18.9.13

Chega de fetiche





O seguinte artigo meu foi publicado na segunda-feira, 16 de setembro, em O Globo, na coluna de colunistas convidados intitulada "O Estado da Arte" (http://oglobo.globo.com/cultura/chega-de-fetiche-9969532#ixzz2fGcou558): 


Chega de fetiche

RIO - Salta aos olhos a pluralidade formal da poesia contemporânea. Poemas concretos, sextinas, poemas em versos livres, sonetos, poemas em prosa, haikus... Para os poetas contemporâneos, não há nem tabus nem fetiches. Em princípio, nada é a priori exigido ou proibido.

Não me surpreende, porém, que haja versejadores e críticos que, rejeitando tal abertura, sejam nostálgicos do mundo fechado e tradicionalista, e condenem tudo o que não se conforme a padrões estabelecidos. Sempre haverá reacionários

O que acho estranho é o modo, digamos, pseudoprogressista de pensar daqueles que, no polo oposto, acreditam que a pluralidade formal seja efeito de uma espécie de pós-modernismo retrógrado ou de má-fé daqueles que valorizam a tradição acima da invenção.
A meu ver, como já observei em diferentes artigos, a pluralidade formal não é efeito de nenhum movimento “pós-modernista”. Trata-se, ao contrário, da plena realização da modernidade, no campo da poesia.

Pode-se dizer que tanto as culturas pré-modernas quanto o mundo incipientemente moderno haviam fetichizado (isto é, imaginariamente atribuído poderes mágicos a) determinadas formas poéticas, tais como a métrica, a rima e o verso, convencidos de que, fora delas, não era possível produzirem-se poemas de verdade.

De maneira geral, as vanguardas modernas, ao realizarem obras que ao longo do tempo foram reconhecidas como efetivamente poéticas, apesar de não se conformarem às formas fetichizadas, provaram o caráter meramente convencional de tais formas.

Por outro lado, se, tradicionalmente, as formas convencionais haviam sido tomadas como as únicas admissíveis na poesia, os poetas vanguardistas passaram a tomá-las como as únicas formas inadmissíveis — verdadeiros tabus — na poesia. Sendo assim, pode-se dizer que, ao fazê-lo, esses poetas mantiveram tais formas fetichizadas, tendo apenas invertido o valor desse fetiche.

Com o tempo, porém, tendo aparecido poemas modernos e de grande qualidade que empregavam formas tabuizadas como sonetos — lembro, por exemplo, os de Carlos Drummond de Andrade (que, aliás, havia sido um poeta vanguardista) no livro “Claro enigma” — desmoralizou-se também esse fetiche negativo.

Pois bem, tanto, por um lado, o questionamento e a rejeição vanguardista do fetichismo das formas tradicionais quanto, por outro, o questionamento e a rejeição pós-vanguardista dos tabus vanguardistas fazem, evidentemente, parte do ceticismo moderno em relação a toda tese que não passa de preconceito, isto é, que não é capaz de se sustentar racionalmente. Por isso, afirmo que resulta da plena realização da modernidade no campo da poesia a consciência de que não há formas — experimentais ou tradicionais — que sejam, em princípio, incompatíveis com a produção de um poema.

Voltando aos “pseudoprogressistas”, inimigos da pluralidade formal contemporânea, lembro de ter lido textos que lamentam que as formas poéticas tenham deixado de ser valores que cobrem “adesão” à experiência histórica de sua época. Tais textos incorrem exatamente no fetichismo formal de que já se livraram quase todos os poetas contemporâneos. O fato é que as formas poéticas jamais cobram adesão nenhuma. Um soneto tinha um sentido para Petrarca, outro, completamente diferente, para Ronsard, e um terceiro, também completamente diferente, para Góngora; e o mesmo pode ser dito, em relação a seus predecessores, de um soneto de Baudelaire ou de Mário de Andrade ou de Drummond, ou de Paulo Henrique Britto. Ademais, o soneto de cada um deles tem a ver com a respectiva época, e não com as dos seus antecessores.

A verdade é que, em cada poema, tudo é conteúdo: e tudo é forma. É entre formas que se repetem e formas que não se repetem que se criam todos os poemas. A sintaxe do poema, seu ritmo, sua melodia, as relações paronomásticas das palavras que o compõem e as próprias palavras são formas/conteúdos. Em relação a tais formas, as formas fixas não possuem nenhum privilégio. Trata-se apenas de formas que foram catalogadas porque se repetiram com frequência. Nesse sentido, elas se assemelham às próprias palavras da língua. No final, o que conta é a totalidade das formas/conteúdos que, interagindo entre si, produzem os objetos absolutamente singulares que são os poemas. Dado que não há fórmulas nem receitas para criar tais objetos, todos os poemas bons podem ser considerados experimentais.

Além disso, muitos poetas são capazes de usar as formas fixas simplesmente na qualidade de autoimposições formais arbitrárias que, contrapondo-se à espontaneidade criativa, imponham tensões estimulantes ao processo da produção do poema. Tal é o sentido, por exemplo, da afirmação de João Cabral de que a rima é necessária, pois, “para se criar algo, é necessário um esforço. Um obstáculo diante do ser o obriga a muito mais esforço e faz com que ele atinja o seu extremo”. É muitas vezes com tal propósito que os poetas contemporâneos usam as formas fixas.

Sugiro, portanto, não apenas aos reacionários, mas sobretudo aos pseudoprogressistas, que abandonem seus preconceitos e observem melhor como trabalham e o que produzem os poetas contemporâneos.



Veja também, sobre poesia, a entrevista que concedi ao jornalista Arnaldo Bloch, em http://oglobo.globo.com/videos/t/todos-os-videos/v/antonio-cicero-fala-sobre-o-que-e-a-poesia-hoje/2822935/.


10 comentários:

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,

sempre lúcido e esclarecedor! Bravo!

Um poema que fiz hoje, para o Eucanaã. Gostaria que voc~e enviasse para ele. Abração!


"Ita speratur" - Para Eucanaã Ferraz


Haverá para sempre um outro dia.
Não é isso que nos alerta o verso
Quando nele todo o infinito imerso
Atira-nos à ululante alegria?

Não é correto que em nós irradia
A vida com o seu matiz diverso,
Quando mais nos entrega a um universo
De senha e signo e sonho e alegoria?

Por que as vastas vontades olvidar,
De amarras impregnar o entendimento,
Se haverá para sempre um magno dia?

Por que à quimera mágica não dar
Aquela grã chance, o consentimento
Para haver para sempre um novo dia?

Anônimo disse...

Cicero, ótimo resumo da questão. Engraçado o título... é claro que fetiche é feitiço, e foi nesse sentido que você usou. No entanto, não pude deixar de lembrar do latim, facticius, que seria exatamente o oposto da ideia defendida! Uma coincidência, no mínimo, curiosa!

O Neto do Herculano disse...

Absolutamente.

José María Souza Costa disse...

CONVITE
Passei por aqui lendo, e, em visita ao seu blog.
Eu também tenho um, só que muito simples.
Estou lhe convidando a visitar-me, e, se possível seguirmos juntos por eles, e, com eles. Sempre gostei de escrever, expor as minhas idéias e compartilhar com as pessoas, independente da classe Social, do Credo Religioso, da Opção Sexual, ou, da Etnia.
Para mim, o que vai interessar é o nosso intercâmbio de idéias, e, de pensamentos.
Estou lá, no meu Espaço Simplório, esperando por você.
E, eu, já estou Seguindo o seu blog.
Força, Paz, Amizade e Alegria
Para você, um abraço do Brasil.
www.josemariacosta.com


Antonio Cicero disse...

Obrigado, José Maria.

Passarei pelo seu blog.

Abraço

Beto Viana disse...

Oi Antonio,

Aqui quem te escreve é Beto, que namorou a Mariana. Fiz alguns dos teus curso, lembra?

Venho na verdade lhe fazer um pedido. Eu li uma vez uma tradução sua do Fragmento 31 de Sapho numa aula. Sobre o ciúme, lembra? Não achei nenhuma tradução melhor do que a sua. Seria possível transcrever esse fragmento?

Tenho escrito alguns poemas, queria te mostrar. Qual teu e-mail?

Espero não ter sido inconveniente.

Tenho lhe seguido sempre que possível.

Firme abraço

Beto

Antonio Cicero disse...

Beto, você não está sendo nada inconveniente. Não há o menor problema.

Façamos o seguinte: você me envia o seu e-mail, que eu não publicarei, e eu escrevo para você.

Abraço

Siegfried Fuchs disse...

Gostei muito do artigo. Mas o que é um poema bom? Aquele que está dentro de um modelo, digamos assim, que consideramos; tanto em forma como em conteúdo. Esta proposição é teórica, formal a respeito de poesia e arte.A respeito de crítica de arte.

Siegfried Fuchs disse...

Acho essa questão muito interessante. Tenho visto tanta poesia como nunca antes. Nem sei o que aconteceu. Algumas são boas mas a maioria é uma repetição. Até lembro aquele chiste/aforismático de Goethe que vc postou.Alguém escreve algo novo? Mas há poemas e poesias que são novas, que dizem algo de uma maneira relevante. Não sei como vc vê isto. Se quiser continuar esta discussão ou diálogo, acharia ótimo. Uma certa abordagem já fiz no coment acima.

Antonio Cicero disse...

Sig ff,

Acho que já disse o que penso sobre isso no seguinte trecho do artigo acima:

"No final, o que conta é a totalidade das formas/conteúdos que, interagindo entre si, produzem os objetos absolutamente singulares que são os poemas. Dado que não há fórmulas nem receitas para criar tais objetos, todos os poemas bons podem ser considerados experimentais".