O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada da Folha de São Paulo, sábado, 14 de julho de 2007:
A RELEVÂNCIA DA POLÍTICA
Lembro-me de que quando eu era estudante universitário, no final da década de sessenta, parecia evidente a todo o mundo (ou pelo menos a todo o mundo de esquerda) que nos Estados Unidos não havia nenhuma diferença substancial entre o Partido Democrata e o Partido Republicano. Essa era a tese dos marxistas, mas ela havia encontrado apoio também, desde a década de cinqüenta, em autores independentes, como Wright Mills. E era o que Herbert Marcuse e, de maneira geral, os filósofos e ideólogos da contra-cultura pensavam.
Nessa época, a guerra do Vietnam, que havia tomado corpo com um democrata (Kennedy), engrossado com outro (Johnson), e que continuava sua “escalada” com um republicano (Nixon), parecia confirmar que a cara de um partido era o focinho do outro.
De lá para cá, também entre grande parte dos intelectuais americanos tornou-se senso comum a opinião – expressa, por exemplo, por Chomsky e por vários representantes locais do pós-estruturalismo – de que nos Estados Unidos as eleições não são muito relevantes. As enormes taxas de absenteísmo eleitoral que lá se verificam levam a supor que talvez até uma parte considerável dos eleitores americanos – entre os quais muitos jovens e muitos pretos – também pensem assim.
A verdade, porém, é que ultimamente não tem mais sido possível acreditar nessa tese. Tendo em vista o verdadeiro ataque perpetrado pela administração republicana de George Bush à razão, ao Estado de direito e à democracia nos Estados Unidos, seria inteiramente absurdo pensar que não haja uma diferença extremamente relevante entre ele e, por exemplo, o seu predecessor democrata, Bill Clinton.
Para prová-lo, bastaria citar o fato de que, brandindo o pretexto do terrorismo, Bush conseguiu fazer aprovar pelo Congresso, então majoritariamente republicano, o “Military Commissions Act”, uma lei que, em certas circunstâncias, torna admissível a tortura e põe fora de ação o instituto do habeas corpus: retrocesso jurídico simplesmente inconcebível há poucos anos e que constitui uma afronta inominável aos direitos humanos. Por ocasião da sua aprovação, o jornal “New York Times” (28/9/2006), com toda razão, declarou em editorial que, no futuro, os americanos se lembrarão de que, “em 2006, o Congresso passou uma lei tirânica que será considerada como um dos pontos baixos da democracia americana”. E poderíamos lembrar que, ainda antes da aprovação dessa lei, o governo Bush já se permitira seqüestrar, encarcerar e submeter pessoas que jamais sequer haviam sido formalmente acusadas de qualquer crime específico a torturas e tratamentos indignos.
E que dizer do fato de que ele subverte o princípio de controles e equilíbrios (checks and balances) que garante a independência dos poderes, ao pressionar, ameaçando de demissão, os juízes que não se conformem com os seus desígnios? Ou da sua tentativa de solapar a autonomia da ciência, ao incentivar, contra a teoria científica da evolução, a divulgação e o ensino da teoria pseudo-científica do “intelligent design”? Ou da parcialidade do seu governo às iniciativas religiosas em todos os campos, minando o caráter laico do Estado?
Eu poderia continuar, falando, por exemplo, da sua política econômica, que acaba por redistribuir a renda a favor dos mais ricos; ou da sua destruição sistemática do sistema de saúde pública. O principal, porém, é outra coisa: é que devemos compreender que a tese da irrelevância da política não somente contribuiu para pôr Bush no poder, como é a tese que mais convém a ele e a seus aliados, pois o que eles atacam é precisamente a política; e é a que menos convém àqueles que defendem a liberdade nos Estados Unidos ou em qualquer outro país.
Fala-se às vezes da “democracia direta”, como um antídoto à “irrelevância da política”. Mas os atos citados de Bush seriam condenáveis, ainda que houvessem sido apoiados pelo povo inteiro através de plebiscitos, como certamente teriam sido, logo após o 11 de setembro. A "democracia direta" pode ser uma ditadura plebiscitária, como a de Chávez. Não devemos nos esquecer de que as ditaduras sanguinárias de Hitler, de Stalin, de Mao Tsé-tung e de Pol Pot eram apoiadas pela maioria, logo, nesse sentido, "democráticas". A razão nem sempre está com a maioria: pode estar até com um homem só.
Por isso, mesmo para lutar contra as desigualdades sociais, devemos defender a sociedade aberta e laica, o Estado de direito, a livre expressão, a maximização da liberdade individual, a coexistência de uma multiplicidade de culturas e formas de vida, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc. E defender isso é defender a relevância da política.
Antonio Cicero
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15.7.07
25.3.07
Slavoj Zizek: "O cavaleiro dos mortos vivos"
Traduzi e publico a seguir um importante artigo de Slavoj Zizek, aparecido ontem (24/03) no New York Times:
O cavaleiro do mortos vivos
Desde a divulgação das dramáticas confissões de Khalid Shaikh Mohamed, a indignação moral com a extensão dos seus crimes foi acompanhada por dúvidas. Pode-se acreditar em suas afirmações? E se ele confessou mais do que fez realmente, ou por um vão desejo de ser lembrado como o grande “fera” do terrorismo, ou porque se dispôs a confessar qualquer coisa para interromper o afogamento simulado e outras “técnicas aperfeiçoadas de interrogação”?
Se há um aspecto surpreendente nessa situação, ela tem menos a ver com as próprias confissões do que com o fato de que, pela primeira vez em muitos e muitos anos, a tortura foi normalizada: apresentada como algo aceitável. As conseqüências éticas disso deveriam ser objeto da preocupação de todos nós.
Posto que o alcance dos crimes do Sr. Mohamed é claro e horripilante, vale a pena observar que os Estados Unidos parecem incapazes de tratá-lo como trataria o pior dos criminosos: no mundo ocidental civilizado, até o mais depravado assassino de crianças é julgado e punido. Mas qualquer julgamento e punição legal do Sr. Mohamed é agora impossível: nenhuma corte que opere nos quadros dos sistemas legais ocidentais é capaz de lidar com detenções ilegais, confissões obtidas sob tortura ou coisas semelhantes. (E isso corresponde, perversamente, ao desejo do Sr. Mohamed de ser tratado como inimigo, não como criminoso).
É como se não apenas os terroristas mesmos, mas também a luta contra eles tenha agora que continuar numa zona cinzenta da legalidade. Assim temos criminosos “legais” e “ilegais” de fato: os que devem ser tratados de acordo com procedimentos legais (com advogados etc.) e os que estão fora da legalidade, sujeitos a tribunais militares ou encarceramento aparentemente interminável.
O Sr. Mohamed tornou-se o que o filósofo político Giorgio Agamben chama de “homo sacer”: uma criatura legalmente morta, embora biologicamente ainda viva. E ele não é o único a viver num mundo intermediário. As autoridades americanas que lidam com os detidos tornaram-se uma espécie de contrapartida do homo sacer: ao agir como poder legal, operam num espaço vazio que é sustentado pela lei e, no entanto, não é regulado pelo império da lei.
Há quem não considere isso um problema. O contra-argumento realista diz: A guerra ao terrorismo é suja, encontramo-nos em situações em que as vidas de milhares podem depender da informação que obtemos dos prisioneiros, e precisamos tomar medidas extremas. Como Alan Dershowitz, da Escola de Direito de Harvard o formula: “Não sou a favor da tortura, mas, se ela ocorrer, tem que ter aprovação da corte, sim senhor”. Bem, se isso é a “honestidade”, acho que fico com a hipocrisia.
Sim, a maior parte das pessoas consegue imaginar uma situação singular em que poderia recorrer à tortura: por exemplo, para salvar uma pessoa amada de um mal imediato e impensável. Eu consigo. Em tal caso, porém, é crucial que eu não eleve essa escolha desesperada a um princípio universal. Na urgência inevitável e brutal do momento, eu simplesmente o faria. Mas isso não pode se tornar um padrão aceitável: devo reter o sentido próprio do horror do que fiz. E quando a tortura se torna apenas outra coisa na lista das técnicas do contra-terrorismo, perde-se todo sentido de horror.
Quando, na quinta série do programa de TV “24”, torna-se claro que o gênio que arquitetara o plano terrorista era o próprio presidente, ficamos ansiosos por saber se Jack Bauer aplicará ao “líder do mundo livre” sua técnica padrão, ao lidar com terroristas que se recusam a divulgar segredos que possam salvar milhares de pessoas. Ele torturará ou presidente?
A realidade superou a TV. O que “24” ainda tinha a decência de apresentar como a escolha inquietante e desesperada de Jack Bauer agora se apresenta como um negócio rotineiro – business as usual.
De certo modo, os que se recusam a defender a tortura explicitamente mas a aceitam como um assunto legítimo de debate são mais perigosos do que os que a endossam explicitamente. A moralidade jamais é apenas um assunto da consciência individual. Ela só vige se for sustentada pelo que Hegel chamava de “espírito objetivo”, pelo conjunto de regras ágrafas que formam o contexto da atividade de todo indivíduo, dizendo-nos o que é aceitável e o que é inaceitável.
Por exemplo, um sinal claro de progresso na sociedade ocidental é que não é necessário discutir sobre a violação: é “dogmaticamente” claro a todo o mundo que a violação é errada. Se alguém defendesse a legitimidade da violação, seria considerado tão ridículo que se desqualificaria de qualquer consideração ulterior. E o mesmo deveria valer para a tortura.
Será que temos consciência do que está no fim da estrada aberta pela normalização da tortura? Um detalhe importante da confissão do Sr. Mohamed dá uma pista. Conta-se que os interrogadores se submeteram ao afogamento simulado e só conseguiram suportá-lo em média por menos de 15 segundos, antes de se disporem a confessar seja lá o que for. O Sr. Mohamed, porém, obteve a admiração relutante deles por suportá-la por dois minutos e meio.
Será que temos consciência de que a última vez em que tais coisas fizeram parte do discurso público foi no final da Idade Média, quando a tortura ainda era um espetáculo público, um modo honrável de testar um inimigo capturado que ganharia a admiração do populacho que agüentasse a dor com dignidade? Será que queremos realmente voltar a esse tipo de ética de guerreiro primitivo?
É por isso que, no final, as maiores vítimas da banalização da tortura somos nós, o público informado. Uma parte preciosa da nossa identidade coletiva perdeu-se irrecuperavelmente. Estamos no meio de um processo de corrupção moral: os que estão no poder estão literalmente tentando quebrar uma parte da nossa coluna dorsal ética, amortecer o que talvez seja a maior conquista da nossa civilização, a criação da nossa sensibilidade moral espontânea.
O cavaleiro do mortos vivos
Desde a divulgação das dramáticas confissões de Khalid Shaikh Mohamed, a indignação moral com a extensão dos seus crimes foi acompanhada por dúvidas. Pode-se acreditar em suas afirmações? E se ele confessou mais do que fez realmente, ou por um vão desejo de ser lembrado como o grande “fera” do terrorismo, ou porque se dispôs a confessar qualquer coisa para interromper o afogamento simulado e outras “técnicas aperfeiçoadas de interrogação”?
Se há um aspecto surpreendente nessa situação, ela tem menos a ver com as próprias confissões do que com o fato de que, pela primeira vez em muitos e muitos anos, a tortura foi normalizada: apresentada como algo aceitável. As conseqüências éticas disso deveriam ser objeto da preocupação de todos nós.
Posto que o alcance dos crimes do Sr. Mohamed é claro e horripilante, vale a pena observar que os Estados Unidos parecem incapazes de tratá-lo como trataria o pior dos criminosos: no mundo ocidental civilizado, até o mais depravado assassino de crianças é julgado e punido. Mas qualquer julgamento e punição legal do Sr. Mohamed é agora impossível: nenhuma corte que opere nos quadros dos sistemas legais ocidentais é capaz de lidar com detenções ilegais, confissões obtidas sob tortura ou coisas semelhantes. (E isso corresponde, perversamente, ao desejo do Sr. Mohamed de ser tratado como inimigo, não como criminoso).
É como se não apenas os terroristas mesmos, mas também a luta contra eles tenha agora que continuar numa zona cinzenta da legalidade. Assim temos criminosos “legais” e “ilegais” de fato: os que devem ser tratados de acordo com procedimentos legais (com advogados etc.) e os que estão fora da legalidade, sujeitos a tribunais militares ou encarceramento aparentemente interminável.
O Sr. Mohamed tornou-se o que o filósofo político Giorgio Agamben chama de “homo sacer”: uma criatura legalmente morta, embora biologicamente ainda viva. E ele não é o único a viver num mundo intermediário. As autoridades americanas que lidam com os detidos tornaram-se uma espécie de contrapartida do homo sacer: ao agir como poder legal, operam num espaço vazio que é sustentado pela lei e, no entanto, não é regulado pelo império da lei.
Há quem não considere isso um problema. O contra-argumento realista diz: A guerra ao terrorismo é suja, encontramo-nos em situações em que as vidas de milhares podem depender da informação que obtemos dos prisioneiros, e precisamos tomar medidas extremas. Como Alan Dershowitz, da Escola de Direito de Harvard o formula: “Não sou a favor da tortura, mas, se ela ocorrer, tem que ter aprovação da corte, sim senhor”. Bem, se isso é a “honestidade”, acho que fico com a hipocrisia.
Sim, a maior parte das pessoas consegue imaginar uma situação singular em que poderia recorrer à tortura: por exemplo, para salvar uma pessoa amada de um mal imediato e impensável. Eu consigo. Em tal caso, porém, é crucial que eu não eleve essa escolha desesperada a um princípio universal. Na urgência inevitável e brutal do momento, eu simplesmente o faria. Mas isso não pode se tornar um padrão aceitável: devo reter o sentido próprio do horror do que fiz. E quando a tortura se torna apenas outra coisa na lista das técnicas do contra-terrorismo, perde-se todo sentido de horror.
Quando, na quinta série do programa de TV “24”, torna-se claro que o gênio que arquitetara o plano terrorista era o próprio presidente, ficamos ansiosos por saber se Jack Bauer aplicará ao “líder do mundo livre” sua técnica padrão, ao lidar com terroristas que se recusam a divulgar segredos que possam salvar milhares de pessoas. Ele torturará ou presidente?
A realidade superou a TV. O que “24” ainda tinha a decência de apresentar como a escolha inquietante e desesperada de Jack Bauer agora se apresenta como um negócio rotineiro – business as usual.
De certo modo, os que se recusam a defender a tortura explicitamente mas a aceitam como um assunto legítimo de debate são mais perigosos do que os que a endossam explicitamente. A moralidade jamais é apenas um assunto da consciência individual. Ela só vige se for sustentada pelo que Hegel chamava de “espírito objetivo”, pelo conjunto de regras ágrafas que formam o contexto da atividade de todo indivíduo, dizendo-nos o que é aceitável e o que é inaceitável.
Por exemplo, um sinal claro de progresso na sociedade ocidental é que não é necessário discutir sobre a violação: é “dogmaticamente” claro a todo o mundo que a violação é errada. Se alguém defendesse a legitimidade da violação, seria considerado tão ridículo que se desqualificaria de qualquer consideração ulterior. E o mesmo deveria valer para a tortura.
Será que temos consciência do que está no fim da estrada aberta pela normalização da tortura? Um detalhe importante da confissão do Sr. Mohamed dá uma pista. Conta-se que os interrogadores se submeteram ao afogamento simulado e só conseguiram suportá-lo em média por menos de 15 segundos, antes de se disporem a confessar seja lá o que for. O Sr. Mohamed, porém, obteve a admiração relutante deles por suportá-la por dois minutos e meio.
Será que temos consciência de que a última vez em que tais coisas fizeram parte do discurso público foi no final da Idade Média, quando a tortura ainda era um espetáculo público, um modo honrável de testar um inimigo capturado que ganharia a admiração do populacho que agüentasse a dor com dignidade? Será que queremos realmente voltar a esse tipo de ética de guerreiro primitivo?
É por isso que, no final, as maiores vítimas da banalização da tortura somos nós, o público informado. Uma parte preciosa da nossa identidade coletiva perdeu-se irrecuperavelmente. Estamos no meio de um processo de corrupção moral: os que estão no poder estão literalmente tentando quebrar uma parte da nossa coluna dorsal ética, amortecer o que talvez seja a maior conquista da nossa civilização, a criação da nossa sensibilidade moral espontânea.
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