30.8.19

André Frenaud: "Parade" / "Parada": trad. de Mário Laranjeira




Parada

Ele achou sua fonte,
Ele pôs pão na sopa,
Ele dormiu à mesa,
Ele saciou-se em sonho,
Ele botou um ovo,
Ele se aviva em cisma,
Ele se ativa em força,
Ele se acopla à lira,
Ele se cumpre em voto
Do sopro do Espírito.

Esse homem é um poeta.





Parade

Il a trouvé sa source,
Il a trempé sa soupe,
Il s’assoupit à table,
Il s’assouvit en rêve,
Il s’accroupit pour pondre,
Il s’avive à songer,
Il s’active à pousser,
Il s’accouple à la lyre,
Il s’accomplit par vœu
Du souffle de l’Esprit.

Cet homme est un poète.




FRÉNAUD, André. “Parade” / “Parada”. In: LARANJEIRA, Mário (org. e trad.). Poetas de França hoje: 1945-1995. Rio de Janeiro: São Paulo: Edusp, 1996. 

26.8.19

Al Berto: "Os amigos"




Os amigos

no regresso encontrei aqueles
que haviam estendido o sedento corpo
sobre infindáveis areias

tinham os gestos lentos das feras amansadas
e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noite

prendiam sóis nos cabelos entrançados
lentamente
moldavam o rosto lívido como um osso
mas estavam vivos quando lhes toquei
depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lume

ofereci-lhes mel e ensinei-os a escutar
a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema
os transmudou em remota e resignada ausência




AL BERTO. "Os amigos". In:REIS-SÁ, Jorge e LAGE, Rui. Antologia da poesia portuguesa do séc. XIII ao séc. XXI. Porto: Porto Editora, 2009.

21.8.19

Waly Salomão: "Cobra-coral"




Cobra-coral

Para de ondular, agora, cobra-coral:
a fim de que eu copie as cores com que te adornas,
a fim de que eu faça um colar para dar à minha amada,
a fim de que tua beleza
                    teu langor
                    tua elegância
                              reinem sobre as cobras não corais





SALOMÃO, Waly. "Cobra-coral". In:_____. "Tarifa de embarque". In:_____. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

18.8.19

Antonio Cicero: Sobre "A poesia e a crítica"

Falo um pouco de poesia e da ABL na seguinte entrevista que dei para o Canal Curta, por ocasião do lançamento do meu livro A poesia e a crítica, em 2017:


15.8.19

Carlos Pena Filho: "Chope"




Chope


Na avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antonio,
tanto se foi transformando
que, agora às cinco da tarde,
mais se assemelha a um festim.
Nas mesas do Bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
São trinta copos de chope,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.
Ah, mas se a gente pudesse
fazer o que tem vontade:
espiar o banho de uma,
a outra, amar pela metade
e daquela que é mais linda
quebrar a rija vaidade.
Mas como a gente não pode
fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida
num diabólico festim.
Por isso no Bar Savoy,
o refrão é sempre assim:
São trinta copos de chope,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.




PENA FILHO,  Carlos. "Chope". In:_____. Livro geral. Olinda: Secretaria de Patrimônio e Cultura da Prefeitura de Olinda, s.d.

12.8.19

Luis Turiba: "Desacontessências"




Desacontessências

desaconteci
(mentavelmente)
tudo acontece para
desacontecer em si

anoitece para amanhecer
nascer viver crescer morrer
tecer escrituras em silêncios
semânticas em pura seda

desconstruir óbvios
reconstruir amálgamas
experimentos ordinários
holografias d’almas




TURIBA, Luis. "Desacontessências". In:_____. Desacontecimentos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2019.

10.8.19

Antonio Cicero: "O fim da vida"



O fim da vida

Conhece da humana lida
a sorte:
o único fim da vida
é a morte
e não há, depois da morte
mais nada.
Eis o que torna esta vida
sagrada:
ela é tudo e o resto, nada.





CICERO, Antonio. "O fim da vida". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.

5.8.19

Mário Faustino: "Ego de mona kateudo"




Ego de mona kateudo

Dor, dor de minha alma, é madrugada
E aportam-me lembranças de quem amo.
E dobram sonhos na mal-estrelada
Memória arfante donde alguém que chamo
Para outros braços cardiais me nega
Restos de rosa entre lençóis de olvido.
Ao longe ladra um coração na cega
Noite ambulante. E escuto-te o mugido,
Oh vento que meu cérebro aleitaste,
Tempo que meu destino ruminaste.
Amor, amor, enquanto luzes, puro,
Dormido e claro, eu velo em vasto escuro,
Ouvindo as asas roucas de outro dia
Cantar sem despertar minha alegria.





FAUSTINO, Mário. "Ego de mona kateudo". In:_____. Poesia de Mário Faustino. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.




Observo que o título desse poema é a transcrição para caracteres latinos do último verso do fragmento 168b de um poema de Safo. "Ego de mona kateudo" significa "E eu durmo sozinha". O poema de Safo e sua tradução podem ser lidos neste blog desde 2008, aqui: http://antoniocicero.blogspot.com/2008/02/safo-fr-168b.html

2.8.19

J.W. Goethe: "An die Günstigen" / "Aos leitores amigos": trad. de Paulo Quintela




Aos leitores amigos

Poetas não podem calar-se,
Querem às turbas mostrar-se.
Há-de haver louvores, censuras!
Quem vai confessar-se em prosa?
Mas abrimo-nos sub rosa
No calmo bosque das Musas.

Quanto errei, quanto vivi,
Quanto aspirei e sofri,
Só flores num ramo – aí estão;
E a velhice e a juventude,
E o erro e a virtude
Ficam bem numa canção.




An die Günstigen

Dichter lieben nicht zu schweigen,
Wollen sich der Menge zeigen.
Lob und Tadel muß ja sein!
Niemand beichtet gern in Prosa;
Doch vertraun wir oft sub rosa
In der Musen stillem Hain.

Was ich irrte, was ich strebte,
Was ich litt und was ich lebte,
Sind hier Blumen nur im Strauß;
Und das Alter wie die Jugend,
Und der Fehler wie die Tugend
Nimmt sich gut in Liedern aus.





GOETHE, Johann Wolfgang von. "An die Günstigen" / "Aos leitores amigos". In: Poemas. Antologia bilingue. Versão portuguesa de Paulo Quintela. Coimbra: Centelha, 1979.