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2.10.17
Entrevista a Nahima Maciel, do "Correio Brasiliense"
A seguinte entrevista foi dada por mim a Nahima Maciel, do Correio Brasiliense, durante a 33ª Feira do Livro de Brasília, em junho deste ano:
Antonio Cicero afirma que a poesia permite ampliar a experiência do ser
O poeta e filósofo esteve na capital federal para pareticipar da 33ª Feira do Livro de Brasília
24/06/2017
Nahima Maciel
A filosofia é inevitável e, nos dias de hoje, extremamente necessária. É a “metalinguagem terminal”, nas palavras do poeta e filósofo Antonio Cicero. Tem uma certa coerência e alguma utilidade, já que filosofar pode ser um caminho para melhorar o mundo. A poesia é outra coisa. Não tem utilidade prática alguma e permite apreender o mundo em uma outra dimensão que não aquela das coisas funcionais. “A poesia é a língua-objeto terminal”, explica Cicero, que esteve em Brasília para a 33ª Feira do Livro de Brasília para falar do tropicalismo, tema do evento. O filósofo acaba de lançar A poesia e a crítica, coletânea com textos de palestras e ensaios proferidos e escritos nos últimos 11 anos.
Em 2016, Cicero lançou um disco em parceria com Arthur Nogueira. Presente foi uma espécie de celebração dos 70 anos do artista, mas também um aviso de que, a partir de agora, pretende se dedicar apenas à poesia. E essa, no caso do Brasil, está muito ligada à música graças a movimentos como a bossa nova e a tropicália. Na apresentação de A poesia e a crítica, Cicero conta como se encantou com Caetano Veloso no final dos anos 1960, quando foi morar em Londres para estudar e fugir da ditadura. Veloso, na época no exílio e casado com Dedé Gadelha, prima de Cícero, era capaz de colocar abaixo as barreiras entre o erudito e o popular graças a uma grande liberdade de pensamento, a mesma que fez Tom Jobim e Vinicius de Moraes ignorarem essas fronteiras.
Dessa forma, a poesia e a música sempre andaram juntas, mais agarradas uma à outra no Brasil do que em outros países. “Você vê um músico extraordinário como Tom Jobim fazendo música popular, um poeta como Vinicius de Moraes, erudito, de repente fazendo canções com Tom Jobim. Depois, veio uma geração incrível de pessoas influenciadas por eles. O próprio Caetano, um grande poeta. Não tem como negar. O Chico Buarque. São grandes poetas e músicos que estão fazendo coisas novamente consideradas menores, mas que não são menores”, diz Cicero, ao comentar o estardalhaço feito em torno do prêmio Nobel de literatura concedido a Bob Dylan. Abaixo, Cícero fala sobre filosofia, sobre o Brasil e sobre a poesia no mundo contemporâneo.
Ainda é importante falar de filosofia hoje?
Não se pode evitar a filosofia. Chamo a filosofia de metalinguagem das metalinguagens. Metalinguagem é a linguagem que fala de outra linguagem. Se estou falando sobre um livro de poesia ou qualquer outra coisa, minha linguagem é metalinguística em relação a ele. A poesia é a metalinguagem das metalinguagens. A língua sobre a qual se fala é a língua-objeto. Não é possível falar da filosofia sem filosofar porque só a filosofia fala de si própria. A filosofia é a metalinguagem terminal e a poesia é a língua-objeto terminal. Então, você não pode atacar a filosofia sem ser filosófico. E a filosofia, justamente por isso, fala das últimas coisas, ou das primeiras. Ela fala sobre o ser de maneira geral, sobre o sentido da vida. A ética faz parte da filosofia, a estética, também. Não há como evitar. A filosofia puramente quer ser. Tem a ver com a razão e com o intelecto. A religião tem a ver com fé, emoção.
Está difícil falar de ética hoje no Brasil?
Um dos problemas que vejo no Brasil é que todas as ideologias tradicionais funcionam quase como uma religião. Os conjuntos de ideias que as pessoas tinham sobre o Brasil ou o mundo, aparentemente, falharam todos. Depois da queda da cortina de ferro, tudo falhou. Parece que não deu certo. As previsões e as esperanças para a esquerda não deram certo. A URSS não funcionou, a China maoísta, que era contra a URSS porque achava que tinha um marxismo-leninismo mais puro, não deu certo. Isso criou uma situação muito complicada para as pessoas que tinham essa ideologia, o que não quer dizer que as ideologias de direita sejam melhores ou funcionem melhor. Não acredito nisso. Na verdade, nenhuma deu certo. Agora é uma hora de se pensar de novo no que Marx realmente queria.
Como assim?
O materialismo histórico, que pretende ser o marxismo científico, não deu certo. A partir dele previa-se, por exemplo, que a classe operária teria salários cada vez menores; que haveria uma queda da taxa de lucro dos capitalistas; que as tentativas das nações capitalistas de evitar as crises econômicas falhariam; que haveria revoluções socialistas nos países mais avançados, não nos menos avançados. Essas previsões falharam. Karl Popper, um pensador austríaco, dizia que a ciência – e Marx pensava que tinha feito uma filosofia científica – não pode estar sempre procurando provar que está certa, como faz o marxismo. Ao contrário, a verdadeira ciência está sempre procurando coisas que poderiam “desprovar” o que ela afirma. Está sempre se submetendo a testes. E enquanto os testes não destruírem a teoria científica, ela se segura. Mas pode vir alguém no futuro que faça uma experimentação e mostre que tudo está errado. A ciência é isso, está sempre ali sendo testada.
O que faz de um poema, um poema?
Essa coisa é muito difícil de responder. Já tive várias maneiras de falar desse assunto. Não existe uma definição que seja universalmente aceitável do que é poesia. Goethe dizia que a gente fala da poesia como uma das artes, mas isso está errado: a gente devia pensar em cada arte como sendo uma das várias formas de poesia. E poesia como se fosse um nome para as artes em geral. E tem a poesia que produz os poemas. Não só versos, porque há poemas em prosa e poemas visuais. O importante nas diferentes artes é que elas nos oferecem uma maneira de apreender o próprio ser, a vida, o mundo, diferente daquele que temos cotidianamente.
E como é nossa forma de ver o mundo no cotidiano?
É extremamente utilitária. A gente faz as coisas todas tendo em vista determinados propósitos, determinadas finalidades. Tudo é muito calculado. A gente apreende o mundo a partir dessa maneira de ver as coisas, cada coisa tem um sentido, serve para uma coisa. E a gente tende a ver as próprias pessoas assim. A poesia, não.
A poesia possibilita, como você fala em um dos textos do livro, uma nova dimensão do ser. Que dimensão?
A gente passa a apreender o mundo de uma maneira diferente quando entra num poema, numa pintura, numa peça musical. Nosso mundo se amplia porque a gente percebe as coisas de uma maneira que a gente não percebia antes. É como se fosse uma outra dimensão. Existe a dimensão utilitária e existe essa dimensão estética, usando essa palavra com cuidado porque muita gente pode apreender o próprio estético como utilitário, como se fosse o que a gente acha bonito. Não é isso, é uma coisa mais ampla. Vamos dizer, apreender de um modo artístico a linguagem, sentir. Isso enriquece nossa maneira de estar no mundo. Devemos ter essa maneira de estar no mundo mesmo sem estar lendo um poema. É possível curtir as coisas de uma maneira diferente. A poesia nos leva a isso e nos abre muitas perspectivas sobre as diferentes coisas que estão no mundo e na nossa vida. E ela faz isso subvertendo a maneira normal de a gente realmente ver as coisas, captar, apreender.
Se falou muito da ligação entre música e poesia quando Bob Dylan ganhou o Nobel, mas no Brasil essa discussão existe há muito tempo. Falamos mais nisso por termos a música que temos?
Acho que sim. No Brasil aconteceu mais fortemente do que nos outros países essa compreensão de que não é possível separar radicalmente o que é alta cultura, cultura erudita, do que é cultura popular. A ideia, que é uma ideia moderna e necessária, é que não se julgue uma obra a partir do lugar que a ela é convencionalmente designado. Se trata de uma obra erudita ou popular? Não. O que interessa é, primeiro, você olhar a própria coisa e ela ser capaz de ter esse efeito de que falei, estético ou artístico. Pode ser mais forte ou menos forte, mas isso não depende de ela ser erudita ou popular. O Bob Dylan pode, de repente, ter isso tão forte quanto um compositor de música erudita. Não dá mais para julgar com preconceito.
E qual o papel da Bossa Nova e da Tropicália nisso?
A bossa nova foi o movimento que realmente tematizou isso e compreendeu totalmente o que tinha acontecido. E quem fez isso mais claramente ainda foram os tropicalistas. Eles compreenderam totalmente essa situação e fizeram uma revolução nesse sentido. Isso foi muito importante. Foram eles que tornaram possível a gente compreender que aquela hierarquia tinha dançado.
Você vislumbra alguma outra revolução desse tipo possível na cultura brasileira?
Não. Mas acho que não precisa ter. Já foi feita essa revolução, já se sabe disso. O que tem é muita coisa muito ruim e algumas poucas coisas boas. Mas sempre foi assim, em todas as épocas e em todas as áreas. A gente sempre acha que agora é pior. Tenho a impressão de que quem viveu a experiência tropicalista pode ter isso muito forte. Eu vivi, mas tento me conter porque, às vezes, acho que ainda não deu tempo de perceber as coisas boas que estão sendo feitas. Há tanta coisa. A internet multiplicou. Todo mundo escreve poesia hoje. Mesmo quem não gosta. É estranhíssimo. E claro que a maior parte não é boa. Mas alguns poetas são muito bons.
A internet fez mal para a poesia?
Acho que não fez mal, mas permitiu a muita gente escrever. Isso tem um lado bom, talvez pessoas que não apareciam antes apareçam agora. Mas é que é tanta coisa que é muito difícil você filtrar. E demora um tempo. Essas coisas vão sendo filtradas com o tempo.
28.11.10
O construtivismo brasileiro
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 27 de novembro.
O construtivismo brasileiro
HÁ POUCOS dias li, não me lembro mais onde, que na verdade De Gaulle (1890-1970) jamais declarou que o Brasil não era um país sério. Por outro lado, parece confirmado que seu compatriota Lévi-Strauss (1908-2009) chegou mesmo a dizer que "o Brasil é um país surrealista". Frequentemente ouço brasileiros afirmarem o mesmo que o antropólogo francês. Talvez tenham razão; mas quiçá seja exatamente por isso que, em comparação com o que ocorreu em Portugal, na Espanha ou na França, por exemplo, o surrealismo tenha vingado relativamente pouco nas artes brasileiras.
É que, como observa o poeta alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843), nada aprendemos com maior dificuldade do que a usar livremente o que nos é natural. Afinal, não é a arte precisamente o oposto da natureza, como o artificial, do natural?
Tendo isso em mente, lembremo-nos também de que certo clichê bem representado, por exemplo, em filmes de Hollywood de algumas décadas atrás, faz do homem tropical um mero escravo da natureza circundante, dos vícios ou das paixões que ela lhe impõe, reduzindo-o à indolência e à passividade. Se Hölderlin tem razão, não será exatamente por isso – CONTRA tal pretenso destino – que Hélio Oiticica (1937-1980), por exemplo, dizia sentir no âmago da alma brasileira uma "vontade construtiva geral"?
Se eu estiver certo, o sentido mais profundo do uso da palavra "tropicália" feito por Oiticica e, em seguida, pelo movimento musical liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil terá sido o de promover a reversão e/ou ironizar tal concepção estereotipada dos trópicos. De todo modo, é claro que o construtivismo brasileiro não poderia deixar de se opor tanto à submissão à natureza quanto ao surrealismo.
Com efeito, a arte brasileira e moderna canônica, em particular a partir da segunda metade do século 20 – desde a epopeia glauberiana do cinema novo à decantação joão-gilbertiana do samba e da bossa nova; desde o plano piloto dos arquitetos da visão e loucura de Brasília ao plano piloto dos poetas concretistas dos campos e espaços de São Paulo; desde a psicologia da composição de João Cabral aos relevos espaciais de Oiticica; desde os bichos geométricos de Lygia Clark ao filme "O Cinema Falado" (1986), de Caetano Veloso etc. –, tudo parece confirmar a "vontade construtiva geral".
O artista brasileiro moderno tende a desconfiar do dado imediato, isto é, do lugar da natureza, da cultura, da história em que os outros querem situá-lo no mundo. Entende-se: o dado, aquilo que é constituído pelo passado natural e cultural, é no Brasil tomado principalmente como o tempo do subdesenvolvimento, da dependência cultural, política e econômica, e da escravatura. É da reação contra essa situação que surge a tendência construtiva de quase toda a nossa melhor arte. Nesse processo, não é o Brasil do passado que determina o Brasil moderno. Ao contrário: é o Brasil moderno que reinventa o Brasil do passado. Também nesse sentido tinha razão o crítico Mário Pedrosa (1900-1981), ligado a artistas de vanguarda como Ferreira Gullar, Lygia Clark e Hélio Oiticica, quando sentenciou que "o Brasil é um país condenado ao moderno".
Para o artista brasileiro, pensar sobre o Brasil – pensar o Brasil – não pode deixar de ser reinventá-lo. E creio que grande parte dos artistas modernos, os vários modernismos desde 22, o concretismo, o neoconcretismo, a bossa nova, o tropicalismo e os artistas contemporâneos sempre se encontraram nessa mesma situação ante a tarefa da inventio Brasilis: da descoberta-invenção do Brasil.
20.7.09
Salgado Maranhão: Recensão de "Letras e letras da MPB", de Charles Perrone
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Recensão, pelo poeta Salgado Maranhão, da 2ª edição revisada de Letras e letras da MPB, de Charles Perrone (Rio de Janeiro: Booklink, 2008), com apresentação de Augusto de Campos.
Cada um no seu quadrado?
Mais de uma vez já se disse que a letra de música carece de escora melódica para se realizar. Poucas agüentam a solidão da página em branco. Quanto ao poema, trabalha com economia de palavras e nem sempre se ajusta à melodia. Não é qualquer bom poema que se rende à canção. Portanto, cada forma de expressão tem sua autonomia, mas as duas convivem muito bem, cada uma em seu viés.
Claro que isso não diz tudo, principalmente quando se trata da canção popular do Brasil: num país herdeiro de uma remota tradição da palavra cantada – onde até poetas renomados no mundo das letras se misturam aos cantores do povo -- tudo pode acontecer. É o que nos mostra o excelente Letras e Letras da MPB, do professor Charles Perrone, que sai pela editora Booklink, em segunda edição revista, após mais de 20 anos da primeira tiragem.
Não se trata de uma obra de estrangeiro deslumbrado com o exotismo de nossos artistas. Em seu trabalho, o autor demonstra uma enorme intimidade com o melhor da nossa música e das nossas letras. Dele nos diz o poeta Augusto de Campos, que assina a quarta capa do livro: “Mais de 20 anos de contato, pessoal e por correspondência, me fizeram conhecer de perto o prof. Charles A. Perrone, da universidade da florida, e apaixonado da cultura brasileira . Com a vantagem estratégica de uma perspectiva exterior e do conhecimento amplo das nossas duas áreas artísticas, a musical e a poética, ...”
No entanto o tema já é, por si só, um grande vespeiro entre nós – pelas paixões e discussões que suscita. Mas, embora a abordagem correta - sem hierarquizações de gêneros - seja um grande desafio, o prof. Perrone, soube dissecar com maestria suas virtudes específicas: “ Uma letra pode ser um belo poema mesmo tendo sido destinada a ser cantada. Mas é em primeiro lugar, um texto integrado a uma composição musical, e os julgamentos básicos devem ser calcados na audição para incluir a dimensão sonora no âmbito da análise . Contudo, se, independente da música, o texto de uma canção for literariamente rico, não há nenhuma razão para não se considerarem seus méritos literários.”
Não é de hoje que as letras, na musica brasileira, se destacam pela poeticidade . Nas primeiras décadas do século 20, quando a Semana de 22 (com Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira, principalmente, ) ainda tentava nos desatrelar do academicismo da poesia parnasiana, letristas como Noel Rosa, João de Barro e Orestes Barbosa já traziam o coloquialismo da fala das ruas em suas canções .Esses autores e os das décadas seguintes, formaram elos com a bossa nova, e até com o tropicalismo que, turbinados por múltiplas influências, carregavam não apenas a explosão do talento criador, mas, além disso, uma viva consciência critica. As canções desse período são o objeto de estudo do professor Perrone.
Sua análise, como não poderia deixar ser, começa por Vinicius de Morais, que deu maturidade à letra de música, elevando-a a um status que ela jamais teve . A inserção desse poeta no mundo da canção popular estabeleceu um verdadeiro paradigma -- por sua origem de puro sangue da poesia culta . A partir dele, ninguém ousaria discutir critério de qualidade. Porém a maior reflexão do livro se destina aos poetas da Tropicália que, ancorados no legado da Poesia Concreta, imprimiram à palavra cantada um toque de invenção e de manifesto . E é o próprio Caetano Veloso quem fala sobre isso: “Havia um ponto em que concordávamos plenamente : era preciso um aprofundamento em nossos recursos técnicos de modo que nossa comunicação não ficasse prejudicada por deficiências ou ignorâncias “ .
Até a Bossa Nova, a temática das canções era basicamente o amor romântico - salvo um Sérgio Ricardo, e, por vezes, Carlos Lyra ; ou ainda, eventualmente, uma ou outra letra do Vinicius ou dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle. Com os poetas tropicalistas ( Caetano, Torquato, Gil e Capinam ), o mundo salta para dentro das músicas . Os temas amorosos não são rejeitados, mas a eles se incorporam outros vasos comunicantes, como a cultura de massas, a arte pop e a poesia de vanguarda . Isso vai influenciar até mesmo Chico Buarque (vide Construção ) que segue um viés mais apegado à raíz do samba.
Na década de 70, era chique ser letrista. E até já se podia viver disso. Além dos autores já citados, firmou-se uma nova geração do primeiríssimo time, tais como : Paulo César Pinheiro, Aldir Blanc, Ronaldo Bastos, Abel Silva, Fernando Brant, Sergio Natureza, Antonio Cicero, entre tantos outros.
Porém um dos principais méritos de Letras e Letras da MPB é, sem dúvida, nos apresentar as trocas e interconecções dos letristas com a chamada “poesia séria”. E o movimento da Poesia Marginal nasceu, justamente, dessa simbiose .O certo é que, independente de preconceitos e preferências, fica valendo a máxima de Murilo Mendes : “A poesia sopra onde quer”...
Texto publicado no caderno "Ideias", do Jornal do Brasil, sábado, 9 de maio de 2009.
Recensão, pelo poeta Salgado Maranhão, da 2ª edição revisada de Letras e letras da MPB, de Charles Perrone (Rio de Janeiro: Booklink, 2008), com apresentação de Augusto de Campos.
Cada um no seu quadrado?
Mais de uma vez já se disse que a letra de música carece de escora melódica para se realizar. Poucas agüentam a solidão da página em branco. Quanto ao poema, trabalha com economia de palavras e nem sempre se ajusta à melodia. Não é qualquer bom poema que se rende à canção. Portanto, cada forma de expressão tem sua autonomia, mas as duas convivem muito bem, cada uma em seu viés.
Claro que isso não diz tudo, principalmente quando se trata da canção popular do Brasil: num país herdeiro de uma remota tradição da palavra cantada – onde até poetas renomados no mundo das letras se misturam aos cantores do povo -- tudo pode acontecer. É o que nos mostra o excelente Letras e Letras da MPB, do professor Charles Perrone, que sai pela editora Booklink, em segunda edição revista, após mais de 20 anos da primeira tiragem.
Não se trata de uma obra de estrangeiro deslumbrado com o exotismo de nossos artistas. Em seu trabalho, o autor demonstra uma enorme intimidade com o melhor da nossa música e das nossas letras. Dele nos diz o poeta Augusto de Campos, que assina a quarta capa do livro: “Mais de 20 anos de contato, pessoal e por correspondência, me fizeram conhecer de perto o prof. Charles A. Perrone, da universidade da florida, e apaixonado da cultura brasileira . Com a vantagem estratégica de uma perspectiva exterior e do conhecimento amplo das nossas duas áreas artísticas, a musical e a poética, ...”
No entanto o tema já é, por si só, um grande vespeiro entre nós – pelas paixões e discussões que suscita. Mas, embora a abordagem correta - sem hierarquizações de gêneros - seja um grande desafio, o prof. Perrone, soube dissecar com maestria suas virtudes específicas: “ Uma letra pode ser um belo poema mesmo tendo sido destinada a ser cantada. Mas é em primeiro lugar, um texto integrado a uma composição musical, e os julgamentos básicos devem ser calcados na audição para incluir a dimensão sonora no âmbito da análise . Contudo, se, independente da música, o texto de uma canção for literariamente rico, não há nenhuma razão para não se considerarem seus méritos literários.”
Não é de hoje que as letras, na musica brasileira, se destacam pela poeticidade . Nas primeiras décadas do século 20, quando a Semana de 22 (com Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira, principalmente, ) ainda tentava nos desatrelar do academicismo da poesia parnasiana, letristas como Noel Rosa, João de Barro e Orestes Barbosa já traziam o coloquialismo da fala das ruas em suas canções .Esses autores e os das décadas seguintes, formaram elos com a bossa nova, e até com o tropicalismo que, turbinados por múltiplas influências, carregavam não apenas a explosão do talento criador, mas, além disso, uma viva consciência critica. As canções desse período são o objeto de estudo do professor Perrone.
Sua análise, como não poderia deixar ser, começa por Vinicius de Morais, que deu maturidade à letra de música, elevando-a a um status que ela jamais teve . A inserção desse poeta no mundo da canção popular estabeleceu um verdadeiro paradigma -- por sua origem de puro sangue da poesia culta . A partir dele, ninguém ousaria discutir critério de qualidade. Porém a maior reflexão do livro se destina aos poetas da Tropicália que, ancorados no legado da Poesia Concreta, imprimiram à palavra cantada um toque de invenção e de manifesto . E é o próprio Caetano Veloso quem fala sobre isso: “Havia um ponto em que concordávamos plenamente : era preciso um aprofundamento em nossos recursos técnicos de modo que nossa comunicação não ficasse prejudicada por deficiências ou ignorâncias “ .
Até a Bossa Nova, a temática das canções era basicamente o amor romântico - salvo um Sérgio Ricardo, e, por vezes, Carlos Lyra ; ou ainda, eventualmente, uma ou outra letra do Vinicius ou dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle. Com os poetas tropicalistas ( Caetano, Torquato, Gil e Capinam ), o mundo salta para dentro das músicas . Os temas amorosos não são rejeitados, mas a eles se incorporam outros vasos comunicantes, como a cultura de massas, a arte pop e a poesia de vanguarda . Isso vai influenciar até mesmo Chico Buarque (vide Construção ) que segue um viés mais apegado à raíz do samba.
Na década de 70, era chique ser letrista. E até já se podia viver disso. Além dos autores já citados, firmou-se uma nova geração do primeiríssimo time, tais como : Paulo César Pinheiro, Aldir Blanc, Ronaldo Bastos, Abel Silva, Fernando Brant, Sergio Natureza, Antonio Cicero, entre tantos outros.
Porém um dos principais méritos de Letras e Letras da MPB é, sem dúvida, nos apresentar as trocas e interconecções dos letristas com a chamada “poesia séria”. E o movimento da Poesia Marginal nasceu, justamente, dessa simbiose .O certo é que, independente de preconceitos e preferências, fica valendo a máxima de Murilo Mendes : “A poesia sopra onde quer”...
Texto publicado no caderno "Ideias", do Jornal do Brasil, sábado, 9 de maio de 2009.
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