Mostrando postagens com marcador Plebiscito. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Plebiscito. Mostrar todas as postagens

18.11.07

Democracia: formal ou profunda?

O Seguinte artigo foi publicado sábado, 17 de novembro, na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo:

Democracia: formal ou profunda?

No dia 7 do corrente, em Caracas, no campus da Universidade Central da Venezuela, um grupo armado abriu fogo contra estudantes que regressavam de uma manifestação pelo adiamento do referendo sobre a reforma constitucional que, entre outras coisas, institucionalizaria a reeleição ilimitada do presidente Chávez, além de lhe ampliar os poderes. No dia 9, esses mesmos estudantes foram chamados por Chávez de fascistas.

No dia seguinte, em reunião da Cúpula Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo, em Santiago, Chávez acusou de fascista o ex-premier espanhol Aznar, obrigando o atual premier, o socialista Zapatero, a lhe pedir que respeitasse outros chefes de Estado, apesar de suas diferenças políticas. Atropelando grosseiramente a fala de Zapatero, Chávez, como se sabe, acabou por provocar o rei Juan Carlos, da Espanha, a lhe sugerir que se calasse.

Não pode ter escapado a ninguém que a acusação de Chávez saíu pela culatra. O que realmente evoca o fascismo são, em primeiro lugar, o conteúdo da reforma constitucional por ele proposta; em segundo, o método plebiscitário com que pretende legitimá-la (lembremo-nos de que referendos e plebiscitos eram o método favorito de Hitler para “legitimar” os seus atos ilegais); em terceiro, o fato de que não somente o seu governo já cassou a concessão para transmissão em sinal aberto de uma emissora de televisão da oposição (a RCTV), mas pretende cassar a concessão de outra (a Globovisión); em quarto, a violência dos grupos armados dos partidários do líder bolivarianista ao atacar os estudantes; em quinto, o cinismo com que ele acusou de fascistas justamente as vítimas dessa violência; e, em sexto, a histrionice e a truculência verbal com que viola as regras da discussão racional.

Para mim, porém, o que mais causa preocupação é que, depois disso tudo, o presidente Lula tenha declarado que não falta democracia na Venezuela, pois ela já passou por “três referendos, três eleições não sei para quê, quatro plebiscitos”. Essa é a “democracia direta” (leia-se a “ditadura plebiscitária”) de Chávez: o povo aprova o que o governo propõe. E é essa a “democracia direta” que pretendem os petistas que defendem a modificação da Constituição para permitir a terceira reeleição do Presidente, a ampliação dos seus poderes, a diminuição dos poderes do Congresso etc.

A verdade é que as únicas democracias que se conhecem são as que se baseiam no equilíbrio dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. O fortalecimento de qualquer um desses poderes em detrimento dos outros (ou o enfraquecimento de qualquer um deles em proveito dos outros) é extremamente perigoso. A experiência latino-americana tem sido a da hipertrofia do executivo. O resultado é, inevitavelmente, a ditadura. Exatamente isso é o que está a ocorrer na Venezuela e ocorrerá também no Brasil, caso se enfraqueça o legislativo, usando o artifício, caro aos regimes populistas e totalitários, de transferir suas atribuições a referendos e plebiscitos.

Grande parte da esquerda, nada tendo aprendido com as terríveis experiências das ditaduras de Stalin, Mao ou Pol-Pot, continua a desvalorizar o que qualifica de “democracia formal” em nome de – como se dizia, semana passada, no seminário da Academia da Latinidade, que teve lugar em Lima – uma “democracia profunda”.

A verdadeira democracia não pode deixar de ser formal porque não se pode prender a nenhum objetivo, programa, partido político ou líder particular, uma vez que, não podendo pressupor que este ou aquele seja dono da verdade absoluta, deve estar aberta a todos, exceto aos que atentem contra ela. Que seja eleito este ou aquele candidato ou partido é inteiramente contingente à verdadeira democracia. Necessária é a garantia de que candidatos ou partidos diferentes tenham a possibilidade real de alcançar o poder.

Nunca é demais repetir que absolutamente nada pode justificar qualquer atentado contra o Estado de direito, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual, a coexistência de uma multiplicidade de culturas e formas de vida, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc.: em suma, nada pode justificar qualquer atentado contra a preservação dos direitos humanos e da sociedade aberta.

O regime político que ameace a verdadeira democracia, que é a democracia formal, deve ser chamado, não de democracia – profunda ou rasa –, mas de ditadura.

14.11.07

Paulo Guedes: A estética fascista

O seguinte artigo de Paulo Guedes foi publicado em O Globo, segunda-feira, 12 de novembro de 2007:

A estética fascista

O rei Juan Carlos, da Espanha, mandou o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, calar a boca durante a Cúpula Ibero-Americana, em Santiago do Chile. Chávez acusara de fascista o ex-presidente do governo espanhol José María Aznar. Por mais simpatia que se tenha pelas intenções da "revolução bolivariana", os sintomas desta terrível doença política, o fascismo, estão mais próximos de Chávez do que ele pensa. Segundo Luis Dupeux, em "História cultural da Alemanha: 1919-1960" (1989), "a utilização de palavras de ordem e das manifestações de massa foram comuns aos nazistas e fascistas. Bem como a gradual interdição da imprensa por um conjunto de leis e decretos sempre assegurando a legalidade do sistema". Fechamento da RCTV?
"Na mais visual de todas as formas, o fascismo se apresenta por vívidas imagens: um demagogo discursando bombasticamente para uma multidão em êxtase; jovens desfilando em paradas; militantes espancando membros de alguma demonizada minoria. Nacionalismo, ataques a propriedades, recurso à violência, voluntarismo, antiintelectualismo, rejeição a soluções de compromisso, desprezo pela sociedade estabelecida foram características do fascismo", registra Robert Paxton, em "A anatomia do fascismo" (2005).
Prossegue o autor: "Os primeiros movimentos fascistas ostentavam também seu desprezo pelos valores burgueses, pelo "dinheiro, imundo dinheiro", atacando o capitalismo financeiro internacional com veemência. Prometeram expropriar os donos de loja em favor de artesãos, e os proprietários de terra em favor de camponeses. Exploraram as vítimas da industrialização rápida e da globalização, os perdedores da modernização, usando as técnicas de propaganda mais modernas. Política de massas, tentava apelar sobretudo às emoções, pelo uso de retórica intensamente carregada. O fascismo ajuda um povo a realizar seu destino. Repousa na união mística do líder com o destino histórico de seu povo, agora plenamente consciente de sua identidade e seu poder." Líder, povo, identidade e poder "bolivarianos"?
"Um artifício usado pelos fascistas eram as estruturas paralelas, tanto na ascensão quanto no exercício do poder. O Estado oficial e essas estruturas conferiam ao regime sua bizarra mistura de legalismo e de violência arbitrária." Chavistas atacando universitários?
"Tendo chegado ao poder na legalidade, líderes fascistas podiam exercê-lo apenas nos termos da Constituição. Seu poder era limitado. O golpe dos fascistas foi transformar um cargo constitucional em autoridade pessoal ilimitada, controlando por completo o Estado. Os Parlamentos perderam o poder, e as eleições foram substituídas por plebiscitos do tipo "sim ou não"."
E, a propósito do alerta do senador José Sarney para a possibilidade de um futuro confronto, e também da manchete segundo a qual os comandantes militares pressionam o Congresso por mais verbas para o reaparelhamento das Forças Armadas, adverte Paxton: "Parece ser regra geral que a guerra seja indispensável à manutenção do tônus muscular do fascismo. Pois o ápice da experiência estética fascista seria a guerra."

23.9.07

O Senado e a democracia

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada da Folha de São Paulo sábado, 22 de setembro de 2007:


O Senado e a democracia


EMBORA tenha sido deplorável a absolvição do senador Renan Calheiros, também são lastimáveis algumas das reações a esse episódio.
Readquiriu força, por exemplo, a idéia, que havia sido proposta no começo do mês pelo presidente do PT, de extinguir o Senado.
Como não pensar em maquiavelismo, à simples descrição do ocorrido? A opinião pública informada pressionava pela condenação de Renan; este não teria sido absolvido sem o beneplácito do presidente Lula; ora, sua absolvição desmoralizou grande parte dos senadores e revigorou, justamente junto à opinião pública informada, a idéia da extinção do Senado; com isso, o Poder Executivo -o presidente Lula- ficou ainda mais forte em relação ao Poder Legislativo.
Nessas circunstâncias, é imperativo que os brasileiros que defendam uma sociedade aberta e democrática conservem o sangue-frio. Devemos resistir à tentativa açodada de convocar uma assembléia constituinte que tenha o objetivo precípuo de dar fim ao sistema bicameral.
Lembremo-nos, por exemplo, que, num país de imensas desigualdades regionais, como o Brasil, um fator importante da unidade nacional é que haja uma Câmara -o Senado- em que todos os Estados da federação tenham o mesmo peso.
Assim como a desmoralização do presidente Collor não significou a desmoralização da instituição da Presidência da República, a desmoralização de vários senadores, no episódio Renan, não pode significar a desmoralização da instituição do Senado.
De todo modo, nada seria pior, neste momento, do que contribuir para desestabilizar o Congresso, de modo a perpetuar ou acentuar o presente desequilíbrio entre os poderes da República.
E, por falar em desestabilizar o Congresso, não será surpreendente se a atual desilusão generalizada, lançando suspeição contra a própria noção de representação política, traga novamente à baila a idéia de "democracia direta".
Esta se manifestaria pelo plebiscito, pelo referendo e pela iniciativa popular. Entretanto, o próprio Fábio Konder Comparato, que é, no Brasil, o grande defensor da "democracia direta", reconhece, por exemplo, que as leis raciais de Hitler foram aprovadas por mais de 90% do povo. Alguém duvida que as ditaduras sanguinárias de Hitler, Stálin, Mao Tse-tung e Pol Pot tenham tido o apoio da maioria da população dos respectivos países?
Sugiro, em relação a essa questão da "democracia direta", a leitura do livro recém-lançado do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, "O Paradoxo de Rousseau" (ed. Rocco, 2007, 166 pág., R$ 25).
Ele lembra, por exemplo, que, ao contrário do que ocorre nos Parlamentos, cujas decisões estão sujeitas a serem reconsideradas -pelo próprio Parlamento ou por outras instâncias- "não há como recorrer de decisões plebiscitárias. Os perdedores em tais decisões são perdedores absolutos".
Tudo se passa como se os plebiscitos "fossem a expressão da vontade geral unânime, quando pode ocorrer, inclusive, que não correspondam senão a maiorias obtidas por mínima margem de diferença".
O resultado, segundo o mesmo cientista político, é que "uma sucessão de escolhas plebiscitárias daria lugar à constituição de um contingente de cidadãos condenados ao silêncio por tempo indeterminado. Na verdade, o mecanismo se converteria em uma fábrica de ostracismo ideológico". E assim -agora sou eu que o digo- revela-se a verdade da "democracia direta" como a ditadura plebiscitária.
É para evitar semelhantes desastres que devemos fazer o máximo para preservar as instituições da República. Não nos enganemos: a existência delas ainda é precária.
Enquanto, por um lado, grande parte da direita odeia a sociedade aberta, por outro lado, grande parte da esquerda -principalmente da marxista- a despreza. Seria de esperar que, após a revelação dos massacres, das atrocidades e da repressão ocorridos na União Soviética, na China, no Camboja, em Cuba etc., os marxistas, antes de fazer qualquer outra proposta política, se propusessem a preservar e defender, de modo incondicional, a sociedade aberta, o Estado de Direito, os direitos humanos, a liberdade de expressão, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc. É lamentável que não seja assim.


Antonio Cicero