30.12.18

Arthur Rimbaud: "Au Cabaret-Vert" / "No Cabaré--Verde"



No Cabaré-Verde
às cinco horas da tarde

Oito dias a pé, as botinas rasgadas
Nas pedras do caminho, entrei em Charleroi.
-- No Cabaré-Verde: chego e peço torradas
Na manteiga e presunto, assim como ele está.

Reconfortado, estendo as pernas sob a mesa
Verde: e me ponho a olhar os ingênuos motivos
De uma tapeçaria. -- E, adorável surpresa,
Quando a moça de peito enorme e de olhos vivos

-- Essa, não há de ser um beijo que a amedronte! --
Sorridente me traz as torradas e um monte
De manteiga e presunto, em prato colorido:

Presunto róseo e branco, a que perfuma
Um dente de alho, e dá-me um chope imenso, a espuma
Num raio a se doirar do sol amortecido.




Au Cabaret-Vert
cinq heures du soir

Depuis huit jours j' avais déchiré mes bottines
Aux cailloux des chemins. J' entrais à Charleroi.
-- Au Cabaret-Vert: je demandai des tartines
De beurre et du jambon qui fût à moitié froid.

Bienhereux, j' allongeai les jambes sous la table
Verte: je contemplai les sujets très naïfs
De la tapisserie. -- Et ce fut adorable,
Quand la fille aux tétons énormes, aux yeux vifs,

-- Celle-là! ce n' est pas un baiser qui l' épeure! --
Rieuse, m' apporta des tartines de beurre,
Du jambon tiède, dans un plat colorié,

Du jambon rose et blanc parfumé d' une gousse
D' ail -- et m' emplit la chope immense, avec sa mousse
Que dorait un rayon de soleil arriéré.





RIMBAUD, Arthur. “Au cabaret vert” / No cabaré verde”. In:_____. Poesia completa. Trad. de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.

27.12.18

Lucia Luiz Pinto: "Ausências"



Ausências

desço as escadas
buscando sol
cansada de contar
as horas
de sua ausência
e o sol dá cor e sombra
às melancolias
escondidas
em faltas
nunca preenchidas





PINTO, Lucia Luiz. “Ausências”. In:_____. Por que não me avisaram? e outras histórias. Maricá: Canteiros, 2018.

24.12.18

Wisława Szymborska: "Anotação"



Anotação

A vida – única possibilidade
para se cobrir de folhas,
tomar fôlego na areia,
voar com asas;

ser um cão
ou acariciar seu pelo quente;

diferenciar a dor
de tudo que não é ela;

imiscuir-se nos acontecimentos,
perder-se nas paisagens,
procurar o menor dentre os erros.

Ocasião excepcional
para lembrar por um momento
do que se falava
junto à lâmpada apagada;

e uma vez pelo menos
tropeçar numa pedra,
molhar-se em alguma chuva,
perder as chaves na grama
e seguir com a vista uma fagulha ao vento;

e incessantemente não saber
algo de importante.





SZYMBORSKA, Wisława. “Anotação”. In:_____. Um amor feliz. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

22.12.18

William Soares dos Santos: "A força do desejo"



A força do desejo

A força
do desejo
se desfaz
tão logo
se saciam
as tensões
ferozes
do corpo
e dos

hemisférios

e no destino
dos braços
do tempo
os amantes
se perdem em

mistérios





SANTOS, William Soares dos. "A força do desejo". In:_____. Raro (poemas de Eros). Bragança Paulista: Editora Urutau, 2018.

20.12.18

Vielimir Khliébnikov: "Мне мало надо!" / "Bem pouco me basta": trad. por Marco Lucchesi




Bem pouco me basta!
A crosta de pão
A gota de leite.
E mais este céu,
com as suas nuvens!






Мне мало надо!
Краюшку хлеба
И капля молока.
Да зто небо,
Да зти облака!






KHLIÉBNIKOV, Vielimir. "Мне мало надо!" / "Bem pouco me basta!". In:_____. Я и Россия. Eu e a Rússia. Trad. por Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2014.

17.12.18

Joca Reiners Terron: "o futuro"



o futuro

Andar pela cidade
como se não vivesse nela
olhar rostos e coisas
como se fosse o cego
tocado pelo milagre --
amanhecer outra pessoa
-- fugir para o futuro





TERRON, Joca Reiners. "o futuro". In:_____. O sonâmbulo canta no topo do edifício em chamas. São Paulo: Pedra Papel Tesoura, 2018.

15.12.18

Ferreira Gullar: "Relva verde relva"



Relva verde relva

Dentro de mim – mas onde?
no céu
da boca? debaixo
da pele? –
fulge de repente um largo verde esquecido

dentro de mim
ou fora
(em algum lugar nenhum)
de mim
um largo como se fosse um lago
e quase a transbordar de verde

ouvia a miúda algazarra da relva
rente ao chão

ah aquela inesperada toalha verde viva
em meio à cidade em ruínas!
(o relâmpago me atinge agora numa cozinha da rua Duvivier)

De tais espantos somos feitos.





GULLAR, Ferreira. "Relva verde relva". In:_____. "Em alguma parte alguma". In:_____. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.

13.12.18

Branca Maria de Paula: "Preliminares"



Preliminares

Chutar aquela pedra do caminho.
Em rua sem saída, dar marcha a ré.
Perder o trem, mas não perder o rebolado.
Apostar no bom humor contra todos os males.
Exercitar a palavra e o silêncio.
Abrir portas secretas.
Reverenciar o mistério.
Escutar conversa de vento, rio, mar, bananeira, passarinho, cachoeira...





PAULA, Branca Maria de. "Preliminares". In: Suplemento Literário de Minas Gerais. Belo Horizonte: Secretaria de Cultura, janeiro/fevereiro de 2018. Edição nº 1.376.

11.12.18

Johann Wolfgang von Goethe: "Nachtgedanken" / "Pensamentos noturnos": trad. por Paulo Quintela



Pensamentos noturnos

Lastimo-vos, ó estrelas infelizes,
Que sois belas e brilhais tão radiosas,
Guiando de bom grado o marinheiro aflito,
Sem recompensa dos deuses ou dos homens:
Pois não amais, nunca conhecestes o amor!
Continuamente horas eternas levam
As vossas rondas pelo vasto céu.
Que viagem levastes já a cabo!,
Enquanto eu, entre os braços da amada,
De vós me esqueço e da meia-noite.





Nachtgedanken
 
Euch bedaur ich, unglückselige Sterne,
Die ihr schön seid und so herrlich scheinet,
Dem bedrängten Schiffer gerne leuchtet,
Unbelohnt von Göttern und von Menschen:
Denn ihr liebt nicht, kanntet nie die Liebe!
Unaufhaltsam führen ewge Stunden
Eure Reihen durch den weiten Himmel.
Welche Reise habt ihr schon vollendet!
Seit ich weilend in dem Arm der Liebsten
Euer und der Mitternacht vergessen.
 


GOETHE, Johann Wolfgang von. "Nachtgedanken" / "Pensamentos noturnos". In:_____. Poemas. Trad. por Paulo Quintela. Coimbra: Centelha, 1979.


9.12.18

Wallace Stevens: "The house was quiet and the world was calm" / "A casa estava quieta e o mundo calmo": trad. de Paulo Henriques Britto



A casa estava quieta e o mundo calmo


A casa estava quieta e o mundo calmo.
Leitor tornou-se livro, e a noite de verão

Era como o ser consciente do livro.
A casa estava quieta e o mundo calmo.

Palavras eram ditas como se livro não houvesse,
Só que o leitor debruçado sobre a página

Queria debruçar-se, queria mais que muito ser
O sábio para quem o livro é verdadeiro

E a noite de verão é como perfeição da mente.
A casa estava quieta porque tinha de estar.

Estar quieta era parte do sentido e da mente:
Acesso da perfeição à página.

E o mundo estava calmo. Em mundo calmo,
Em que não há outro sentido, a verdade

É calma, é verão e é noite, a verdade
É o leitor insone debruçado a ler.






The house was quiet and the world was calm


The house was quiet and the world was calm.
The reader became the book; and summer night

Was like the conscious being of the book.
The house was quiet and the world was calm.

The words were spoken as if there was no book,
Except that the reader leaned above the page,

Wanted to lean, wanted much most to be
The scholar to whom his book is true, to whom

The summer night is like a perfection of thought.
The house was quiet because it had to be.

The quiet was part of the meaning, part of the mind:
The access of perfection to the page.

And the world was calm. The truth in a calm world,
In which there is no other meaning, itself

Is calm, itself is summer and night, itself
Is the reader leaning late and reading there.






STEVENS, Wallace. "The house was quiet and the world was calm" / "A casa estava quieta e o mundo calmo". In:_____. O imperador do sorvete e outros poemas. Trad. de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

6.12.18

Jorge Luis Borges: "los Borges" / "os Borges": trad. de Josely Vianna Baptista



os Borges

Bem pouco sei de meus antecessores
portugueses, os Borges, vaga gente
que prossegue em minha carne, obscuramente,
seus hábitos, rigores e temores.
Ténues como se nunca houvessem sido
e alheios aos trâmites da arte,
indecifravelmente fazem parte
do tempo, dessa terra e do olvido.
Melhor assim. Vencida a peleia,
são Portugal, são a famosa gente
que forçou as muralhas do Oriente
e fez-se ao mar e ao outro mar de areia.
São o rei que no místico deserto
perdeu-se e o que jura não estar morto.





los Borges

Nada o muy poco sé de mis mayores
portugueses, los Borges: vaga gente
que prosigue en mi carne, oscuramente,
sus hábitos, rigores y temores.
Tenues como si nunca hubieran sido
y ajenos a los trámites del arte,
indescifrablemente forman parte
del tiempo, de la tierra y del olvido.
Mejor así. Cumplida la faena,
son Portugal, son la famosa gente
que forzó las murallas del Oriente
y se dio al mar y al otro mar de arena.
Son el rey que en el místico desierto
se perdió y el que jura que no ha muerto.





BORGES, Jorge Luis. "los Borges" / "os Borges". In:_____. O fazedor. Trad. de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

4.12.18

Giuseppe Ungaretti: "La notte bella" / "A noite bela": trad. de Geraldo Holanda Cavalcanti



A noite bela

Que canto levantou-se esta noite
que entretece
com o cristalino eco do coração
as estrelas

Qual festa prístina
de coração em núpcias

Fui
um charco de trevas

Hoje mordo
como uma criança a teta
o espaço

Hoje estou bêbado
de universo





La notte bella

Quale canto s'è levato stanotte
che intesse
di cristallina eco del cuore
le stelle

Quale festa sorgiva
di cuore a nozze

Sono stato
uno stagno di buio

Ora mordo
come un bambino la mammella
lo spazio

Ora sono ubriaco
d'universo




UNGARETTI, Giuseppe. "La notte bella" / "A noite bela". In:_____. Poemas. Trad. e notas de Geraldo Holanda Cavalcanti. São Paulo: EDUSP, 2017.

2.12.18

Victor Hugo: "Le poète s'en va dans les champs" / "O poeta vai pelos campos": trad. por William Zeytounlian



O poeta vai pelos campos

O poeta vai pelos campos; ele admira,
ele adora; ouve em si mesmo uma lira;
e vendo-o vir, as flores, todas as flores,
que dos rubis apagam as cores,
que do pavão o rabo anulam
a florzinha de ouro, a florzinha azul,
assumem, para em seus ramos acolhê-lo,
jeitinhos distraídos, jeitões bem faceiros,
e, familiarmente, pois convém às belas:
“Calma! é nosso amante que passa”, dizem elas.
E, cheias de dia e sombra e confusas vozes
As profundas árvores que vivem nos bosques,
Essas anciãs, os teixos, as tílias, os áceres,
Salgueiros enrugados, carvalhos veneráveis,
O olmo de ramagem negra, o musgo grave,
Como os ulemás quando o mufti surge,
Saúdam-lhe e se curvam até a terra
A cabeça frondosa e as barbas de hera,
Contemplam em sua fronte o sereno fulgor,
E murmuram baixinho: “Ei-lo! é o sonhador”.




Le poëte s’en va dans les champs

Le poëte s’en va dans les champs ; il admire,
Il adore ; il écoute en lui-même une lyre ;
Et le voyant venir, les fleurs, toutes les fleurs,
Celles qui des rubis font pâlir les couleurs,
Celles qui des paons même éclipseraient les queues,
Les petites fleurs d’or, les petites fleurs bleues,
Prennent, pour l’accueillir agitant leurs bouquets,
De petits airs penchés ou de grands airs coquets,
Et, familièrement, car cela sied aux belles :
— Tiens ! c’est notre amoureux qui passe ! disent-elles.
Et, pleins de jour et d’ombre et de confuses voix,
Les grands arbres profonds qui vivent dans les bois,
Tous ces vieillards, les ifs, les tilleuls, les érables,
Les saules tout ridés, les chênes vénérables,
L’orme au branchage noir, de mousse appesanti,
Comme les ulémas quand paraît le muphti,
Lui font de grands saluts et courbent jusqu’à terre
Leurs têtes de feuillée et leurs barbes de lierre,
Contemplent de son front la sereine lueur,
Et murmurent tout bas : C’est lui ! c’est le rêveur !






HUGO, Victor. "Le poète s'en va dans les champs" / "O poeta vai pelos campos". Trad. de William Zeytounlian. In: MENDONÇA, Vanderley (org.). Lira agenta. Poesia em tradução. São Paulo: Selo Demônio Negro, 2016.