18.12.09

Ainda sobre as odes de Horácio




Na Ode III.XXX de Horácio, postada na segunda-feira, dia 15, o poeta diz que seus poemas, inclusive, é claro, essa ode mesma, não serão destruídos pela fuga dos tempos.

Já na Ode I.XI, que postei em 18/05/2009, e que é a origem do conceito de “carpe diem” (“colhe o dia”), o eu lírico recomenda à sua amante, Leucônoe: “Colhe o dia, minimamente crédula no porvir”.

Ou seja, enquanto em III.XXX ele fala do futuro dos seus poemas, em I.XI ele recomenda ignorar o futuro. Que houvesse uma contradição aqui não seria nenhum problema: um poema pode contradizer o outro, sem que nenhum dos dois sofra o menor arranhão. Se ambos forem bons, então, ao ler o primeiro, concordamos inteiramente com ele; ao ler o segundo, é com este que concordamos inteiramente, sem deixar de continuar a concordar com o primeiro. Ambos podem ser profundamente verdadeiros ou reveladores. Um poema é capaz se contradizer a si próprio e ser uma obra prima: ele pode até ter que se contradizer para vir a ser uma obra prima.

De todo modo, não sei sequer se essas duas odes de Horácio realmente se contradizem. Penso que a concepção da poesia que preside a Ode III.XXX é que, dado que os grandes poemas valem por si, eles são inteiramente indiferentes às contingências do tempo. Em princípio, portanto, não haverá tempo em que já não valham. O que interessa é que eles sempre merecem existir agora: seja quando for agora. Apreciá-los é sempre colher o dia: carpere diem. No fundo, portanto, parece-me não haver contradição entre essas duas odes. Algo nesse sentido manifesta-se no meu poema “História”, do livro “A cidade e os livros”, que se refere diretamente à ode XXX.:

[...]
Tudo que há no mundo some:
Babilônia, Tebas, Acra.
Que o mais impecável verso
breve afunda feito o resto
(embora mais lentamente
que o bronze, porque mais leve)
sabe o poeta, e não o ignora
ao querê-lo eterno agora.

11 comentários:

Anônimo disse...

Querido Cicero,

ousando umas palavras saídas de uma leitura rápida, não acredito que haja contradição de fato entre as duas odes. A I.XI recomenda não desconsideração absoluta do futuro, afinal o apelo do último verso considera "minimamente o porvir". Estaria enganado? Não seria esse mínimo a via de que a poesia significa que "nem tudo em mim morrerá" como se afirma na III.XXX?

Forte abraço,
Marcelo Diniz

Climacus disse...

"Em dez mil dez mil esperanças/
ainda há: umas findam/
infaustas para os mortais
outras se cumprem./
Quem vive a cada dia (Bíotos)/
com bom Nume, felicito."
(Eurípides, Bacãs, vv. 907-12, trad. Jaa Torrano).

Angela disse...

Que bela postagem!De fato, os poemas não são detidos pela pesada mecânica da coerência...

Antonio Cicero disse...

Marcelo,

essa leitura também é possível e engenhosa. De todo modo, pelas razões que expus, tampouco creio que haja contradição real; e não me importaria, se houvesse.

Abraço,
ACicero

ADRIANO NUNES disse...

Grande Cicero,

Muito esclarecedor! Tenho muito orgulho de ser seu amigo! Aprendo demais contigo e não há nada no mundo melhor que isso! Valeu!

Grande abraço,
Adriano Nunes.

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,

Meu soneto mais recente:


"Do amor para assim entender"


Do amor, que se pode dizer
Se dito fora quase tudo,
Se quem ama fica até mudo
Ao ter tanta dor e prazer?

Do amor, que se pode querer
Se querendo nada se tem,
Se tendo não há mesmo bem
De fato? É somente morrer

De amor para assim entender
A falha de qualquer remédio:
Não calha a melhora do objeto,

Tempo, sequer o faz temer,
Ausência, nunca o torna ausente,
Ingratidão, é que não sente!


Grande abraço,
Adriano Nunes.

João Renato disse...

Caro Cícero,
Ainda bem que a poesia não é um capítulo do Direito das Obrigações e dos Contratos, por que nós, humanos, também não somos.
Lembrei-me de Whitman:
"Eu me contradigo ?
Pois muito bem, eu me contradigo,
Sou amplo, contenho multidões".
Abraço,
JR.

Devir disse...

Exclamações, Exclamações!!!
Tão altas, mesmo belas, abafam
desde passados remotos
ou instantâneos
o próprio coração
impedido
de voar
o tempo e o vento afora.

ADRIANO NUNES disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marília Souza disse...

Postagem inspiradora :)

A poesia parece ser uma forma mais intensa de conhecimento da realidade, porque não anula suas contradições.

Carpe diem quam minimum credula postero!

ADRIANO NUNES disse...
Este comentário foi removido pelo autor.