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24.10.15

Fernando Pinto do Amaral: "Palavras"




Palavras

Sentas-te ainda à mesa – escreves
palavras tão compactas, tão opacas
como a luz que te cega. Cada dia
promete o infinito em meia dúzia
de palavras – o amor,
a vida, o tempo, a morte, a esperança,
o coração. Repete-as,
repete-as muitas vezes em voz alta
e escuta a sua música
até não quererem dizer nada.



AMARAL, Fernando Pinto do. "Palavras". In:_____. Pena suspensa. Lisboa: Dom Quixote, 2004.

16.9.15

Fernando Pinto do Amaral: "Relâmpago"




Relâmpago

Rompe-se a escuridão quando ao olhar
para uma face o mundo se ilumina
com uma claridade repentina
capaz de, só por si, fazer brilhar

a substância tão irregular
de tudo o que se acende na retina
e através da luz se dissemina
por entre imagens vãs, até formar

um fluido movimento, uma paisagem
a que estes olhos quase não reagem
salvo se nesse instante o rosto for

transfigurado pela fantasia.
E às vezes é só isso que anuncia
aquilo a que chamamos o amor.



AMARAL, Fernando Pinto do. "Relâmpago". In:_____. Poesia reunida 1900-2000. Lisboa: Dom Quixote, 2000.

19.3.15

Fernando Pinto do Amaral: "Espectro"




Espectro

Quem te disser agora como cai
a tarde apenas fala
da tua própria vida      Quem agora
te disser como desce devagar
o inverno mais secreto
ao teu corpo não mente — apenas fala
do tempo que foi teu desde o princípio
ao fim      Sempre soubeste
que nada vale nada
mas queres continuar      Todos os dias
entregam ao futuro a sua sombra
e no entanto acendem ao crepúsculo
o seu mais claro enigma, esse resto
de sol em movimento
quando por um instante vês brilhar
ainda a sua luz, o seu incerto
espectro



AMARAL, Fernando Pinto do. "Espectro". In:_____. Paliativos. Lisboa: Língua Morta, 2012.

19.6.13

Fernando Pinto do Amaral: "Voz"








Voz




Nada sabes.     Saberás cada vez menos

o que ainda procuras

outro corpo     uma alma

suspensa no abismo ou nada disso

apenas uma luz

apenas uma voz ou simplesmente

palavras

à espera de outra voz que por acaso

seja de novo a tua.





AMARAL, Fernando Pinto do. Paliativos. Lisboa: Língua Morta, 2012

3.7.11

Fernando Pinto do Amaral: "Elegia"




Elegia

Regressa neste inverno o tempo exausto
de outros invernos &nbsp &nbsp Rostos submersos
sorriem e emergem devagar
do frio rio dos versos

Olha bem para eles &nbsp &nbsp Reconheces
o que resta de ti
nos seus olhos intactos flutuando
no espelho desse rio &nbsp &nbsp A tua vida
reflui nessas imagens
nos seus reflexos líquidos que movem
as tuas ilusões Respira fundo
absorve a luz do sol
nesta manhã «de inúteis agonias»
e vê que meio século é muito pouco
desde o primeiro dia

Rompe de novo a sombra desses anos
a membrana translúcida do tempo

Talvez ainda saibas mergulhar
no mesmo rio de sempre
e no entanto é cada vez mais fria
a água do passado



AMARAL, Fernando Pinto do. "Elegia". In: Relâmpago. Revista de poesia, nº 27, ano XIV, Lisboa, outubro de 2010.

16.10.07

Fernando Pinto do Amaral: "Arte poética"

Do poeta português Fernando Pinto do Amaral, a bela “Arte poética”:


Arte Poética

Palavras,
só palavras, nada mais
que a vã matéria, o seu sentido
eco de muitos ecos, repetido
reflexo de poderes tão irreais

como essas emoções graças às quais
terei de vez em quando pretendido
dizer um só segredo a um só ouvido
ciente de que nunca são iguais

os segredos e ouvidos que procuro
às cegas neste mar sempre obscuro
onde a voz deságua como um rio

sem nascente nem foz - apenas uma
incerta confidência que se esfuma
e só foi minha enquanto me fugiu.