que têm direito nos bailes de
Janeiro em Viena de Áustria, nos braços ilusórios de fantasmáticos príncipes
loiros. Há agências de viagens em Tóquio especializadas nesta espécie de
sonho cinderélico, que faz as vezes de desejo. Escreveu Slavoj Zizek (em Bem-vindo ao Universo do Real!): «A
traição do desejo tem um nome: felicidade.»
Neste mundo em que o hedonismo se
tornou lei, as pessoas sentem-se culpadas quando não conseguem fruir o prazer –
e assim morre o desejo, motor da singularidade humana. Amália Rodrigues, que
sabia de desejo pelo menos tanto como Schopenhauer ou Barthes, sintetizou em
meia dúzia de versos este problema político central – porque o desejo é o
gatilho erótico de todas as revoluções, pessoais ou intercontinentais. Escreveu
Amália (e cito): «Já não temos fome,
mãe / mas já não temos também / o desejo de a não ter / Já não sabemos sonhar /
Já andamos a enganar / o desejo de morrer.»
Os condenados dos campos da morte do
nazismo reuniam-se nas infectas e geladas latrinas para sussurrarem uns aos
outros textos literários. Não tinham nada a não ser esse tudo das palavras que
os arredavam – mais uma hora, mais um dia – do desespero da desumanização
radical. Não só não é bárbaro escrever poesia depois do Holocausto, ao contrário
do que afirmou Theodor Adorno, como é cada vez mais necessário escrever e ler,
ter o atrevimento de pensar tudo o tempo todo, para que não renasçam das cinzas
novas formulações dessa barbárie.
O genocídio organizado como indústria
que o nazismo promoveu é ontologicamente incomparável. Significa isto que não
tem equivalências, porque fazer com que uma coisa seja equivalente a outra é
integrá-la, aceitá-la como possível dentro de um determinado sistema,
normalizá-la. Dizer, como disse corajosamente Hannah Arendt, que os
totalitarismos se afirmam através da banalização do mal não é a mesma coisa do
que instituir o mal como facto banal. Temos de aprender a distinguir, pensar
cada situação no seu específico contexto para não nos deixarmos cair nas areias
movediças da indignação indiferenciada. É dessas areias que nascem os monstros
que anestesiam e paralisam os indignados genéricos, arrastando-os para a
resignação diante do mal. A intolerância que hoje sentimos rugir resulta de uma
submissão à tolerância. Quando consideramos a mutilação genital feminina ou a
amputação da mão de um ladrão como actos culturalmente justificados, isto é,
quando nos abstemos de agir contra a existência desses actos, resguardando-nos
sob o simpático guarda-chuva da tolerância, estamos a permitir a sua
continuidade, ou seja, a favorecer o princípio da intolerância. O ensaio mais
fulgurante que conheço sobre estas questões comparativas, fundamentais para a
compreensão do estado do mundo, é o ensaio de Antonio Cicero intitulado Da Atualidade do Conceito de Civilização,
onde o filósofo afirma, e cito: «a civilização está em maior grau presente onde
os direitos civis sejam formalmente reconhecidos e materialmente respeitados, e
na medida em que o sejam.» A razão humana, a luz do cogito de Descartes, que se
identifica com a própria capacidade de duvidar é, diz-nos Antonio Cicero, o
grande fundamento civilizacional – do qual continuamos tão distantes hoje, com
a nossa intolerável tolerância, como há cinco séculos, com o seu reverso, a
intolerável intolerância dos nossos antepassados. Ousemos olhar para lá do
nosso cercado e pensar todas as coisas como se nunca tivessem sido pensadas –
só a esta acção despojada e genuinamente empenhada se pode chamar pensamento.
Ousemos sair do regime tenebrosamente confortável do «tudo é relativo e nada
podemos fazer» para esta outra pergunta: entre o tudo e o nada, que são a vida
e a morte, o que posso eu fazer? «Chegamos
ao ponto de nos alegrarmos com uma liberdade que nasce do estéril, que vem do
destruído», escreveu Ignacio de Loyola Brandão, na terrível distopia de Não Verás País Nenhum, um fantástico
romance do qual a realidade se aproxima sinuosa e festivamente.
A criança que grita para que a deixem
querer uma coisa que não haja é a musa de todos os livros, a musa de todos os
desejos que circulam em nós, pedindo apenas a graça de continuar em movimento,
para lá da infantil desilusão das felicidades alcançadas. Essa coisa que nos
fascina porque não há pode ser um átomo ou o transporte molecular, um romance,
uma música, uma pintura – mas frequentemente é apenas e só a coisa que há ou
julgamos haver na mão, na cabeça, na casa dos outros. Quando confinamos o
absoluto do sonho ao relativo da comparação, ele deixa de ser viagem
interestelar e torna-se casebre prisional. Imagino um mundo de sonhos
incomparáveis, onde as estrelas fossem elementos do céu e não adereços da
crítica literária jornalística, a ambição uma corrida de cada um com os seus
íntimos e inalienáveis sonhos, e o sucesso a capacidade de descobrir o novo
dentro do velho conhecido, isto é, a mais perfeita das artes e aquela em que
nos temos mostrado mais imperfeitos – o amor.
Inês Pedrosa
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24.1.16
Palestra de Antonio Cicero no curso "Poesia e Filosofia"
Amanhã, às 11h, farei, na Livraria da Travessa do Leblon, a minha palestra, como parte do curso da Estação das Letras "Poesia e Filosofia". As informações sobre esse curso encontram-se aqui.
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9.11.14
Paul Valéry. Sobre o Discurso do método, de Descartes
Não são os
próprios princípios que nos podem reter por muito tempo. O que chama minha
atenção, desde a encantadora narrativa de sua vida e das circunstâncias iniciais
de sua pesquisa, é a presença dele mesmo nesse prelúdio de uma filosofia. É,
pode dizer-se, o emprego do eu e do mim numa obra dessa espécie, e o som da
voz humana; e é isso, talvez, que se opõe mais nitidamente à arquitetura
escolástica. O eu e o mim devendo introduzir-nos a maneiras de
pensar inteiramente genéricas, eis o meu Descartes.
VALÉRY, Paul. "Descartes". In:_____. "Variété". In:_____. Oeuvres I. Paris: Gallimard, 1957.
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30.8.14
Curso "O pensamento filosófico vs. o pensamento poético", por Antonio Cicero
O curso terá lugar no
POP - POLO DE PENSAMENTO
à rua Conde Afonso Celso, 103
Jardim Botânico, CEP 22461-060
Rio de Janeiro, RJ
Tel. (21) 2286-3299 e 2286-3682
POP - POLO DE PENSAMENTO
à rua Conde Afonso Celso, 103
Jardim Botânico, CEP 22461-060
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17.3.13
Entrevista de Antonio Cicero a Marcio Renato dos Santos, do jornal "Cândido"
A seguinte entrevista foi publicada em fevereiro, no nº 19 do jornal "Cândido" (http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=317), da Biblioteca Pública do Paraná:
“Ler um poema estimula nosso pensamento em todos os sentidos”
O carioca Antonio Cicero se afirma como uma das vozes mais singulares da contemporaneidade por transitar pela poesia e pela filosofia. Em 2012, publicou Porventura (poemas) e Poesia e filosofia (ensaio). Os poemas dele, além do prazer estético, provocam reflexões sobre o estar no mundo e a perplexidade de ser humano.
Marcio Renato dos Santos
Voz expressiva da poesia brasileira contemporânea, o nome de Antonio Cicero está em pauta nos primeiros dias de 2013. Ele disputa a vaga de Ledo Ivo na Academia Brasileira de Letras. Nesta entrevista exclusiva ao Cândido, ele fala de outros assuntos, sobretudo, aquilo que lhe diz mais respeito: o mundo das ideias. Comenta alguns de seus poemas, dos livros Guardar (1996), A cidade e os livros (2002) e do recém-publicado Porventura (2012). Mas evita definir o que é poesia e também prefere não destrinchar sua produção artística. “Acho que uma das características mais importantes de um poema é que se trata de uma obra de arte polissêmica, isto é, que tem muitos sentidos. Não compete ao próprio artista tentar interpretá-la, isto é, tentar determinar ou delimitar os seus sentidos. Os leitores que a interpretem.” Filósofo com especializações no exterior, autor do livro Poesia e filosofia (2012), Cicero falou sobre o assunto: “Um poema pode conter algo de filosofia, mas apenas como um dos seus ingredientes: não é a filosofia que ele contém que lhe dá o seu valor.” Ele, que tem poemas musicados por grandes nomes da MPB, também fez uma análise a respeito da relação entre poesia e letra de canção, além de ter comentado motes que estão na sua obras e na de outros autores, como a morte e o desejo: “O desejo é constitutivo da vida humana. Só a morte faz com que ele passe.”
Em 1996, na sua estreia como autor de livro de poemas, o texto inicial, que empresta título à obra, “Guardar”, apresenta uma ideia-força intensa: “Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la./ Em cofre não se guarda coisa alguma./ Em cofre perde-se a coisa à vista./ Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá por/ admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.” Escolher esse texto para abrir o livro provoca um forte impacto: você guardou os seus poemas publicando-os. Poderia comentar os sentidos do poema inicial?
Acho que uma das características mais importantes de um poema é que se trata de uma obra de arte polissêmica, isto é, que tem muitos sentidos. Não compete ao próprio artista tentar interpretá-la, isto é, tentar determinar ou delimitar os seus sentidos. Os leitores que a interpretem.
A sua poesia, inclusive nos momentos iniciais, é reflexiva, precisa, enxuta, musical e dialoga com a tradição, incluindo as referências do Ocidente. Quem eram os seus poetas prediletos no contexto em que foram escritos os poemas de Guardar?
Muitos. Faço alusões a vários, nos poemas. Por exemplo, no poema “Dita”, cito a poeta grega Safo, o romano Catulo, o português Fernando Pessoa e o brasileiro Caetano Veloso. Além disso, a expressão “somos fabulosos”, na linha 7, remete, é claro, ao “fomos fabulosos” da estrofe 82 do canto X dos Lusíadas, de Camões. Em “Virgem” cito o poema de Drummond “Inocentes do Leblon”. Os poemas “Tâmiris” e “Canto XVIII” (que, por uma gralha, saiu está erroneamente grafado “Canto XXIII”) são referências a trechos da Ilíada, de Homero. O poema “A luta” é referência a um episódio da “Gênese”, do Antigo Testamento. No poema “Oráculo” faço uma referência ao poeta inglês Gerald Manley Hopkins. No poema “O circo”, as referências são o poeta Yeats e o poeta/filósofo Nietzsche. “História” se refere a Horácio. “Sair” se refere a Pascal. Na verdade, seria preciso adicionar muitos outros, pois sempre fui um leitor voraz de poesia.
Na segunda parte de Guardar, lemos poemas que foram musicados, cantados e são conhecidos de nosso imaginário, entre os quais “Solo da paixão”, “Inverno” e “Maresia”. “Virgem”, por exemplo, traz imagens, sugestões de um enredo a dois que pode ter naufragado, para uma das partes, em meio ao cenário cartão postal da beira-mar Ipanema-Leblon: “O Hotel Marina quando acende”, “não é por nós dois/ Nem lembra o nosso amor”, “Os inocentes do Leblon.” “Inocentes do Leblon” é um poema do Carlos Druumond de Andrade, publicado no livro Sentimento do mundo (1940), em um contexto no qual havia uma guerra e seus temores, e os inocentes do Leblon passavam bronzeador no corpo sem se dar conta dos navios que poderiam surgir no horizonte e provocar um apocalipse local. A sua poesia, entre outras características, é carregada de significados. Poderia comentar sobre esses diálogos literários?
Os poetas dialogam todo o tempo com a tradição poética. É que a gente aprende o que é poesia, e o que é boa poesia, lendo poesia e, principalmente, lendo os poemas canônicos. A canção “Virgem” tem uma das minhas letras de que mais gosto. Na pré-adolescência, morei em frente à praia de Ipanema, de modo que essa paisagem me é muito familiar. De modo geral, é um grande prazer ouvir uma letra minha cantada por um cantor ou cantora que admiro.
Letra de canção é poesia? Tem poesia em letra de canção? Quais os pontos de contato entre letra de canção e poesia?
Sabemos hoje que a primeira poesia conhecida do Ocidente, os poemas de Homero, eram recitativos. Nesse sentido, eles eram parentes do rap, que é uma espécie de recitativo. Já os poemas líricos eram, como seu próprio nome indica, musicados. Eram o que chamamos de letras de canções. Como os gregos não desenvolveram uma notação musical adequada, perdemos a música, mas conservamos as letras dessas canções. Essas letras são os poemas gregos antigos que conhecemos e admiramos, de Safo, Píndaro, Anacreonte, Teócrito, Calímaco, etc. Logo, uma letra pode perfeitamente dar um bom poema escrito. E nada impede que um bom poema escrito dê uma boa letra de música. No entanto, um poema não precisa dar uma boa letra, para ser bom. E, vice-versa, uma letra não precisa dar um bom poema escrito, para ser boa. Com efeito, a letra é originalmente feita para ser parte de uma canção. Se ela servir para produzir uma bela canção, então ela é boa, independentemente de dar um bom poema escrito. E, naturalmente, o poema é feito para ser lido, de modo que não precisa dar uma boa letra.
Já em A cidade e os livros (2002), destacam-se poemas narrativos. “Museu de Arte Contemporânea” é e pode ser um retrato. No poema que dá nome ao livro, “A cidade e os livros”, encontramos um Rio que é, foi e será um Rio que passou por você: “Hoje é diferente, pois todas as cidades encolheram,/ são previsíveis, dão claustrofobia/ e até dariam tédio, se não fossem/ os livros infinitos que contêm.” Qual a relação do Rio de Janeiro com os livros?
É um poema em que falo da descoberta da cidade grande como a descoberta do mundo aberto e moderno como análoga à descoberta de que os livros, a grande literatura universal, pertence àquele que a ela se entrega. O Rio tem não apenas os livros de suas bibliotecas, de suas livrarias, de suas coleções particulares, mas os livros que falam do Rio, como os de Machado de Assis, e os livros que podem ser escritos sobre ele, ou tendo o Rio como cenário. Mas falo do Rio porque é a cidade onde vivo, porém creio que o que se passa nesse poema poderia passar-se, mutatis mutandis, em qualquer cidade grande.
“Ônibus”, poema dedicado a Eucanaã Ferraz, é outro exemplo do que comentei na pergunta anterior. Parece um clique, uma foto, por trazer, além da linguagem, das palavras escolhidas, musicais, uma cena: “São oito horas da noite, véspera/ da véspera de outro Natal./ Já não há lâmpadas feéricas/ vindas da China a iluminar/ as ruas.” Considera a sua poesia, também, narrativa?
Nesses exemplos que você está dando, sim. E, de fato, no caso do poema “Ônibus”, foi algo que presenciei que o desencadeou. E, quando começo a escrever o poema, ele, em determinado ponto, assume certa autonomia. E então, estranhamente, é como se eu tivesse que fazer o que ele pede para ser feito.
O quanto há de filosofia em sua poesia?
No ano passado, escrevi um livro sobre esse assunto: Poesia e filosofia. Acho que poesia e filosofia são coisas muito diferentes. Um texto de filosofia pretende nos ensinar alguma coisa ou provar uma tese. Normalmente nós o relemos quando precisamos tirar dúvidas ou entender melhor determinadas questões. Já um poema é uma obra de arte. Não é o que ele nos ensina ou prova que interessa. É que ler um poema estimula nosso pensamento em todos os sentidos. Não é só o que ele diz que interessa, mas como o diz. Um poema pode conter algo de filosofia, mas apenas como um dos seus ingredientes: não é a filosofia que ele contém que lhe dá o seu valor. O que vale e dá prazer, na leitura de um poema, é a própria leitura. O poema é bom quando mobiliza não apenas nosso intelecto, como a filosofia, mas várias das nossas faculdades ao mesmo tempo: nossa imaginação, nossa razão, nossa emoção, nossa sensibilidade, nossa sensualidade etc. Não relemos um poema como um texto de filosofia, apenas para tirar dúvidas ou entender melhor determinadas questões, mas porque sua leitura nos proporciona esse prazer, que é um prazer estético.
“Ser poeta é uma África.” Eis o desfecho de “O poeta marginal”, do livro Porventura (2012). O texto abre e cita diversos autores, ou sugere, a dialogar com rastros de grandes poetas. O que é ser poeta?
Seria preciso saber o que é a própria poesia para saber o que é um poeta. Mas jamais se conseguiu definir adequadamente a poesia. Ela é, como se dizia antigamente, um “je ne sais quoi”, isto é, um “não sei quê”.
Em “O poeta lírico”, de Porventura, a voz poética garante: “Não sei contar histórias.” Apesar de eu já ter perguntado anteriormente, há poemas neste livro que são narrativas, sobre “Meio-fio”, no qual o leitor se depara com uma narrativa poética que mostra a jornada de um sujeito que pretende conferir um filme, mas o acaso, ou um esbarro em um carro muda os rumos e, num meio-fio, “a maresia/ cio marinho, alicia/ para outras eras da vida.” É um curta-metragem, ou um longa, dependendo do imaginário. Pode comentar esse poema e esse viés? Essa cena, filme urbano, apresentado por meio da poesia?
Sou daqueles poetas que acham que um poeta jamais deve tentar explicar o seu poema. O poema deve bastar por si e, caso seja enigmático, é exatamente o enigma, e não sua solução, que é importante.
Consegue definir a sua poesia?
Não. Não consigo defini-la. Sou capaz de falar de qualquer tema e de usar inúmeras dicções diferentes. Se há alguma coisa comum a todos os meus poemas, como dizem alguns críticos, eu não consigo definir essa coisa.
Em Porventura, “La Capricciosa” faz menção a uma perda, do seu irmão. “A morte também tem arte”. A perda é um dos temas de sua obra?
Sim, pois é um dos temas mais importantes da vida humana.
“Blackout”, poema presente em Porventura, mostra uma cena do temor urbano, da paranoia, o medo do outro, do olhar do outro, do que o outro possa vir a fazer. A janela, antes espaço para vir o outro, o mundo, a lua, hoje precisa de blindagem. A sua poesia menciona o Rio, desde sempre. Qual a sua impressão do Rio hoje?
Acho que a paranoia, a sensação de estranhamento, deslocamento, “outsideness” que o sujeito do poema sente pode ser sentida em qualquer lugar do mundo. O Rio, hoje, não é tido, nem por mim, nem pela população em geral, como uma cidade excepcionalmente insegura, como era alguns anos atrás.
“Só o desejo não passa”. Lemos em um dos poemas de Porventura. O desejo, de fato, não passa, apesar da passagem do tempo?
Não. O desejo é constitutivo da vida humana. Só a morte faz com que ele passe.
“Meio-fio”
Domingo à noite, ao cinema,
à comédia americana
do Roxy, em Copacabana:
que melhor estratagema
para vencer a acedia
domingueira, num programa —
sonorama, cinerama —
com um toque de nostalgia,
drops e ar condicionado,
e um trailer, de aperitivo
(que filme é mais incisivo
que o somente insinuado?)
Mas, na Barão de Ipanema
com a Domingos Ferreira,
eis que fazemos besteira,
a um quarteirão do cinema:
é que, à procura de vaga,
não vemos que vem um carro
na transversal, e o esbarro
não é grande mais estraga
os planos. Resta esperar
ao meio-fio a perícia.
Mas a noite, com a malícia
e a fluidez de um jaguar,
nada espera. Da avenida
Atlântica, a maresia,
cio marinho, alicia
para outras eras da vida.
Do livro Porventura (2012).
“Virgem”
As coisas não precisam de você:
Quem disse que eu tinha que
precisar?
As luzes brilham no Vidigal
E não precisam de você;
Os dois irmãos
Também não.
O Hotel Marina quando acende
Não é por nós dois
Nem lembra o nosso amor.
Os inocentes do Leblon,
Esses nem sabem de você
Nem vão querer saber
E o farol da ilha só gira agora
Por outros olhos e armadilhas:
O farol da ilha procura agora
Outros olhos e armadilhas.
Do livro Guardar (1996)
“Perplexidade”
Não sei bem onde foi que me perdi;
Talvez nem tenha me perdido mesmo;
mas como é estranho pensar que isto aqui
fosse o meu destino desde o começo.
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11.3.13
Entrevista de Antonio Cicero à revista Cult
Dei uma entrevista para Marcus Preto, que foi publicada no último número da revista Cult. Ela se encontra aqui:
http://revistacult.uol.com.br/home/2013/03/a-lira-de-antonio-cicero/
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24.1.13
José Castello: "Cicero, poeta do tempo"
Orgulho-me de aqui postar o seguinte artigo, do escritor e crítico literário José Castello, que foi publicado no dia 18 do corrente na coluna "Instantâneos Literários", do suplemento EU&, do jornalValor Econômico.
Cicero, poeta do tempo
por José Castello
Nossa vida cotidiana tornou-se quase inteiramente regida por princípios utilitários, pragmáticos, instrumentais, lamenta o poeta e filósofo carioca Antonio Cicero, de 67 anos. "Sempre foi assim, porém hoje as novas tecnologias eletrônicas potencializaram essa subordinação da vida ao princípio do desempenho." Ele reconhece que elas mudaram a vida de todos nós, que houve um avanço e uma transformação. Mas isso será apenas bom? "Ao invés de economizarem nosso tempo, as novas tecnologias o consomem." A tecnologia do século XXI devora o tempo. Devora o próprio século XXI. Resta-nos pouco tempo para meditar e contemplar. Para viver.
Para escapar dessa armadilha, Cicero - que no dia 11 se inscreveu para concorrer à vaga deixada pelo poeta Ledo Ivo na Academia Brasileira de Letras - se impõe certas regras pessoais, que segue com abnegação. Só consulta seus e-mails duas vezes por dia. Acessa a internet, na maior parte das vezes, apenas para fazer pesquisas, usando-a, assim, como uma antiga enciclopédia. Mantém um blog, chamado Acontecimentos (antoniocicero.blogspot.com.br), mas só o alimenta, com textos seus ou alheios, a cada dois dias. Também não participa das redes sociais, como o Facebook e o Twitter. Mesmo o celular, só o utiliza no caso de emergências, embora nele carregue também alguns dicionários e outros textos, de que eventualmente se vale. "Para mim, é imprescindível ter tempo", diz.
No mundo instrumentalizado e pragmático em que vivemos, ele admite, "é grande o pessimismo com que muitos consideram as artes tradicionais e, em particular, a poesia". Nosso mundo é veloz, obcecado por índices e resultados, quer as coisas sempre "para ontem". Tem como ideal, portanto, devorar o tempo, não usufruí-lo. "As artes tradicionais têm perdido sentido na medida em que deixaram de corresponder à exaltação contemporânea da atividade veloz, multifuncional, polivalente." Ninguém pode ler poesia, Cicero lembra, como quem lê um e-mail ou uma bula. A poesia não se lê apressadamente, mas, ao contrário, exige lentidão e entrega, paciência e concentração, devaneio e tempo. A poesia exige de seu leitor uma entrega absoluta. "Para ler poesia, o leitor deve entregar-se incondicionalmente, por um tempo determinado, aos caprichos semânticos, sintáticos, sonoros do poema." Mais uma vez: a leitura da poesia exige tempo. Dizendo de outra forma: a matéria da poesia é o próprio tempo.
O mais grave: essa entrega incondicional não oferece ao leitor garantia alguma de que ele terá, ao fim da leitura, um resultado palpável. A verdade é que não o terá. Em consequência, lembra Cicero, para a maioria das pessoas a poesia guarda um aspecto anacrônico. Extemporâneo, intempestivo, inoportuno. A poesia parece estar "fora do tempo" quando, ao contrário, ela é, por excelência, o lugar do tempo. Avisa Cicero, desde logo, que não partilha desse pessimismo em relação à poesia e às artes. "Ao contrário, penso que, ao abrir para o leitor uma dimensão do ser oposta à utilitária, pragmática, instrumental, uma dimensão do tempo que não é regida pelo princípio do desempenho, a literatura lhe oferece a possibilidade de um enorme enriquecimento vital." A poesia é um sopro que nos desperta. Mas é também uma brisa lenta e sutil, que exige paciência e serenidade. Quem chega a ela, porém, se vitaliza.
Assim é Antonio Cicero em pleno terceiro milênio: um homem que, justamente porque tem como matéria o tempo, está, de certo modo, fora do tempo ou, pelo menos, contra o momentâneo. Sim: é preciso aqui distinguir tempo e instante. O tempo é um fio, o instante é um corte. O tempo é uma longa estrada, o instante um semáforo que nos leva a parar para, logo depois, partir em disparada. Precisamos reaprender a respirar. Tudo isso vem... com o tempo! O pai de Cicero tinha uma grande biblioteca. Desde adolescente, ele pôde ler muito. Os portugueses, os russos, os franceses, os ingleses, os alemães, os italianos. Admite: "Hoje leio muito pouca ficção". Hoje lê, sobretudo, poesia e ensaio. Poesia e filosofia. "Acho que é uma questão de administração do tempo. Escrever sobre filosofia exige de mim um bom tempo de leitura, estudo e reflexão." Outra vez, e mais uma vez, o tempo, que deve ser curtido, alongado, prorrogado - isso em um século regido pelo culto ao instantâneo e ao "tempo real", que nada mais é que uma lasca do tempo, uma sucessão louca de fatias muito finas. E nos entulhamos dessas fatias finas e avulsas e ao fim (do tempo) estamos intoxicados, sem poder dizer o que engolimos. Não é assim nosso século?
Cicero lê também, é claro, muita poesia. E é a leitura da poesia, como em um círculo mágico, que o leva a escrever poesia. Que o empurra de volta a ela. Em seu livro mais recente, "Porventura" (Record), no poema "Auden e Yeats", como se estivesse dialogando com o poeta irlandês William B. Yeats (1865-1939), ele escreve: "possa a leitura da tua/ poesia, pura Musa,/ inspirar a minha arte". Outra vez a respiração. Mais uma vez o tempo, com seu ritmo mais natural, o inspirar e expirar. "A grande poesia, como a de Yeats, funciona para mim como uma Musa, que me impele a escrever." Logo: a poesia não é soprada desde fora, pelas filhas de Zeus, deusas distantes da Grécia antiga. É na própria poesia que a Musa habita. A poesia é a Musa da poesia, nos leva Cicero a pensar.
No mundo atual, lamenta Cicero, "é grande o pessimismo com que muitos consideram as artes tradicionais e, em particular, a poesia"
Entre todos os poetas, ele diz ainda, aquele com quem continua mais a aprender é Horácio (65 a.C.-8 a.C.), o poeta e filósofo da Roma antiga. "Cada vez que releio um de seus poemas, maravilho-me como se estivesse lendo pela primeira vez." Surpreende-se, sobretudo, com o modo como, nos poemas de Horácio, cada palavra modifica e é modificada pelas demais. Como se o poema estivesse vivo. (E não está?) Com seu olhar exigente, Antonio Cicero - embora leia os poetas brasileiros contemporâneos - acredita que a melhor poesia brasileira foi produzida no século XX. "Sobretudo a partir do modernismo." Pensa em Bandeira, Drummond, Cabral, Murilo Mendes, Cecília Meireles, poetas que constituem uma base muito forte para a poesia contemporânea. "E penso que há poetas contemporâneos que fazem jus a essa tradição." Discreto, prefere não citar nomes. Quanto a si mesmo, porém, não consegue se situar "em nenhum cenário literário". E, na verdade, nem faz questão disso. "Parece-me que, para fazê-lo, seria preciso tentar ver-se como que pelos olhos dos outros, e desconfio que quem consegue fazer tal coisa diminui a própria espontaneidade e potência". Um poeta deve contar apenas com o próprio olhar, ainda que esse olhar, a rigor, seja o da cegueira.
Cicero está cercado de livros. Lista que considera "nada original": Shakespeare, Hölderlin, Leopardi, Baudelaire, Rilke, Brecht, Yeats, Pessoa, Bandeira, Drummond e tantos outros. "Com eles aprendi que um poema é um objeto de palavras que merece existir por si." Adverte, porém, que essa afirmação não significa uma adesão ao formalismo. "Não é apenas a forma das palavras que interessa num poema, mas tudo aquilo de que ele é composto, inclusive os significados que ele suportar." Apesar dessa ressalva, insiste: um poema merece existir por si. "Sua apreciação mobiliza e confunde, isto é, atualiza, num jogo singular, as nossas mais diversas faculdades." Não apenas o intelecto, mas a imaginação, a razão, a sensibilidade, a sensualidade, a emoção - pensa Cicero - são afetadas pela leitura de um poema. O leitor se agita por inteiro. O poema (uma faca de palavras) o atravessa. A leitura do poema o interroga e transforma.
Ainda na adolescência, recorda-se, descobriu o conselho do russo Vladimir Maiakóvski (1893-1930), considerado o maior poeta do futurismo, que recomendava aos jovens poetas carregarem sempre um caderninho de notas e uma caneta. Até recentemente, cumpriu-o à risca. Depois descobriu que podia usar o telefone celular não tanto como telefone, mas como bloco de notas. "Eu o uso mais para isso, e como dicionário, do que como telefone".
Também abandonou o papel: hoje escreve já as primeiras versões de seus poemas no computador. Contudo, a sombra do papel permanece inalterável: não consegue ler bem um poema e corrigi-lo, se o conserva na tela do computador. Precisa imprimi-lo: só consegue mexer nele quando o deixa de volta deitado no papel. Depois, retorna ao computador, mais uma vez ao papel, outra ao computador etc., até o dia em que, por fim, dá o poema por terminado. É um processo longo e lento, em que, pouco a pouco, muitas palavras são abandonadas e muitas outras incorporadas, uma longa gestação que exige persistência e paciência. De fato, nos mostra Cicero, não existe poeta impaciente. Pelo menos, não para ele.
A poesia lhe surge de repente e em qualquer lugar. Pode surgir quando já está deitado, quase dormindo ou quase acordando, e nesses casos precisa se levantar correndo e anotá-la ou ela se perderá. "Caso não o faça, ela será, em 99% dos casos, esquecida. As palavras são, como dizia Homero, aladas, e voam para longe." Nada disso, contudo, o afeta ou cansa. A poesia (mesmo o mais árduo dos poemas) sempre deu a Cicero grande prazer e alegria. Entende assim: "A escrita é uma forma de enfrentar e superar a dor ou o sofrimento". Nesse caso, enfim, a poesia tem, sim, uma utilidade. Um uso íntimo, pessoal, secreto - que relação alguma estabelece com as vantagens de mercado ou com os objetivos da produção. Cada poema a seu tempo. Cada poeta com seu tempo. Matéria da poesia, o tempo é uma experiência singular e particular. Tempo de cada um, sempre assim.
Cicero prepara, no momento, uma coletânea de ensaios. Ao mesmo tempo, planeja escrever um livro sobre o niilismo. "Tento mostrar que a filosofia radicalmente ambiciosa, que é aquela em que a razão busca a verdade absoluta e universal, inevitavelmente conduz ao niilismo" (do latim "nihil", isto é, nada). Hoje, apesar de seu apego à poesia, são, sobretudo, as preocupações filosóficas que o movem. Embora considere poesia e filosofia "atividades opostas", apega-se às duas. Enquanto a filosofia depende de uma argumentação que a sustente, a poesia basta a si mesma. São duas paixões antagônicas que, no entanto, ele não consegue separar.
A preocupação central de Cicero, nos dois casos, é sempre com a passagem do tempo. Depois dos 60 anos de idade, começou a se preocupar cada vez mais - como é natural - com a idade, a velhice e a morte. O tempo, mais uma vez, está no coração do poeta. Em seu último livro, "Porventura", ele aparece no centro de poemas como "Balanço", "Palavras Aladas", "Meio Fio" e "Presente". Matéria da poesia, o tempo é também, no caso de Cicero, seu objeto. O tempo que, em seu caso, quase chega a ser um sinônimo de poesia.
Leia mais em:
http://www.valor.com.br/cultura/2974610/cicero-poeta-do-tempo#ixzz2ItheyA52
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28.11.12
Gastão Cruz: Ofício
No dia 24 do corrente, participei, no Fórum das Letras de Ouro Preto, de uma discussão com Eduardo Jardim intitulada "A poesia nasce da filosofia?", sob a mediação de Fabrício Marques. No início de sua interessante preleção, Eduardo Jardim citou o seguinte belo poema de Gastão Cruz:
Ofício
Os poemas que não fiz não os fiz porque estava
dando ao meu corpo aquela espécie de alma
que não pôde a poesia nunca dar-lhe
Os poemas que fiz só os fiz porque estava
pedindo ao corpo aquela espécie de alma
que somente a poesia pode dar-lhe
Assim devolve o corpo a poesia
que se confunde com o duro sopro
de quem está vivo e às vezes não respira.
CRUZ, Gastão. "As palavras e as coisas". In:_____. Escarpas. Lisboa: Assírio e Alvim, 2010.
19.11.12
Entrevista de Antonio Cicero ao jornalista Carlos de Souza
A seguinte entrevista, que concedi ao jornalista Carlos de Souza, foi publicada no jornal Tribuna do Norte, de Natal, no dia 15 do corrente:
1. Você é filósofo e poeta. Como você define as duas atividades?
O filósofo representa a razão radicalmente ambiciosa, a razão que pretende alcançar a verdade universal, necessária e absoluta no que diz respeito ao ente enquanto ente, no que diz respeito ao conhecimento e no que diz respeito aos valores éticos e estéticos.
O poeta é um artista que produz obras literárias em que não é possível separar forma de conteúdo, significante de significado, intelecto de imaginação, razão de emoção, conceito de sensação etc.
2. Você acha que a poesia perdeu sua capacidade de influir no mundo contemporâneo?
Acho que a poesia – principalmente a poesia escrita – jamais teve grande capacidade de influir no mundo contemporâneo a ela. A meu ver, seu sentido não é intervir no mundo, mas facultar àquele que a frui o acesso outras dimensões do ser, que não a dimensão pragmática, utilitária, instrumental, em que necessariamente passamos a maior parte das nossas vidas.
3. Como você faz diferença entre um poema bom e um ruim?
Um poema bom é um poema que, ao provocar um intenso jogo das nossas faculdades – razão, intelecto, imaginação, sensibilidade, emoção, sensualidade – entre si, dá ao leitor acesso a outras dimensões dos ser.
4. João Cabral de Melo Neto dizia que escrever poesia é transpiração. Você acredita em inspiração?
Sim, mas a inspiração não se separa da transpiração. É principalmente durante o trabalho, durante a luta com as palavras, que o poeta colhe as mais felizes intervenções do acaso e do inconsciente chamadas “inspirações”.
5. Você passou a ser conhecido do grande público através das letras de músicas escritas para sua irmã Marina Lima. Como você diferencia letra de música e poema?
A obra de arte em que a letra é normalmente apreciada é a canção, composta de letra e música. A letra é boa se contribuir para a composição de uma bela canção.
No que me diz respeito, como não componho música, faço letras para composições musicais que me são enviadas pelos meus parceiros. Por isso, ao fazer uma letra, levo em conta a música à qual ela se associará, o parceiro que a enviou e o cantor ou a cantora a que se destina.
Já quando faço um poema, não penso senão nas exigências dele mesmo.
Contudo, é possível que uma letra seja um excelente poema, e é possível que um poema se converta numa excelente letra, quando algum compositor faz uma música para acompanhá-la.
Nem o poema é automaticamente melhor do que a canção, nem vice-versa. Toda obra de arte deve ser julgada enquanto indivíduo, e não enquanto membro de uma espécie.
6. Você participou de alguns filmes, um de Bressane e outro de Caetano, se não me engano. Como foi essa experiência?
Caetano Veloso e Julinho Bressane são velhos amigos. Assim, foi um prazer trabalhar para eles. Por outro lado, como não sou ator, não gosto de me ver na tela, pois sempre fico muito crítico em relação ao meu desempenho.
7. Você também lançou um CD lendo seus próprios poemas e participou de outro, na companhia de outros artistas, lendo Drummond. Como é sua relação com as novas mídias?
Embora ache que os poemas, inclusive os meus, devem ser lidos, em primeiro lugar, por cada leitor individualmente, gosto de ler poemas – meus e de outros poetas – em voz alta.
Quanto à Internet, uso-a, em primeiro lugar, para me comunicar com outros, através de e-mails. Em segundo lugar, uso-a como uma grande enciclopédia ou biblioteca. Em terceiro lugar, mantenho um blog, onde posto pequenos textos que admiro, meus ou de outros.
8. Qual a afinidade entre você e a poesia de Carlos Drummond de Andrade?
Gosto muito, desde adolescente, da poesia de Drummond. Quando amo um poema, ele faz parte de minha vida, e eu o sinto como se ele fosse meu, como se eu o tivesse escrito. Ora, amo vários poemas de Drummond.
9. Sua obra ensaística toca sempre no assunto vanguardas. O poeta Ferreira Gullar diz que as vanguardas já nascem velhas. Isso procede?
Não conhecendo o contexto em que Gullar disse isso, não sei exatamente o que ele estava dizendo, de modo que prefiro não comentar.
Minha posição em relação às vanguardas é a seguinte. “Vanguarda” vem de “avant-garde”. “Avant-garde” é o destacamento que vai à frente do grosso das tropas, apontando o caminho que elas devem seguir. Historicamente, cada vanguarda artística apontou um caminho diferente para a arte. Nenhum desses caminhos foi seguido por todo o exército, mas, no total, as vanguardas abriram uma infinidade de caminhos. Graças a elas, hoje sabemos que nenhum caminho está a priori vedado à poesia. Sabemos que é sempre preciso considerar cada caso individualmente. Isso não é pouco. Entretanto, uma vez que isso já é algo conhecido, não precisa ser repetido. Assim, não há mais sentido nenhum em falar de “vanguarda”, pois não resta nenhum caminho a abrir. Continua a haver arte experimental, é claro. De certo modo, toda arte é experimental, mas a arte experimental não pretende mais estar à frente de todos os demais artistas, experimentais ou não, de modo que não pretende ser vanguarda. Além disso, historicamente, cada vanguarda, em sua luta por afirmar determinado caminho, acabava por desprezar os caminhos já abertos. Hoje estão abertos não só os caminhos apontados pela vanguarda e os que a arte experimental contemporânea está a trilhar, mas também os que a tradição havia antes aberto.
10. Seus livros O Mundo Desde o Fim e Finalidades Sem Fim, tem um espaçamento de dez anos entre a publicação de um e outro? Dá trabalho escrever filosofia?
Não só dá trabalho, como sou muito lento. E gosto mais de ler do que de escrever.
11. Os livros de poemas Guardar, A Cidade e os Livros e Livro de Sombras também guardam uma distância de épocas. É difícil escrever poesia?
Normalmente, demoro mais ainda para escrever um poema do que um ensaio ou um artigo. E um ensaio ou artigo eu escrevo num prazo relativamente determinado, ainda que longo. Já a um poema não se pode determinar um prazo. Ele tem seu tempo próprio. E nunca se sabe se um poema que se começa a escrever vai, afinal, ficar pronto. Pode não dar em nada.
12. Você também organizou algumas coletâneas, uma com o poeta Eucanaã Ferraz e outra com Waly Salomão. Como foi essa experiência?
A que fiz com Waly, chamada “O relativismo enquanto visão do mundo” foi a reunião de uma série de palestras organizadas por nós dois em São Paulo, em 1994, com filósofos de primeira linha, como, entre outros, Richard Rorty, Ernest Gellner, Peter Sloterdijk e Bento Prado Júnior.
A que fiz com Eucanaã foi uma nova antologia da obra de Vinícius de Moraes, poeta que ambos amamos. Escolhemos os poemas que tanto eu quanto ele considera os melhores do Vinícius.
13. Você está na coletânea Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século XX. Você se considera um poeta canônico?
Não.
14. Seus poemas lembram a poesia clássica. Quais são suas influências?
Muitas. Para mim, de fato, o poeta mais impressionante é o romano Horácio. Mas gosto de tantos poetas, desde os gregos e romanos... Não sei.
15. Quem está escrevendo poesia de qualidade hoje no Brasil?
Prefiro não responder, porque, sempre que respondo em alguma entrevista a essa pergunta, tenho problemas com os poetas que não me lembrei de citar.
16. Você tem um blog, homepage, na internet... Como é seu relacionamento com o público pela web?
Em geral, muito bom. Havia mais discussão – às vezes de alto nível, às vezes nem tanto – quando eu publicava no blog os artigos, frequentemente polêmicos, que escrevia para a Folha de São Paulo. Em geral eram os fanáticos – religiosos ou políticos (de direita e de esquerda) – que baixavam o nível. Hoje não escrevo mais para jornal nenhum, de modo que os textos que publicam são, em geral, poemas e, em geral, esses poemas são menos polêmicos do que os artigos que eu escrevia para a Folha.
17. Você se interessa por política? Se sim, como você vê o Brasil de hoje?
Penso que o Brasil melhorou muito, a partir da administração de Fernando Henrique. E gosto de Dilma.
18. Que conselhos você daria a um jovem poeta?
Que leia muita poesia; que conheça o máximo que consiga da poesia canônica.
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15.9.12
Epicuro: fragmento de "Carta a Meneceu"
Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse o fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz.
Epicure. "Lettre à Ménécée". In: CONCHE, Marcel (org.). Epicure: lettres et maximes. Villiers-sur-mer: Éditions de Mégare, 1977.
14.9.12
Curso "Poesia e Filosofia", no POP

A partir de quarta-feira que vem, darei um curso de três aulas no POP (Pólo de Pensamento), intitulado Poesia e Filosofia. Elas terão lugar nos dias 19 de setembro, 26 de setembro e 3 de outubro. Mais detalhes abaixo (clique na imagem para ampliá-la):

O POP fica na Rua Conde Afonso Celso, 103, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Seus telefones são (21)2286-3299 e (21)2286-3682.
13.8.12
Entrevista a Luciano Trigo
Hoje foi publicada no "Portal G1" (http://g1.globo.com/platb/maquinadeescrever/) a entrevista que dei para Luciano Trigo sobre o livro Porventura, que estou lançando hoje, na Livraria da Travessa de Ipanema, a partir das 19h.
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29.6.12
Entrevista ao jornal Correio da Bahia
A seguinte entrevista, que concedi a Salvatore Carrozzo, do jornal Correio da Bahia, de Salvador, foi publicada em 27 de junho:
Qual foi o seu objetivo ao fazer este livro? Qual pergunta queria responder?
A pergunta que motiva o livro é a que frequentemente me fazem: qual a diferença entre poesia e filosofia? Como penso, contra as tendências da moda, que são empreendimentos diferentes, aproveitei para não apenas falar dessa diferença, mas sobretudo para expor minhas ideias sobre a especificidade da poesia.
O brasileiro ainda liga poesia e filosofia a algo hermético?
Muita gente realmente despreza tudo o que não tem alguma utilidade prática. Pior: despreza tudo o que não dá dinheiro. Além disso, enquanto é possível fazer coisas práticas, como trabalhar, comer, transar ou ler o jornal ouvindo música, por exemplo, não é possível fazer nada disso ao mesmo tempo em que se lê um poema ou um ensaio de filosofia. Estes exigem tempo e concentração. Sendo assim, a poesia e a filosofia acabam sendo desprezadas. A ciência não é desprezada do mesmo modo somente porque é associada à tecnologia, logo, à técnica, logo, à utilidade prática.
Em um momento do livro, o senhor cita a lenda segundo a qual filósofo Tales, olhando os astros, caiu em um poço, e foi caçoado: "Pretendendo conhecer os céus, ignorava o que se encontrava aos seus pés". A filosofia tem virado muito as costas para os problemas do Brasil?
Acho mais lamentável que os brasileiros virem as costas para a filosofia. Então devemos deixar o pensamento mais ambicioso e profundo para os franceses, alemães, americanos, isto é, para os outros, limitando-nos a pensar sobre o que está aos nossos pés? Então um alemão, quando filosofa, pode perguntar-se sobre o ser, sobre o universo ou sobre os problemas da humanidade, mas nós, brasileiros, devemos nos ater aos problemas do Brasil? A Grécia antiga é hoje admirada como um dos pontos altos da história exatamente por causa de gente como Tales, que era capaz de voltar o olhar para o que se encontra muito além do chão que pisava, e não por causa dos que caçoavam de Tales.
O senhor diferencia pensar sobre o mundo e pensar o mundo. Poderia explicar melhor isso?
Em 2004, Adauto Novaes concebeu um ciclo de conferências intitulado “Poetas que pensaram o mundo”. Pareceu-me importante que ele o tivesse intitulado assim e não, como seria de esperar, “Poetas que pensaram SOBRE o mundo”. Refletindo sobre a diferença entre essas duas formulações, pareceu-me que, de fato, são os filósofos que pensam SOBRE o mundo, enquanto os poetas pensam O mundo. É como se os filósofos estivessem ACIMA, o que implica que estivessem FORA do mundo, ao pensar sobre ele. Já o pensamento dos poetas tende a se confundir com o mundo. O poeta, enquanto poeta, isto é, nos seus poemas, pensa não apenas com conceitos que pretendam abarcar o mundo, mas também com os sons, os ritmos, as imagens do próprio mundo: pensa, por isso O mundo, e não sobre o mundo.
O termo "poético" é usado para dizer algo muitas vezes pueril. "Fulano tem um olhar poético da vida", por exemplo. Isso faz parte da construção da poesia como algo supérfluo?
Creio que sim. É como se os poetas, como as crianças, não tenham caído na “real”, que é, segundo o senso comum, ver a vida com um olhar pragmático, utilitário, instrumental.
Em seu livro, o senhor fala de textos que podem, simultaneamente, ter uma contribuição original ao pensamento filosófico e ser um bom poema. Isso é raro hoje em dia?
Não é raro apenas hoje em dia. Sempre foi muito raro que um texto fosse, ao mesmo tempo e no mesmo trecho, um bom poema e uma contribuição original ao pensamento filosófico. É que aquilo que torna um texto poético bom não é o que torna um texto filosófico bom. O valor de um texto filosófico depende, por um lado, da originalidade e da capacidade das teses filosóficas que propõe de darem conta de questões lógicas, ontológicas, epistemológicas e estéticas, bem como da qualidade da argumentação com que o faz. Já o valor de um poema é função de sua capacidade de estimular o jogo de todas as nossas faculdades: inteligência, sensibilidade, emoção, sensualidade, memória etc. São coisas inteiramente diferentes.
O senhor diz, no livro, ser perfeitamente concebível um filósofo não produzir uma obra sequer em sua vida. Isso de alguma forma não corrobora a ideia do filósofo como um ser superior, que não faz parte do mundo?
Não necessariamente. Sócrates, por exemplo, era considerado filósofo porque suas ideias, mesmo não tendo sido escritas, foram discutidas e divulgadas pelos seus discípulos. Tanto ele quanto Pitágoras, outro filósofo que jamais escreveu, diziam preferir colocar suas doutrinas em seres dotados de alma (os discípulos) do que em seres sem alma (os livros). No fundo, eles achavam que, desse modo, essas doutrinas fariam mais integralmente parte do mundo.
Muitos poetas, o senhor incluído, dizem que, a rigor, o poema não serve para nada. Muito já foi declamado sobre esse assunto. Não é algo radical demais?
Não. É que o poema não precisa se justificar por nenhuma utilidade ulterior a ele mesmo. Sua leitura compensa a si própria. Nesse sentido, o poema vale por si. Isso não significa nenhum formalismo. É o poema como um todo, em que forma e conteúdo, não podem ser separados um do outro, que vale por si.
O senhor se refere muito a Carlos Drummond de Andrade no seu livro. Uma predileção especial? Podemos tratá-lo como um filósofo?
Não. Drummond não foi um filósofo. Foi o nosso maior poeta. Enquanto tal, ele não foi inferior a filósofo nenhum. A poesia é diferente, mas não é inferior nem superior à filosofia. Como eu já disse, um poema é capaz de mexer com todas as nossas faculdades: e é capaz de mexer com tudo o que sabemos, inclusive com a filosofia, a história, a geografia, a mitologia, a física que conheçamos. Um poema pode, por exemplo, falar do ser, da Grécia, de vulcões, de Zeus, de “partículas elementares” ou de “buracos negros”. Mas isso não quer dizer que ele seja uma obra de filosofia, história, geografia mitologia ou física. Ele é uma obra de poesia apenas, e isso basta.
No Brasil, a média é de pouco mais de um livro lido por ano. Isso não é muito frustrante para um escritor?
Sim; principalmente considerando que, apesar disso, nenhum governo investe maciçamente na educação.
No livro, o senhor diz que "deve-se às vanguardas do século XX a desfetichização completa de todos os recursos poéticos". Poderia explicar melhor isso?
É muito simples. Certas formas poéticas haviam sido fetichizadas, isto é, enfeitiçadas, pela tradição. Como a maior parte da poesia produzida no Ocidente moderno era metrificada e rimada, por exemplo, supunha-se que a métrica e a rima fossem intrinsecamente poéticas. Elas eram, de maneira geral, tidas como necessárias e como suficientes para a produção de um poema. Viraram fetiches. Ou seja, um texto que não possuísse métrica e rima não era normalmente tomado como um poema; e um texto que as possuísse era automaticamente tomado com um poema. Ora, as vanguardas mostraram que era possível produzir poemas sem métrica, rima ou outras características fetichizadas. Com isso, desfetichizaram tais características.
O senhor lê latim e grego? Ainda são línguas essenciais para o estudo da filosofia como foi no passado?
Tenho a impressão de que nada foi mais importante, para minha formação, do que aprender grego e latim. Nada me estimulou ou ensinou mais do que o estudo dessas línguas, tanto no que diz respeito à poesia, quanto no que diz respeito à filosofia. Mas não tenho o direito de generalizar. Há inúmeros grandes poetas e inúmeros grandes filósofos que não leem nem grego nem latim.
No ano passado, Marina Lima, sua irmã, lançou Climax, o primeiro disco sem colaborações suas. O senhor se incomodou com isso, de alguma forma?
Não me incomodou propriamente porque isso é, em parte, resultado de minha própria opção por me concentrar em escrever ensaios de filosofia e poesia para ser lida. Além disso, nossa parceria era sempre resultado de muitas conversas. Normalmente, eu ia para a casa dela, onde ela me mostrava a música que estava começando a compor e eu, a partir das conversas e do clima da música, começava a esboçar uns versos. Ora, agora Marina está morando em São Paulo e eu, no Rio, de modo que isso se tornou mais complicado. Lamento essa distância, mas tenho certeza de que ainda faremos muita coisa juntos.
Qual foi o seu objetivo ao fazer este livro? Qual pergunta queria responder?
A pergunta que motiva o livro é a que frequentemente me fazem: qual a diferença entre poesia e filosofia? Como penso, contra as tendências da moda, que são empreendimentos diferentes, aproveitei para não apenas falar dessa diferença, mas sobretudo para expor minhas ideias sobre a especificidade da poesia.
O brasileiro ainda liga poesia e filosofia a algo hermético?
Muita gente realmente despreza tudo o que não tem alguma utilidade prática. Pior: despreza tudo o que não dá dinheiro. Além disso, enquanto é possível fazer coisas práticas, como trabalhar, comer, transar ou ler o jornal ouvindo música, por exemplo, não é possível fazer nada disso ao mesmo tempo em que se lê um poema ou um ensaio de filosofia. Estes exigem tempo e concentração. Sendo assim, a poesia e a filosofia acabam sendo desprezadas. A ciência não é desprezada do mesmo modo somente porque é associada à tecnologia, logo, à técnica, logo, à utilidade prática.
Em um momento do livro, o senhor cita a lenda segundo a qual filósofo Tales, olhando os astros, caiu em um poço, e foi caçoado: "Pretendendo conhecer os céus, ignorava o que se encontrava aos seus pés". A filosofia tem virado muito as costas para os problemas do Brasil?
Acho mais lamentável que os brasileiros virem as costas para a filosofia. Então devemos deixar o pensamento mais ambicioso e profundo para os franceses, alemães, americanos, isto é, para os outros, limitando-nos a pensar sobre o que está aos nossos pés? Então um alemão, quando filosofa, pode perguntar-se sobre o ser, sobre o universo ou sobre os problemas da humanidade, mas nós, brasileiros, devemos nos ater aos problemas do Brasil? A Grécia antiga é hoje admirada como um dos pontos altos da história exatamente por causa de gente como Tales, que era capaz de voltar o olhar para o que se encontra muito além do chão que pisava, e não por causa dos que caçoavam de Tales.
O senhor diferencia pensar sobre o mundo e pensar o mundo. Poderia explicar melhor isso?
Em 2004, Adauto Novaes concebeu um ciclo de conferências intitulado “Poetas que pensaram o mundo”. Pareceu-me importante que ele o tivesse intitulado assim e não, como seria de esperar, “Poetas que pensaram SOBRE o mundo”. Refletindo sobre a diferença entre essas duas formulações, pareceu-me que, de fato, são os filósofos que pensam SOBRE o mundo, enquanto os poetas pensam O mundo. É como se os filósofos estivessem ACIMA, o que implica que estivessem FORA do mundo, ao pensar sobre ele. Já o pensamento dos poetas tende a se confundir com o mundo. O poeta, enquanto poeta, isto é, nos seus poemas, pensa não apenas com conceitos que pretendam abarcar o mundo, mas também com os sons, os ritmos, as imagens do próprio mundo: pensa, por isso O mundo, e não sobre o mundo.
O termo "poético" é usado para dizer algo muitas vezes pueril. "Fulano tem um olhar poético da vida", por exemplo. Isso faz parte da construção da poesia como algo supérfluo?
Creio que sim. É como se os poetas, como as crianças, não tenham caído na “real”, que é, segundo o senso comum, ver a vida com um olhar pragmático, utilitário, instrumental.
Em seu livro, o senhor fala de textos que podem, simultaneamente, ter uma contribuição original ao pensamento filosófico e ser um bom poema. Isso é raro hoje em dia?
Não é raro apenas hoje em dia. Sempre foi muito raro que um texto fosse, ao mesmo tempo e no mesmo trecho, um bom poema e uma contribuição original ao pensamento filosófico. É que aquilo que torna um texto poético bom não é o que torna um texto filosófico bom. O valor de um texto filosófico depende, por um lado, da originalidade e da capacidade das teses filosóficas que propõe de darem conta de questões lógicas, ontológicas, epistemológicas e estéticas, bem como da qualidade da argumentação com que o faz. Já o valor de um poema é função de sua capacidade de estimular o jogo de todas as nossas faculdades: inteligência, sensibilidade, emoção, sensualidade, memória etc. São coisas inteiramente diferentes.
O senhor diz, no livro, ser perfeitamente concebível um filósofo não produzir uma obra sequer em sua vida. Isso de alguma forma não corrobora a ideia do filósofo como um ser superior, que não faz parte do mundo?
Não necessariamente. Sócrates, por exemplo, era considerado filósofo porque suas ideias, mesmo não tendo sido escritas, foram discutidas e divulgadas pelos seus discípulos. Tanto ele quanto Pitágoras, outro filósofo que jamais escreveu, diziam preferir colocar suas doutrinas em seres dotados de alma (os discípulos) do que em seres sem alma (os livros). No fundo, eles achavam que, desse modo, essas doutrinas fariam mais integralmente parte do mundo.
Muitos poetas, o senhor incluído, dizem que, a rigor, o poema não serve para nada. Muito já foi declamado sobre esse assunto. Não é algo radical demais?
Não. É que o poema não precisa se justificar por nenhuma utilidade ulterior a ele mesmo. Sua leitura compensa a si própria. Nesse sentido, o poema vale por si. Isso não significa nenhum formalismo. É o poema como um todo, em que forma e conteúdo, não podem ser separados um do outro, que vale por si.
O senhor se refere muito a Carlos Drummond de Andrade no seu livro. Uma predileção especial? Podemos tratá-lo como um filósofo?
Não. Drummond não foi um filósofo. Foi o nosso maior poeta. Enquanto tal, ele não foi inferior a filósofo nenhum. A poesia é diferente, mas não é inferior nem superior à filosofia. Como eu já disse, um poema é capaz de mexer com todas as nossas faculdades: e é capaz de mexer com tudo o que sabemos, inclusive com a filosofia, a história, a geografia, a mitologia, a física que conheçamos. Um poema pode, por exemplo, falar do ser, da Grécia, de vulcões, de Zeus, de “partículas elementares” ou de “buracos negros”. Mas isso não quer dizer que ele seja uma obra de filosofia, história, geografia mitologia ou física. Ele é uma obra de poesia apenas, e isso basta.
No Brasil, a média é de pouco mais de um livro lido por ano. Isso não é muito frustrante para um escritor?
Sim; principalmente considerando que, apesar disso, nenhum governo investe maciçamente na educação.
No livro, o senhor diz que "deve-se às vanguardas do século XX a desfetichização completa de todos os recursos poéticos". Poderia explicar melhor isso?
É muito simples. Certas formas poéticas haviam sido fetichizadas, isto é, enfeitiçadas, pela tradição. Como a maior parte da poesia produzida no Ocidente moderno era metrificada e rimada, por exemplo, supunha-se que a métrica e a rima fossem intrinsecamente poéticas. Elas eram, de maneira geral, tidas como necessárias e como suficientes para a produção de um poema. Viraram fetiches. Ou seja, um texto que não possuísse métrica e rima não era normalmente tomado como um poema; e um texto que as possuísse era automaticamente tomado com um poema. Ora, as vanguardas mostraram que era possível produzir poemas sem métrica, rima ou outras características fetichizadas. Com isso, desfetichizaram tais características.
O senhor lê latim e grego? Ainda são línguas essenciais para o estudo da filosofia como foi no passado?
Tenho a impressão de que nada foi mais importante, para minha formação, do que aprender grego e latim. Nada me estimulou ou ensinou mais do que o estudo dessas línguas, tanto no que diz respeito à poesia, quanto no que diz respeito à filosofia. Mas não tenho o direito de generalizar. Há inúmeros grandes poetas e inúmeros grandes filósofos que não leem nem grego nem latim.
No ano passado, Marina Lima, sua irmã, lançou Climax, o primeiro disco sem colaborações suas. O senhor se incomodou com isso, de alguma forma?
Não me incomodou propriamente porque isso é, em parte, resultado de minha própria opção por me concentrar em escrever ensaios de filosofia e poesia para ser lida. Além disso, nossa parceria era sempre resultado de muitas conversas. Normalmente, eu ia para a casa dela, onde ela me mostrava a música que estava começando a compor e eu, a partir das conversas e do clima da música, começava a esboçar uns versos. Ora, agora Marina está morando em São Paulo e eu, no Rio, de modo que isso se tornou mais complicado. Lamento essa distância, mas tenho certeza de que ainda faremos muita coisa juntos.
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