29.3.08

Mia Couto: "Sonhar em casa"

Publico a seguir o discurso -- que muito me emocionou -- do escritor moçambicano Mia Couto sobre Jorge Amado, feito por ocasião da homenagem ao escritor baiano que teve lugar no SESC Pinheiros, em São Paulo, no dia 25 de março.


SONHAR EM CASA

Eu venho de muito longe e trago aquilo que eu acredito ser uma mensagem partilhada pelos meus colegas escritores de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe. A mensagem é a seguinte: Jorge Amado foi o escritor que maior influência teve na génese da literatura dos países africanos que falam português.

A nossa dívida literária com o Brasil começa há séculos atrás, quando Gregório de Mattos e Tomaz Gonzaga ajudaram a criar os primeiros núcleos literários em Angola e Moçambique. Mas esses níveis de influência foram restritos e não se podem comparar com as marcas profundas e duradouras deixadas pelo autor baiano.

Deve ser dito, (como uma confissão à margem) que Jorge Amado fez pela projecção da nação brasileira mais do que todas as instituições governamentais juntas. Não se trata de ajuízar o trabalho dessas instituições, mas apenas de reconhecer o imenso poder da literatura. Nesta sala, estão outros que igualmente engrandeceram o Brasil e criaram pontes com o resto do mundo. Falo, é claro, de Chico Buarque e Caetano Veloso. Para Chico e Caetano, vai a imensa gratidão dos nossos países que encontraram luz e inspiração na vossa música, na vossa poesia. Para Alberto Costa e Silva vai o nosso agradecimento pelo empenho sério no estudo da realidade histórica do nosso continente.

Nas décadas de 50, 60 e 70, os livros de Jorge cruzaram o Atlântico e causaram um impacto extraordinário no nosso imaginário colectivo. É preciso dizer que o escritor baiano não viajava sozinho: com ele chegavam Manuel Bandeira, Lins do Rego, Jorge de Lima, Erico Veríssimo, Raquel de Queiroz, Drummond de Andrade, João Cabral Melo e Neto e tantos, tantos outros.

Em minha casa, meu pai - que era e é poeta - deu o nome de Jorge a um filho e de Amado a um outro. Apenas eu escapei dessa nomeação referencial. Recordo que, na minha família, a paixão brasileira se repartia entre Graciliano Ramos e Jorge Amado. Mas não havia disputa: Graciliano revelava o osso e a pedra da nação brasileira. Amado exaltava a carne e a festa desse mesmo Brasil.

Neste breve depoimento eu gostaria de viajar em redor da seguinte interrogação: porquê este absoluto fascínio por Jorge Amado, porquê esta adesão imediata e duradoura?

É sobre algumas dessas razões do amor por Amado que eu gostaria de falar aqui.

É evidente que a primeira razão é literária, e reside inteiramente na qualidade do texto de escritor baiano.

Eu tenho para mim que o maior inimigo do escritor pode ser a própria literatura. Pior que não escrever um livro, é escrevê-lo demasiadamente. Jorge Amado soube tratar a literatura na dose certa, e soube permanecer, para além do texto, um exímio contador de histórias e um notável criador de personagens. Recordo o espanto de Adélia Prado que, após a edição dos seus primeiros versos confessou "eu fiz um livro e, meu Deus, não perdi a poesia..." Também Jorge escreveu sem deixar nunca de ser um poeta do romance. Este era um dos segredos do seu fascínio: a sua artificiosa naturalidade, a sua elaborada espontaneidade.

Hoje, ao reler os seus livros, ressalta esse tom de conversa intíma, uma conversa à sombra de uma varanda que começa em Salvador da Baía e se estende para além do Atlântico. Nesse narrar fluído e espreguiçado, Jorge vai desfiando prosa e os seus personagens saltam da página para a nossa vida quotidiana.

O escritor Gabriel Mariano de Cabo Verde escreveu o seguinte:

“Para mim a descoberta de Amado foi um alumbramento porque eu lia os seus livros e estava a ver a minha terra. E quando encontrei o Quincas Berro d'Água eu estava a vê-lo na Ilha de São Vicente, na minha rua de Passá Sabe.”

Esta familiaridade exisitencial foi, certamente, um dos motivos do fascínio nos nossos países. Os seus personagens eram vizinhos não de um lugar, mas da nossa própria vida. Gente pobre, gente com os nossos nomes, gente com as nossas raças passseavam pelas páginas do autor brasileiro. Ali estavam os nossos malandros, ali estavam os terreiros onde falamos com os deuses, ali estava o cheiro da nossa comida, ali estava a sensualidade e o perfume das nossas mulheres. No fundo, Jorge Amado nos fazia regressar a nós mesmos.

Em Angola, o poeta Mario António e o cantor Ruy Mingas compuseram uma canção que dizia:

“Quando li Jubiabá me acreditei Antônio Balduíno. Meu Primo, que nunca o leu ficou Zeca Camarão.”

E era esse o sentimento: António Balduino já morava em Maputo e em Luanda antes de viver como personagem literário. O mesmo sucedia com Vadinho, com Guma, com Pedro Bala, com Tieta, com Dona Flor e Gabriela e com tantos os outros fantásticos personagens.

Jorge não escrevia livros, ele escrevia um país. E não era apenas um autor que nos chegava. Era um Brasil todo inteiro que regressava a África. Havia pois uma outra nação que era longínqua mas não nos era exterior. E nós precisávamos desse Brasil como quem carece de um sonho que nunca antes souberamos ter. Podia ser um Brasil tipificado e mistificado mas era um espaço mágico onde nos renasciamos criadores de histórias e produtores de felicidade.

Descobríamos essa nação num momento histórico em que nos faltava ser nação. O Brasil - tão cheio de África, tão cheio da nossa língua e da nossa religiosidade - nos entregava essa margem que nos faltava para sermos rio.

Falei de razões literárias e outras quase ontológicas que ajudam a explicar porque Jorge é tão Amado nos países africanos. Mas existem outros motivos, talvez mais circunstânciais.

Nós vivíamos sob um regime de ditadura colonial. As obras de Jorge Amado eram objecto de interdição. Livrarias foram fechadas e editores foram perseguidos por divulgarem essas obras. O encontro com o nosso irmão brasileiro surgia, pois, com épico sabor da afronta e da clandestinidade. A circunstância de partilharmos os mesmos subterrâneos da liberdade também contribuiu para a mística da escrita e do escritor. O angolano Luandino Vieira, que foi condenado a 14 anos de prisão no Campo de Concentração do Tarrafal, em 1964 fez passar para além das grades uma carta em que pedia o seguinte:

“Enviem o meu manuscrito ao Jorge Amado para ver se ele consegue publicar lá, no Brasil...”

Na realidade, os poetas nacionalistas moçambicanos e angolanos ergueram Amado como uma bandeira. Há um poema da nossa Noémia de Sousa que se chama Poema de João, escrito em 1949 e que começa assim:

“João era jovem como nós João tinha os olhos despertos, As mãos estendidas para a frente, A cabeça projectada para amanhã, João amava os livros que tinham alma e carne João amava a poesia de Jorge Amado.”

E há, ainda, uma outra razão que poderíamos chamar de linguistica. No outro lado do mundo, se revelava a possibilidade de um outro lado da nossa língua.

Na altura, nós carecíamos de um português sem Portugal, de um idioma que, sendo do Outro, nos ajudasse a encontrar uma identidade própria. Até se dar o encontro com o português brasileiro, nós falavamos uma língua que não nos falava. E ter uma língua assim, apenas por metade, é um outro modo de viver calado. Jorge Amado e os brasileiros nos devolviam a fala, num outro português, mais açucarado, mais dançável, mais a jeito de ser nosso.

O poeta maior de Moçambique, José Craveirinha, disse o seguinte numa entrevista:

“Eu devia ter nascido no Brasil. Porque o Brasil teve uma influência tão grande que, em menino eu cheguei a jogar futebol com o Fausto, o Leonidas da Silva, o Pelé. Mas nós éramos obrigados a passar pelos autores clássicos de Portugal. Numa dada altura, porém, nós nos libertámos com ajuda dos brasileiros. E toda a nossa literatura passou a ser um reflexo da Literatura Brasileira. Quando chegou o Jorge Amado, então, nós tínhamos chegado a nossa própria casa.”

Craveirinha falava dessa grande dádiva que é podermos sonhar em casa e fazer do sonho uma casa. Foi isso que Jorge Amado nos deu. E foi isso que fez Amado ser nosso, africano, e nos fez, a nós, sermos brasileiros. Por ter convertido o Brasil numa casa feita para sonhar, por ter convertido a sua vida em infinitas vidas, nós te agradecemos companheiro Jorge.

Muito obrigado.

Mia Couto

26.3.08

Rosa Maria Martelo: Proteu e a forma

Eis a recensão do meu livro Finalidades sem fim, feita pela brilhante ensaísta e professora da Universidade do Porto, Rosa Maria Martelo, e publicada na revista Relâmpago:


Proteu e a forma

Antonio Cícero, Finalidades sem Fim, Quasi Edições, 2007
Rosa Maria Martelo

Em Finalidades sem Fim, Antonio Cicero reuniu um conjunto de nove ensaios, escritos entre 1998 e 2003. Um desses ensaios é inédito, os restantes tinham sido objecto de publicação dispersa, em revistas ou obras colectivas. Conforme é dito na “Introdução”, alguns dos estudos assim coligidos sofreram modificações significativas aquando da preparação deste volume. E talvez esse seja um dos motivos pelos quais, ao ler estes ensaios, não é difícil captar um certo “ar de família” entre todos eles, embora esse “ar de família” tenha certamente menos a ver com o momento da organização de Finalidades sem Fim do que com o facto de, ao longo deste livro, se desenhar uma reflexão conduzida por um conjunto de questões articuladas de forma continuada e pessoal, o que nos permite acompanhar um pensamento em processo.

Neste livro, a elaborada formação filosófica do poeta Antonio Cicero é predominantemente orientada para a compreensão da poesia e, num sentido mais lato, da criação artística. Como o Autor esclarece no texto de abertura, “sete ensaios tratam de poesia; um, de música; outro, de pintura” (9). Porém, muitas das questões tratadas são comuns a diferentes campos da arte. Ainda na “Introdução”, Antonio Cicero lembra um dito de Goethe – “Poeta e artista: aquele é gênero, este é espécie” (9) – para acrescentar: “Aceitemos, ao menos provisoriamente, essa qualificação, de modo que me baste, doravante, dizer «poeta» ou «poesia» para significar artista e arte”. E, de facto, é muitas vezes no entrecruzar de poesia e arte (reunidas num sentido amplo de poiesis) que se desenvolve o pensamento elaborado nestes nove ensaios.

Antonio Cicero comentou numa entrevista que, muito mais do que estar preocupado com conhecer um pouco de tudo aquilo que se vai publicando, lhe interessavam os seus livros, acrescentando que muitos deles eram de autores clássicos, lidos na língua original. É uma afirmação que logo associo a um comentário de Eduardo Lourenço, que me lembro de ter ouvido referir, também numa entrevista, creio eu, o quanto tinha sofrido a olhar para a incomensurável extensão das paredes das bibliotecas sabendo que nunca poderia ler tudo quanto gostaria. Isto – explicava depois – até ter compreendido que um leitor apenas precisa de ler os seus livros. Saber quais são os nossos livros demora um certo tempo e passa pelo repetido desacerto de muitos desencontros, mas é verdade que – a partir de uma certa altura, pelo menos – é assim: temos os nossos livros, com os quais nos habituámos a pensar. Ora quando comecei a ler Finalidades sem Fim, não foram precisas muitas páginas para eu me lembrar de um dos meus livros, que é um pequeno ensaio de Jean-Luc Nancy, onde encontrei há alguns anos uma frase que, subitamente, condensava e reapresentava de forma límpida uma série de questões que para mim eram, e são, importantes: “A poesia” – escrevia Nancy – “não coincide consigo mesma: talvez seja essa não-coincidência, essa impropriedadde substancial, aquilo que faz propriamente a poesia”. No essencial, trata-se de uma afirmação que exclui a possibilidade de uma definição essencialista da poesia, mas ao mesmo tempo a define, embora através do movimento de auto-transformação criadora pelo qual a poesia se lança num permanente devir outra coisa que não o que nela possamos reconhecer, circunstancialmente, como poético.

À medida que ia lendo o primeiro ensaio de Finalidades sem Fim, “Poesia e paisagens urbanas”, que coloca a poesia sob o signo do desenraizamento, fui reconhecendo esta questão. E ela assume no livro um lugar tão significativo que, não por acaso, o fragmento do primeiro ensaio onde ela surge resumida reaparece, parcialmente, na contracapa do livro:

"(...) o verdadeiro poeta faz questão de ser fiel à poesia propriamente dita, mas não necessariamente às aparências acidentais que ela terá assumido e que a contingência histórica terá posto à disposição dele. (...) A poesia deve chegar a ser o que é. É para ser fiel à poesia em si que o verdadeiro poeta se insubordina não somente contra a poesia convencional, mas contra o olhar ou a apreensão convencional da poesia. (...) Contra essa concepção domesticada da poesia, o verdadeiro poeta se impõe uma tarefa dupla: por um lado, revelar a poesia em estado essencial e selvagem e, por outro, desmantelar as convenções que a elidem ou domesticam. (15-16)"

Como Antonio Cicero lembra a seguir, foi na passagem do séc. XIX para o séc. XX, com a emergência das vanguardas, que se radicalizou este entendimento, pelo qual a poesia se desidentifica das formas que simultaneamente permitem o seu reconhecimento. Entender que, para a poesia chegar a ser o que é, se torna necessário libertá-la de todo o convencionalismo, quando simultaneamente sabemos que essa libertação institui outros convencionalismos, que geram novos actos de libertação, e entender que nesse constante devir se inscreve a fidelidade à poesia, não estará muito longe da valorização, por parte de Jean-Luc Nancy, de uma não-coincidência da poesia consigo mesma, de uma impropriedade substancial, como sendo o ponto onde mais devemos esperar compreender o que a poesia é. E simplificando, mas num breve texto como este não posso senão simplificar, creio poder dizer que Finalidades sem Fim roda em torno desta questão (alargando-a ao campo das artes plásticas e da música), abrindo-a e reabrindo-a a partir de vários ângulos.

Neste primeiro ensaio, a questão do desenraizamento (do desenraizamento urbano, mas também do desenraizamento em sentido lato) conduz à revisitação das vanguardas e depois à ideia de ruptura que normalmente lhes vem associada, para deixar claro que a ruptura é “um subproduto” (18) de um outro movimento, esse sim, essencial: a relativização das formas antigas (19), a demonstração do carácter acidental das formas (18). Antonio Cicero dedica algum tempo a demonstrar o carácter eminentemente conceptual da experiência das vanguardas, deixando claro que, nelas, esta dimensão prevalece sobre a dimensão estética e que a grande herança deixada pelas vanguardas históricas foi a do reconhecimento de não podermos dizer “ex ante o que vai contar como poesia e o que não” (23). É, no dizer de Antonio Cicero, o levar “às últimas consequências as possibilidades de desenraizamento e urbanidade presentes na própria escrita alfabética”, da qual teria partido a progressiva consciência da contingência das formas. (24).

Assim, o ensaio seguinte é dedicado à poesia de Waly Salomão, que Antonio Cicero procura subtrair ao peso dos clichés que pesam sobre a imagem pública do autor, passando o terceiro ensaio para o domínio da música – “O tropicalismo e a MPB”. O modo como é lida a MPB, isto é, a valorização levada a cabo por Antonio Cicero do que considera ser “a elucidação conceitual empreendida pelo tropicalismo”, que “mostra que a MPB não tem limites preestabelecidos, pois não tem essência” (60), aproxima a sua análise do tropicalismo do que anteriormente descrevera como o movimento essencial das vanguardas históricas. Analogamente, também neste caso se trata, em seu entender, de destruir “as bases sobre as quais se consideravam como essencial ou privilegiadamente brasileiros determinados géneros ou formas, em detrimento de outros” (60), abrindo tanto o espaço da tradição como o da contemporaneidade. Estaríamos, assim, num espaço de consumação da modernidade, agora observado no plano musical. Antes, no primeiro ensaio que referi, Antonio Cicero tinha afirmado que o grande feito das vanguardas fora o seguinte: “Aprendemos, de uma vez por todas, não ser possível determinar nem a necessidade nem a impossibilidade – em princípio – de que a poesia empregue qualquer forma concebível. Abriu-se para ela a perspectiva de uma infinidade de caminhos possíveis, porém contingentes” (22). A modernidade da MPB estaria, naturalmente, na assimilação deste aprendizado no plano musical.

No contexto deste tipo de reflexões, o leitor não se surpreende com o título dos dois ensaios seguintes: “Drummond e a modernidade” e “Limites do moderno, ou de Mário de Andrade?”. Um aspecto muito interessante do ensaio dedicado a Carlos Drummond de Andrade passa pela recuperação da leitura que vinha sendo feita do papel das vanguardas, lembrando Antonio Cicero que “[a]ntes de desfetichizar as formas tradicionais, a vanguarda as manteve fetichizadas, porém inverteu o valor desse feitiço. Se tradicionalmente as formas convencionais haviam sido as únicas formas admissíveis na poesia, a vanguarda passou a tomá-las como as únicas formas inadmissíveis na poesia” (64).

A questão da contingência das formas é igualmente observada a partir do estudo do modernismo na pintura. No ensaio “A época da crítica: Kant, Greenberg e o modernismo”, Antonio Cicero demonstra que o desejo de uma pintura pura permite descobrir “o carácter acidental da própria pintura em relação à arte” (175). Esta questão acabará por estar presente ao longo de todo o livro, contribuindo, também ela, para que Finalidades sem Fim se leia mais como um longo ensaio em várias partes do que como um conjunto diversificado de ensaios, mesmo se os textos deste livro têm temas muito diferentes entre si. De certa maneira, é ainda esta questão, captada num momento absolutamente matricial, aquela que vai orientar toda a reflexão conduzida no último ensaio do livro, “Epos e Muthos em Homero”. Ao procurar distinguir rigorosamente estas duas noções, a partir de várias ocorrências nos poemas homéricos, e avaliando todas as implicações de se ver na primeira o discurso e na segunda o tema (236), o dizer e o dito (mas em modulações extremamente criteriosas que esta simples designação não pode senão trair), Antonio Cicero conclui:

"Por fim, deve-se sublinhar ainda outro efeito surpreendente da afirmação por Homero do caráter épico dos seus poemas. É que, ao reiterar manifestamente a própria canção divina das Musas, isto é, a canção-tipo, o poeta se libera da obrigação de imitar qualquer instância prévia, que dizer, qualquer variante particular da mesma canção entre os humanos. Se fosse obrigado a imitar um modelo humano, não estaria à altura nem mesmo desse modelo. É por – e para – beber da fonte das Musas que o poeta se sente, per impossibile, obrigado a realizar algo que, jamais tendo sido feito antes, encontra-se à altura daquilo que de melhor fizeram os poetas que o antecederam ou que lhe são contemporâneos. Da fonte da tradição – fons et origo – jorra a invenção." (246-7)

A distinção entre epos e muthos fora já o ponto de partida para o ensaio anterior, “Proteu”, onde Antonio Cicero, depois de analisar a narrativa feita por Menelau a Telémaco, na Odisseia, do seu encontro com Proteu, e depois de assinalar neste velho deus do mar e sua filha uma tensão entre o fluxo (o movimento) e a forma (186), passa pelas difíceis relações de Platão com os poetas, e por Anaximandro, analisando pormenorizadamente as suas posições. Destaco a conclusão:

"Toda a forma consiste num momento estancado e preservado do movimento do qual provém. Também o poema é uma forma, mas uma forma que porta em si a marca-d’água do movimento. Ele reflete no seu próprio ser o movimento originário. O poema é a forma que incorpora em si o seu oposto, isto é, o ápeiron, que é a poesia. Cada vez que o lemos, ele se torna diferente não só do que era na leitura anterior, mas de si próprio no exato instante em que o estamos a ler: Proteu nos braços de Eidotéia." (204)

Talvez não sejam precisos mais exemplos para deixar claro que há uma problemática única a atravessar o livro Finalidades sem Fim, fazendo dos vários ensaios diferentes tentativas de responder a interrogações afins ou complementares. Em “Poesia e Filosofia”, questões como a da sobrecodificação do poema, “dotado de um[n] altíssimo grau de escritura” (93) que Antonio Cicero associa à indissociabilidade entre significado e significante (96) e à intraduzibilidade, conduzem-nos novamente a uma noção afim da de epos: “os poemas são mais escritos porque são mais fixos que os não-poemas”, o que eles dizem não se separa do modo como dizem, do que são enquanto ocorrência de discurso (cf. 106). É, de resto, esta consideração do poema que faz dele “um objeto artificial desprovido, portanto, de fim, isto é, de causa final” (111).

Antonio Cicero recorda a explicação kantiana de que “a beleza se encontra na finalidade sem fim”, para poder demonstrar que, na sua hiper-codificação e despragmatização, o poema suscita uma apreensão estética, isto é: “livramo-nos do cálculo utilitário ou moral justamente para deixar que a obra, resplandecente provoque em nós o jogo livre das faculdades cognitivas” (119). Proteu nos braços de Eidotéia, a forma que contém em si a marca d’água do movimento, a irrupção do informe e a expectativa da forma. Sobre esta margem, a poesia e as outras artes constroem uma consciência crítica e estética que as abre ao devir. E é também sobre essa mesma margem que Antonio Cicero desenvolve uma muito estimulante reflexão sobre a poesia e as artes.



De: MARTELO, Rosa Maria. "Proteu e a forma". Recensão de 'Finalidades sem fim', de Antonio Cicero. In: Relâmpago. Revista de poesia. Lisboa, nº 21, outubro de 2007, p.223-226.

25.3.08

Arthur Rimbaud: Venus Anadiomène

Em comentário aos "Quatro sonetos a Afrodite Anadiómea" de Jorge de Sena, Homo Antiquus citou o soneto "Venus Anadyomène", de Rimbaud. Ei-lo, seguido da tradução de Ivo Barroso:


Venus Anadyomène

Comme d’un cercueil vert en fer blanc, une tête
De femme à cheveux bruns fortement pommadés
D’une vieille baignoire émerge, lente et bête,
Avec des déficits assez mal ravaudés;

Puis le col gras et gris, les larges omoplates
Qui saillent; le dos court qui rentre et qui ressort;
Puis les rondeurs des reins semblent prendre l’essor;
La graisse sous la peau paraît en feuilles plates:

L’échine est un peu rouge, et le tout sent un goût
Horrible étrangement; on remarque surtout
Des singularités qu’il faut voir à la loupe…

Les reins portent deux mots gravés: CLARA VENUS;
—Et tout ce corps remue et tend sa large croupe
Belle hideusement d’un ulcère à l’anus.




Vênus Anadiomene

Qual de um verde caixão de zinco, uma cabeça
Morena de mulher, cabelos emplastados,
Surge de uma banheira antiga, vaga e avessa,
Com déficits que estão a custo retocados.

Brota após grossa e gorda a nuca, as omoplatas
Anchas; o dorso curto ora sobe ora desce;
Depois a redondez do lombo é que aparece;
A banha sob a carne espraia em placas chatas;

A espinha é um tanto rósea, e o todo tem um ar
Horrendo estranhamente; há, no mais, que notar
Pormenores que são de examinar-se à lupa...

Nas nádegas gravou dois nomes: Clara Vênus;
-- E o corpo inteiro agita e estende a ampla garupa
Com a bela hediondez de uma úlcera no ânus.



De: RIMBAUD, Arthur. Poesia completa. Edição biligue. tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994.

Obs.: A edição citada conta com excelentes notas explicativas.

23.3.08

O moderno e o pré-moderno

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 22 de março:


O moderno e o pré-moderno

QUALQUER HOMEM moderno, medianamente culto, e que viva numa sociedade aberta, consideraria intolerável que lhe fosse negada a perspectiva de ascensão social, de viajar, de se mudar ou de mudar de profissão.

Naturalmente, o fato de que o homem moderno não possa admitir tal imobilidade não significa que ele seja mais feliz -no sentido de mais contente- do que o homem pré-moderno. Ao contrário: quando nem a possibilidade de mudança, nem o suicídio são concebíveis, não há alternativa senão contentar-se com o que se é e o que se tem.

Para o homem que nasceu em determinada casta, não existe a possibilidade, nem em pensamento, de mudar para outra. A casta em que nasceu faz parte do seu ser tanto quanto a família à qual pertence ou o seu próprio corpo; e é desse modo também que ele pertence à religião em que nasceu. Sua vida possui, portanto, uma estabilidade social impensável para o homem moderno. Logo, tal homem é contente, no sentido de ser livre da frustração de querer ser, ter ou saber mais do que aquilo que supõe convir a quem nasceu em sua casta.

Já o homem moderno, faustiano, não conhece limites pré-estabelecidos. Em princípio, tudo lhe é possível. E não é apenas de maneira abstrata que ele pressente as infinitas possibilidades de transformação da sua vida, mas elas lhe são mostradas constante e concretamente através do cinema, da televisão, da internet, da cidade, das vitrines, do teatro, dos jornais e revistas, dos livros etc.

Ora, sendo infinitas as suas possibilidades e finita a sua realidade, o homem moderno não pode deixar de conhecer intimamente a frustração, ao passo que mal conhece a segurança da estabilidade social ou a felicidade do contentamento.

Isso não significa necessariamente que ele inveje o homem pré-moderno. O Fernando Pessoa de "Mensagem", por exemplo, afirma a superioridade do seu espírito moderno nas palavras: "Triste de quem é feliz! / Vive porque a vida dura. / Nada na alma lhe diz / Mais que a lição da raiz / Ter por vida a sepultura".

Mas nem todos pensam assim e, para muitos dos nossos contemporâneos, são sobretudo a instabilidade e as múltiplas frustrações que pesam. De qualquer maneira, serão essas, sem dúvida, as razões pelas quais é tão forte, no mundo moderno, a nostalgia pela comunidade tradicional. As religiões prometem não só felicidade e contentamento no outro mundo, mas a estabilidade de uma solidariedade comunitária aos que renegam a sociedade moderna, tida por caótica, atéia, infernal. O fascismo e o nazismo se alimentaram em grande parte do anseio por condições de vida mais estáveis, comunitárias.

Friedrich Engels que, como Karl Marx, aplaudia a destruição pelo capitalismo das comunidades tradicionais, mas sonhava com uma espécie de síntese futura entre a sociedade e a comunidade, queixa-se, em "A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra", de que, em Londres, "a multidão das ruas já tem, por si só, algo de repugnante. [...] Essas pessoas se cruzam correndo, como se nada tivessem em comum, nada a fazer juntas. [...] Essa indiferença brutal, esse isolamento insensível de cada indivíduo no seio dos seus interesses particulares são tanto mais repugnantes e ferinos quanto maior é o número de indivíduos confinados num espaço reduzido."

Mas nem sempre é tão negativamente que o homem contemporâneo se relaciona com a grande cidade. Charles Baudelaire, por exemplo (cuja relação com a grande cidade era bastante ambígua), diz que "estar fora de casa e no entanto se sentir em toda parte em casa: ver o mundo, estar no centro do mundo e continuar escondido do mundo, tais são alguns dos prazeres menores desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem só inadequadamente consegue definir".

Felizmente o homem moderno é também capaz de se dar conta de que, mesmo se a realidade é finita, ela nunca está definida de uma vez por todas e jamais deixa de ser, de algum modo, surpreendente; e ao viajar, através da arte, do pensamento, do conhecimento, da imaginação -e das ruas, dos espaços, dos mares, dos céus- ele é capaz de conhecer incontáveis possibilidades que enriquecem a sua vida finita, tornando-a virtualmente infinita.

Proust, por exemplo, dizia que um belo rosto que passou "é como o encanto de um novo país que se nos foi revelado por um livro. Lemos seu nome, o trem vai partir. Que importa se não partimos, sabemos que existe, temos uma razão a mais para viver".

22.3.08

Jorge de Sena: sobre os "Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena"

O poeta Gastão Cruz, no ensaio “Jorge de Sena na poesia do seu tempo ou ‘a arte de ser moderno em Portugal’”, através do qual tomei conhecimento dos “Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena” que aqui postei ontem, cita as seguintes palavras de Jorge de Sena sobre esses mesmos sonetos:

"Quanto aos Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena, que encerram e coroam este volume, e são decerto uma supra-metamorfose, limitar-me-ei a transcrever o que, de uma carta minha, foi publicado no nº. 2, 2º. trimestre de 1962, de 1NVENÇÃO, revista de vanguarda, de São Paulo, em que esses sonetos foram primeiro publicados pelos meus amigos concretistas:

‘...trata-se de uma experiência [...] para sugerir mais amplamente do que a própria metáfora ambígua, com as suas fixações de sentido poderia fazer. [...]
O que eu pretendo é que as palavras deixem de significar semanticamente, para representarem um complexo de imagens suscitadas à consciência liminar pelas associações sonoras que as compõem. Eu não quero ampliar a linguagem corrente da poesia; quero destruí-la como significação, retirando-lhe o carácter mítico-semântico, que é transferido para a sobreposição de imagens (no sentido psíquico e não estilístico), compondo um sentido global, em que o gesto imaginado valha mais que a sua mesma designação. No último soneto, a maior parte das palavras não é inventada, mas os epítetos gregos de Afrodite. E creio ser curioso como, ligeiramente transformados na acentuação (alguns), igualmente contribuem para a criação de uma atmosfera erótica, concreta, cuja concretização não depende do sentido das palavras, mas da fragmentação delas integrada num sentido mais vasto, evocativo e obsessivo. [...] E é preciso que se liquide de uma vez a ilusão de que a ficção pertence à poesia como tal: só pertence à poesia genericamente considerada como criação e construção de estilo. A poesia como criação de linguagem é supra-real, isto é, engloba a realidade e a sua mesma representação linguística.’”

De: CRUZ, Gastão. “Jorge de Sena na poesia do seu tempo ou ‘a arte de ser moderno em Portugal’”. In: Relâmpago. Revista de poesia. Lisboa, nº 21, outubro de 2007, p.33-54.

21.3.08

Jorge de Sena: Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena

I

PANDEMOS

Dentífona apriuna a veste iguana
de que se escalca auroma e tentavela.
Como superta e buritânea amela
se palquitonará transcêndia inana!

Que vúlcios defuratos, que inumana
sussúrica donstália penicela
às trícotas relesta demiquela,
fissivirão boíneos, ó primana!

Dentívolos palpículos, baissai!
Lingâmicos dolins, refucarai!
Por manivornas contumai a veste!

E, quando prolifarem as sangrárias,
lambidonai tutílicos anárias,
tão placitantos como o pedipeste.


II

ANÓSIA

Que marinais sob tão pora luva
de esbanforida pel retinada
não dão volpúcia de imajar anteada
a que moltínea se adamenta ocuva?

Bocam dedetos calcurando a fuva
que arfala e dúpia de antegor tutada,
e que tessalta de nigrors nevada.
Vitrai, vitrai, que estamineta cuva!

Labiliperta-se infanal a esvebe,
agluta, acedirasma, sucamina,
e maniter suavira o termidodo.

Que marinais dulcífima contebe,
ejacicasto, ejacifasto, arina!...
Que marinais, tão pora luva, todo...


III

URÂNIA

Purília emancivalva emergidanto,
imarculado e róseo, alviridente,
na azúrea juventil conquinomente
transcurva de aste o fido corpo tanto...

Tenras nadáguas que oculvivam quanto
palidiscuro, retradito e olente
é mínimo desfincta, repente,
rasga e sedente ao duro latipranto.

Adónica se esvolve na ambolia
de terso antena avante palpinado.
Fimbril, filível, viridorna, gia

em túlida mancia, vaivinado.
Transcorre uníflo e suspentreme o dia
noturno ao lia e luçardente ao cado.


IV

AMÁTIA

Timbórica, morfia, ó persefessa,
meláina, andrófona, repitimbídia,
ó basilissa, ó scótia, masturlídia,
amata cíprea, calipígea, tressa

de jardinatas nigras, pasifessa,
luni-rosácea lambidando erídia,
erínea, erítia, erótia, erânia, egídia,
eurínoma, ambológera, donlessa.

Áres, Hefáistos, Adonísio, tutos
alipigmaios, atilícios, futos
da lívia damitada, organissanta,

agonimais se esforem morituros,
necrotentavos de escancárias duros,
tantisqua abradimembra a teia canta.

18.3.08

Marcelo Diniz: "eu não sei o que eu faço com um verso"

É uma felicidade postar esse esplêndido soneto de Marcelo Diniz:


eu não sei o que eu faço com um verso
e, tão logo não saiba, de repente,
do nada, este terceiro e o subseqüente
enquadram-se em quarteto tergiverso;

eu não sei se concentro ou se disperso,
se a forma que se fixa é contingente
ou feita, conteúdo e continente,
exatamente enquanto eu desconverso;

só sei que de acidente em acidente
a forma converteu-se em controverso
modo de se dizer o que se sente:

que ecoem estes ecos do universo,
que o façam, verso a verso, reticente,
de etc em etc diverso

16.3.08

A visita a Cabral

Héber Sales pergunta como foi que convencemos João Cabral a participar do encontro do Banco Nacional de Idéias. Não foi tão difícil fazê-lo porque contávamos com dois trunfos. O primeiro era exatamente que seu grande amigo, Joan Brossa, já havia concordado em vir. O segundo era que Waly e eu tínhamos uma amiga em comum com Cabral: a Susana Moraes. Esta marcou uma visita de nós três ao poeta pernambucano, no apartamento dele, no bairro do Flamengo, no Rio. Cabral gostava muito de Susana. Não só ele a conhecia como a filha de seu querido Vinícius, quando ela era ainda uma menina, mas, no final da década de cinquenta, haviam ficado realmente amigos em Marseilles, no sul da França, em cujo consulado brasileiro tanto ele quanto o primeiro marido dela, Rodolfo Souza Dantas, serviam como diplomatas.

A visita foi uma delícia. Cabral estava proibido de beber, mas nos serviu whisky e, de vez em quando, escondido de Marly de Oliveira, sua mulher, dava uma bicada no copo da Susana. Ele estava muito alegre e nos contou várias histórias sobre o jovem Brossa. Narrava-as com muito humor, mas com o rosto sério. Ria por dentro. Uma das histórias ainda me faz pensar. Certa vez, ele e Brossa vinham pela rua, conversando, quando, sem mais nem menos, o poeta catalão começou a falar de modo desarticulado e a fazer gestos amalucados. Cabral só entendeu o que se passava quando percebeu que os avós de Brossa se aproximavam. É que este, embora já não fosse criança, continuava a ser sustentado por eles, que o consideravam deficiente mental: e ele fazia tudo para mantê-los nessa convicção.

Além de agradabilíssima, a visita, felizmente, foi um sucesso, pois Cabral concordou em participar do encontro.

14.3.08

Joan Brossa: trecho de Set d'acció

Para completar esta homenagem a Joan Brossa, as duas primeiras estrofes do poema “Set d’acció”, do livro El pedestal son lês sabates (O pedestal são os sapatos):



SEDE DE AÇÃO

Depois que flamejou o planeta Terra
A vida dormitava num abismo
Meio esboçado em filamentos de plantas
eu já existia

Mais tarde baixo e pequeno já era um homem
Mais tarde grande e povoado sempre ascendia
E não me posso extinguir Agora me passeio
Por Barcelona.


SET D’ACCIÓ

Després que flamejà el planeta Terra
La vida dormitava en un abisme
Mig esbossat en filaments de plantes
jo ja existia

Més tard curt i petit ja era un home
Més tard gran i poblat sempre ascendia
I no em puc extingir Ara em passejo
Per Barcelona





De: BROSSA, Joan. “El pedestal son les sabates”. Poesia rasa. Tría de llibres (1943-1959). Barcelona: Ariel, 1970, p.377.

11.3.08

Ashbery, Cabral e Brossa no MAM do Rio



Na foto de cima, a partir da esquerda, Waly Salomão, John Ashbery, João Cabral, Joan Brossa e eu, no encontro do Banco Nacional de Idéias, no MAM, em 1993. Na de baixo, Brossa saíu para fazer a sua performance.


Meu contato com Joan Brossa

Em 1993, Waly Salomão e eu trouxemos o poeta catalão Joan Brossa ao Brasil, para participar de uma mesa redonda com o poeta norte-americano John Ashbery e o brasileiro João Cabral de Melo Neto. Na semana passada, Victor da Rosa, mestrando em literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina, pediu-me que lhe enviasse, para publicar no suplemento cultural do jornal Diário Catarinense, um breve depoimento pessoal sobre meu contato com Brossa. Enviei-lhe o seguinte texto, publicado em 8 de março:

Em outubro de 1992, participei, com Waly Salomão, Luciano Figueiredo e Júlio Bressane, de uma mesa-redonda em Barcelona, por ocasião da inauguração da exposição da obra de Hélio Oticica na Fundação Antoni Tàpies. Lá mesmo vi, fiquei entusiasmado e comprei o catálogo de uma exposição, que havia tido lugar em Valencia, de poemas visuais de Joan Brossa. O texto de apresentação desse catálogo, de Victoria Combalía, menciona a importância de João Cabral de Melo Neto – que havia sido cônsul em Barcelona no final da década de 40 e no começo da de 50 – para Brossa, assim como para um grupo de jovens artistas e poetas de Barcelona. O próprio Tàpies, que havia sido um desses artistas, contou-nos várias histórias dessa época.

De volta ao Brasil, em dezembro, ao ser apresentado a Helena Severo, que havia sido nomeada secretária de Cultura do recém-eleito prefeito do Rio, Cesar Maia, sugeri que ela organizasse ciclos internacionais de conferências sobre literatura, arte e filosofia, que poderiam se intitular “Enciclopédia da Virada do Século/Milênio”. Para minha surpresa, dois dias depois ela declarava aos jornais que me convidaria para organizar os ciclos que eu lhe havia proposto. Dito e feito. Aceitei o convite e, poucas semanas depois, Ana Lúcia Magalhães Pinto, que dirigia a programação cultural do Banco Nacional, telefonou-me dizendo que havia lido a matéria nos jornais e que o Banco Nacional estava disposto a apoiar essa iniciativa, cujo nome então mudou para “Banco Nacional de Idéias”.

Chamei Waly para trabalhar junto comigo. Na época, João Cabral era sem dúvida o maior poeta brasileiro vivo. Como Waly e eu o admirávamos imensamente, pensamos logo em incluí-lo no primeiro ciclo que organizássemos. O nome de João nos lembrou seu velho amigo, Joan Brossa. Lembrei-me também de outro “João”, o grande poeta americano John Ashbery. Como nos parecia que o mais difícil de tudo seria conseguir a participação do nosso Cabral, que a essa altura andava bastante recluso, começamos pelos outros. Enviamos cartas para Brossa e Ashbery, que concordaram em nos receber, e viajamos para persuadi-los pessoalmente a vir ao Brasil.

Quando chegamos, na hora marcada, ao edifício em que Brossa morava, em Barcelona, tocamos a campainha várias vezes, inutilmente. Ninguém respondeu ao interfone nem veio abrir a porta. Não havia porteiro. Ligamos de um telefone público para o seu apartamento, mas quem atendeu foi uma secretária eletrônica. Dissemos que estávamos ali, à porta, e nada. Desconfiamos que podia haver algum erro no endereço, e indagamos por Brossa aos garçons de um bar, na esquina. Jamais tinham ouvido falar dele. Disseram-nos que por ali havia, de fato, vivido um poeta, alguns anos atrás, mas que já morrera. Sentimos-nos mergulhados em pleno surrealismo catalão. Pela última vez, ligamos para o número de Brossa e falamos com a secretária eletrônica. Usando toda a sua capacidade dramática, Waly apelou para o sentimentalismo: havíamos atravessado o oceano Atlântico, dois pobres poetas, só para encontrar o grande Joan Brossa. Que desolação voltar para casa sem ao menos trocar duas palavras com o nosso ídolo!

Já estávamos realmente a ir embora, quando percebemos, à porta do edifício dele, uma senhora. Sem jamais a ter visto antes, Waly correu a abraçá-la, e ela abriu os braços para acolhê-lo. Lembrei-me de uma cena do filme soviético “Quando voam as cegonhas”. Essa senhora era a esposa de Brossa. Este estava arrependido de ter consentido em nos receber. Ela, porém, não tendo resistido ao rompante sentimental de Waly, decidira que, querendo ou não, ele nos receberia.

Quando lá chegamos, Brossa foi logo cordial, mas firme: não havia questão de vir ao Brasil, pois se sentia descentrado até quando ia de trem a Valencia (a meia hora de Barcelona). De todo modo, continuamos a conversar. Falamos dos poemas visuais dele, falamos de João Cabral, que ele adorava, falamos do mundo em geral. Em duas horas, ficamos amigos, despedimo-nos e fomos embora, conformados. Que fazer? Procurar outro poeta. Mal chegamos ao hotel e tocava o telefone: Brossa já estava de malas prontas para vir ao Brasil conosco. Felicíssimos, explicamos a ele que o encontro não era naquela semana, mas dali a três meses.

Depois de Brossa, foi relativamente fácil conseguir Ashbery e Cabral. A noite dos três poetas no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio foi extraordinária. Todos eles falaram coisas surpreendentes e memoráveis. Mas vou descrever apenas a performance poética feita por Brossa. Ele havia trazido um tinteiro e uma pena de pato. Molhou a pena no tinteiro e saiu do palco, ostensivamente para escrever alguma coisa. Voltou, molhou novamente a pena e saiu. Fez isso mais uma vez, e trouxe dos bastidores um envelope fechado. Escolheu uma moça bonita na platéia – por acaso era a Renata Sorrah – entregou-lhe o envelope e lhe pediu que o abrisse dali a três minutos. Os três minutos pareceram três horas. Ao abrir a carta, estava escrito: FIM.

9.3.08

Comunidade e sociedade

O seguinte texto foi publicado na minha coluna da “Ilustrada”, da Folha de São Paulo, sábado, 8 de fevereiro de 2008:



Comunidade e sociedade

EM ENTREVISTA recente à "Nouvel Observateur", Edgar Morin explica por que, embora já conhecesse a natureza totalitária do regime soviético desde 1948, só saiu do Partido Comunista Francês quando expulso, em 1951: "Eu tinha uma necessidade psicopatológica de amor, de fraternidade, de comunidade e não ousava romper o cordão umbilical".

Amor, fraternidade, comunidade: isso me lembra a definição de "comunidade" do economista alemão Werner Sombart: "União [...] cujo laço é livre de tudo o que é estrangeiro, de toda finalidade prática, de toda negociata, de toda racionalidade, de todo caráter terrestre, para se fundar exclusivamente no amor". Nesse contexto, a palavra fraternidade só não ocorre por acaso, pois estaria em casa. Pois bem, essa definição se encontra no livro "Socialismo Alemão" (1934), em que Sombart flerta com o nacional-socialismo.

Essa definição se baseia, é claro, na famosa oposição, vital para a sociologia clássica alemã desde que Ferdinand Tönnies a estabeleceu, no século XIX, entre "Gemeinschaft" e "Gesellschaft", isto é, entre comunidade e sociedade.

A comunidade supõe encontrar sua origem na grande família, que se estende até a nação ou a "pátria" e tem por horizonte a religião positiva, herdada dos antepassados. Os membros da comunidade, articulados hierarquicamente de modo pretensamente orgânico e natural, crêem cultivar entre si relações pessoais e cooperativas, enraizadas numa cultura particular e tradicional. A própria palavra "cultura", aliás, liga-se etimologicamente ao trabalho com a terra e ao culto religioso.

Já a sociedade tem como protótipo a grande cidade. Nela, os indivíduos se agregam de modo mecânico e arbitrário e tendem a se relacionar de maneira impessoal e contratual. Ela tem como horizonte o princípio racional, formal e negativo segundo o qual a limitação da liberdade de uma pessoa não é lícita senão enquanto necessária para tornar essa liberdade compatível com igual liberdade alheia. Tal é o princípio universal da civilização.

Na sociedade, fora dos círculos familiares restritos, as relações pessoais de caráter comunitário que tendem a prevalecer são aquelas em que cada um ingressa voluntariamente, como as de amizade, e não aquelas de que cada um participa a despeito de sua vontade, como as de parentesco e vizinhança. Hoje, a internet leva mais longe esse progresso das relações societárias. O internauta é capaz de ignorar os seus vizinhos reais para estabelecer, num lugar virtual, relações comunitárias com pessoas que nunca viu diretamente, mas que, do outro lado do mundo, tenham o mesmo interesse pontual que ele.

Evidentemente, o mundo moderno se identifica com a sociedade. A família, a pátria, as tradições, as religiões foram, de fato (como comemoram Marx e Engels no "Manifesto Comunista"), atropeladas pelo capitalismo. Entretanto, essas instituições e/ou mitos do passado não morreram, e permanece entre muitos a nostalgia por uma época em que o mundo, constituído por comunidades mais ou menos fechadas, não tendia à sociedade aberta. Para tais nostálgicos do "ancien régime", a sociedade desenraizada, cada vez mais composta de indivíduos hedonistas, representa o ápice da desagregação, da decadência.

Na Alemanha, o sonho reacionário da comunidade nacional unida por tradição, sangue, terra e língua foi cultivado pelo nazismo, que, paradoxalmente, não hesitou em usar a mais moderna tecnologia para tentar realizá-lo. Não admira que, em oposição ao individualismo "burguês", o nazismo glorificasse a guerra, em que os indivíduos são capazes de morrer pela comunidade, confirmando que esta é a verdadeira substância e aqueles, meros acidentes.

Para Sombart, a era do capitalismo e do socialismo proletário chegara ao fim com a instauração da comunidade nacional-socialista.

Hoje, a mesma glorificação da morte em nome da comunidade -agora mais religiosa do que nacional- na guerra contra o melhor da modernidade, que é a sociedade aberta, vigora entre os defensores da Jihad. Por outro lado, aproveitando o ataque terrorista de fundamentalistas muçulmanos, o governo Bush também promoveu a guerra e, em nome dos valores comunitários do patriotismo e do cristianismo evangélico, fez tudo o que pôde para solapar os fundamentos legais da sociedade aberta e dos direitos individuais nos Estados Unidos.

Hoje, sabendo a que podem levar tais delírios reacionários, não temos desculpa para ignorar a ameaça que ainda representam. Temos a responsabilidade de lutar contra eles onde quer que se manifestem.

Voltarei a Edgar Morin.

7.3.08

Hölderlin: Brevidade

Um dos poemas que mais amo:




A brevidade

“Por que és tão breve? Não amas mais, como [outrora,
“O canto? Quando jovem, não chegavas,
“Nos dias de esperança,
“Nunca ao fim, quando cantavas!”

Tal qual minha sorte é meu canto. – Queres ao [arrebol
Banhar-te alegremente? Foi-se! E a terra está fria
E o pássaro da noite esvoaça
incomodamente aos olhos teus.




Die Kürze

“Warum bist du so kurz? liebst du, wie vormals, denn,
“Nun nicht mehr den Gesang? fandst du, als Jüngling, doch,
“In den Tagen der Hoffnung,
“Wenn du sangest, das Ende nie!”

Wie mein Glück, ist mein Lied. – Willst du im Abendrot
Froh dich baden? hinweg ists! und die Erd’ist kalt,
Und der Vogel der Nacht schwirrt
Unbequem vor das Auge dir.

3.3.08

João Cabral de Melo Neto: Poema

O poema de Sá de Miranda, que começa com “O sol é grande [...]” lembrou-me o Soneto da maioridade, de Vinícius de Moraes, que aqui postei em 01/05/2007, que começa com os magníficos versos “O Sol, que pelas ruas da cidade / Revela as marcas do viver humano”, e me lembrou também o seguinte poema de João Cabral:




POEMA

Trouxe o sol à poesia
mas como trazê-lo ao dia?

No papel mineral
qualquer geometria
fecunda a pura flora
que o pensamento cria.

Mas à floresta de gestos
que nos povoa o dia,
esse sol de palavra
é natureza fria.

Ora, no rosto que, grave,
riso súbito abria,
no andar decidido
que os longes media,

na calma segurança
de quem tudo sabia,
no contato das coisas
que apenas coisas via,

nova espécie de sol
eu, sem contar, descobria:
não a claridade imóvel
da praia ao meio-dia,

de aérea arquitetura
ou de pura poesia:
mas o oculto calor
que as coisas todas cria.



De: CABRAL de MELO NETO, João. “Museu de tudo”. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.414.

1.3.08

Camões: Pensamentos, que agora novamente

Em seu comentário ao soneto de Sá de Miranda, Carlos Eduardo mencinou o seguinte --esplêndido -- soneto de Camões:





Pensamentos, que agora novamente
Cuidados vãos em mim ressuscitais,
Dizei-me: ainda não vos contentais
De terdes quem vos tem tão descontente?

Que fantasia é esta, que presente
Cada hora ante meus olhos me mostrais?
Com sonhos e com sombras atentais
Quem nem por sonhos pode ser contente?

Vejo-vos, pensamentos, alterados;
E não quereis, de esquivos, declarar-me
Que é isto que vos traz tão enleados?

Não me negueis, se andais para negar-me;
Que, se contra mim estais alevantados,
Eu vos ajudarei mesmo a matar-me.



De: CAMÕES, Luís de. "Sonetos". In: SARAIVA, M. de L. _____ Lírica completa. Vol.2. Lisboa: Imprensa Nacional, 198, p.262