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31.1.22

Armando Freitas Filho: "Escritório"

 



Escritório



Igual ao que as pedras pesam

os livros lidos, relidos e idos

me carregam, não sei se mais

ou menos, do que aqueles que não.

Do que aqueles tantos fechados

ou só folheados que curvam a tábua

da estante, que cavam um lugar

cerrados, cegos de mim, que vão fundo

mesmo ficando parados - à espera

e que apenas as traças atravessam.





FREITAS FILHO, Armando. "Escritório". In:_____ "Duplo cego". In:_____ Uma antologia . Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2006. 

6.12.20

Armando Freitas Filho: "Vincent"

 



Vincent



O barulho da cor gritante

daquele quadro: a pincelada

chicoteava e custava achar

o tom certo sobreposto

ao outro sem apagá-lo de todo.

A intenção do pincel era

a de incrementar o pigmento

até o limite do inacabado

da exasperação, da intensidade

do sentimento, adensando-o

para muito além do esperado.

E a pintura mesmo depois de seca

mesmo depois dos séculos

acontecia viva no instante

em que o olhar a capturava.







FREITAS FILHO, Armando. "Vincent". In:_____. Arremate. Poemas (2013-2019). São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

11.5.20

Armando Freitas Filho: "Escrever é riscar o fósforo"




23


Escrever é riscar o fósforo
e sob seu pequeno clarão
dar asas ao ar – distância, destino
segurando a chama contra
a desatenção do vento, mantendo
a luz acesa, mesmo que o pensamento
pisque, até que os dedos se queimem.





FREITAS FILHO,  Armando. 23: "Escrever é riscar o fósforo". In:_____. "Numeral". In:_____.  Máquina de escrever: poesia reunida e revista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

7.5.18

Armando Freitas Filho: "A tarde precipita sua cor"




A tarde precipita sua cor 
cai, no começo 
      no princípio da noite 
e o que ainda aqui resiste 
meio fera, ao precipício 
ficou na beira da taça 
que não suporta mais 
sequer um riso 
pois todo cristal está sempre
na iminência, um minuto antes
            de partir.





FREITAS FILHO, Armando. "A tarde precipita sua cor". In:_____. Uma antologia. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2006.

3.4.18

Armando Freitas Filho: "Da casa dos três dígitos"



100

Da casa dos três dígitos

não saio mais. Trinco.

Dia após dia de prisão

na cidade em carne viva.

Entre em si para sempre:

tendo de seu, apenas, o bodum

ranzinza do corpo

que vai se resignando

a não perseguir o inominável

nem a se persignar.





FREITAS FILHO, Armando. “100: Da casa dos três dígitos”. In:_____. Lar. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

4.5.17

Armando Freitas Filho: "Outra receita"



Outra receita

Da linguagem, o que flutua
ao contrário do feijão à João
é o que se quer aqui, escrevível:
o conserto das palavras, não só
o resultado final da oficina
mas o ruído discreto e breve
o rumor de rosca, a relojoaria
do dia e do sentido se fazendo
sem hora para acabar, interminável
sem acalmar a mesa, sem o clic
final, onde se admite tudo -
o eco, o feno, a palha, o leve -
até para efeito de contraste
para fazer do peso - pesadelo.
E em vez de pedra quebra-dente
para manter a atenção de quem lê
como isca, como risco, a ameaça
do que está no ar, iminente.



FREITAS FILHO, Armando. "Outra receita". In:_____. Raro mar. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

19.7.16

Armando Freitas Filho: "Poema-prefácio"




Poema-prefácio


O rol desenrolado aqui
acolhe de tudo um pouco.
Coisas de cama, mesa, banho
um trivial variado, familiar
estranho, com uma pitada de déjà-vu
e o apanhado na rua, andando:
às vezes tão urgente e passageiro
que sem "nada no bolso ou nas mãos"
pedia canetas emprestadas
e um papel qualquer, onde
escrevia calcando, com letra
garranchosa, de dentro, imediata
e torta, mas que se aplicava
exata, naquilo que corria
por fora do escritório da cabeça
no vento livre de véu, a céu aberto
ou quando não, no nó apertado
cego, difícil de desmanchar
o que apressava o ponto final.



FREITAS FILHO, Armando. "Poema-prefácio". In:_____. Rol. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

2.3.16

Armando Freitas Filho: "Bob"




Bob

Primeiro amor fora da família.
Primeira língua que me lambeu
deliciosamente morna de desejo.
Primeiro beijo de língua, primeiro
amigo, guardião das sete chaves
de todos os segredos: dos mais
sujos ou íntimos da alma de carne.
Meu meio-irmão de outra raça
ou meu primeiro filho, inconcebível
morto aos quatorze anos.




FREITAS Filho, Armando. "Bob". In:_____. Lar, São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

16.3.15

Armando Freitas Filho: "Músculo, mas do coração"




                                            para Carlos

Músculo, mas do coração.
A felicidade é indefensável
e esta casa está tão delicada
até nos pregos
construída e definitiva.
Pratos, copos, toda a louça
e o que é de vidro, vive
plenamente -- brilha
sem medo do esplendor.




FREITAS FILHO, Armando. "Músculo, mas do coração". In:_____. "Números anônimos". In:_____. Máquina de escrever. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

15.2.15

Armando Freitas Filho: "De um sonho"



De um sonho

A areia retida nas mãos em concha
vaza, e inicia a ampulheta
preenchendo as fôrmas das letras
e de algumas figuras:
a do A surge consistente
seguida do molde do rosto de uma criança
dentro da bacia oval e úmida que as mãos
escavaram, à beira da baía de igual formato
no intervalo de uma onda mais forte e outra.
O avanço do mar acaba apagando
a construção na praia, mas a memória
a reescreve com o mesmo espírito, método
e redundância, nas linhas da maré.



FREITAS FILHO, Armando. Dever. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

12.8.14

Armando Freitas Filho: "Ar de família"




Ar de família

Só sei ser íntimo ou não sei ser.
O que escrevo me ameaça de tão perto.
Amassa mãe, pai, filhos, mulheres
os de sangue símil, os de romance
os de tinta de impressão, de árvore
venosa de folhas variáveis no vento
das estações, no ferido almofariz
com o mesmo pilão de pedra
sem lavar, e entre uma socada e outra
o silêncio do punho fechado.



FREITAS FILHO, Armando. Dever. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

7.9.13

Armando Freitas Filho: "Encontrar o que se perdeu"

Fiquei felicíssimo de receber o seguinte poema, dedicado a mim, pelo grande poeta Armando Freitas Filho:



Encontrar o que se perdeu

                                           para Antonio Cicero

Encontrar o que se perdeu
dentro da cabeça
antes de usar a mão
para pegá-lo fora dela
e encontrar-se no sentimento
longínquo, quase esquecido
é encontrar os óculos para ver melhor
a hora certa do dia, reaprender
apreender, usufruir de novo
o gosto de saber, guardar
ainda que for para dar ou dividir
porque assim não estará
nem perdido, nem preso, nem à parte. 

23.7.11

Armando Freitas Filho: "Calder"




Calder


Linha leve ao léu
se lança: dinâmica
aranha de arame
tátil na teia

desenvolve móbile
tateia mecânico
mobilento serial
irradia seu raio

medular, corre
a cor — reticente
filamento, infinito
filiforme pensamento

oscila, delineia
desenrola um perfil
na orla do ar
sublinha assobio, silvo

célere labirinto
falha, o filme
de sua febre frágil:
fio fino fim.


FREITAS FILHO, Armando. "Calder" In: Instauração práxis. São Paulo: Edições Quiron, 1974, p.188.

9.12.10

Mauro Santa Cecília: "Á prova de dissabores"





Na terça-feira passada ocorreu o lançamento, no POP, da bela antologia que Heloisa Buarque de Holanda fez de poemas de Armando Freitas Filho. Mediados por João Camillo Penna, Heloisa e Armando compuseram uma mesa extremamente espirituosa.

Depois do lançamento, fui com o poeta Mauro Santa Cecília ao Caroline Café, ali perto. Mauro relata nossa passagem pelo Café numa crônica intitulada "À prova de dissabores", a 82ª da série de crônicas "De bar em bar", escritas por ele. Ela pode ser lida no blog MauroStaCecília, no endereço: http://maurosantacecilia.blogspot.com/2010/12/prova-de-dissabores.html.

6.7.10




Ravel


Todo telefone é terrível - negro
guerrilheiro, à escuta na sala
disfarçado ao lado do sofá
à espera, no gancho
sempre na véspera
com o grampo da granada
já nos dentes.
A única saída é ocupá-lo
para que não estoure
(não posso te agarrar daqui
nem pelos fios dos cabelos
pare antes que toque
e o infinito acabe).
Todo terrível é telefone - negro
à escuta
guerrilheiro à espera
ao lado do sofá
disfarçado na sala
na véspera da granada
com o grampo nos dentes fora do gancho
ocupando a única saída
para que não estoure
(não posso nem pelos cabelos
antes que acabe e toque
o infinito, te agarrar, nos fios, pare
daí).




FREITAS FILHO, Armando. In: BUARQUE DE HOLLANDA, Heloisa (Org.). Armando Freitas Filho. Coleção Melhores Poemas. São Paulo: Global Editora, 2010.

28.11.09

Armando Freitas Filho: "Por esta fresta te espreito"


FREITAS FILHO, Armando. Mademoiselle Furta-Cor. Oito poemas eróticos ilustrados por Rubens Gerchman. Florianópolis: Noa Noa, 1977.

29.8.09

Armando Freitas Filho: "Fuso"




Fuso

Tento acertar meu relógio
pelo seu, parado, há tanto
com o suor do pulso, seco
a pulseira de couro partida
que ainda guarda algum sal.
Pai, a certeza de sua hora
me falta, e mesmo tendo
andado, não consegui chegar
a tempo, de pegar seu passo
emparelhar-me — servir
de companhia para sempre —
e passar à descendência
os firmes compromissos
pois me perdi pelo caminho.



FREITAS FILHO, Armando. Lar,. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

28.5.07

Armando Freitas Filho: Caçar em vão

Um clássico de Armando Freitas Filho:



Caçar em vão


Às vezes escreve-se a cavalo.

Arremetendo, com toda a carga.

Saltando obstáculos ou não.

Atropelando tudo, passando

por cima sem puxar o freio –

a galope – no susto, disparado

sobre pedras, fora da margem

feito só de patas, sem cabeça

nem tempo de ler no pensamento

o que corre ou o que empaca:

sem ter a calma e o cálculo

de quem colhe e cata feijão.



Do livro Fio terra

In: Máquina de escrever: poesia reunida e revista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p.583.