5.11.13
Machado de Assis: "A mosca azul"
A mosca azul
Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão,
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada,
Em certa noite de verão.
E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua, — melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.
Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
"Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
Dize, quem foi que to ensinou?"
Então ela, voando, e revoando, disse:
— "Eu sou a vida, eu sou a flor
"Das graças, o padrão da eterna meninice,
"E mais a glória, e mais o amor."
E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo,
E tranqüilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem refletir.
Entre as asas do inseto, a voltear no espaço,
Uma cousa lhe pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço
E viu um rosto, que era o seu.
Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o colo nu,
Um imenso colar de opala, e uma safira
Tirada ao corpo de Vichnu.
Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
Aos pés dele, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo, as suas graças finas,
E todo o amor que têm lhe dão.
Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios,
Voluptuosamente nus.
Vinha a glória depois; — quatorze reis vencidos,
E enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e o parabéns unidos
Das coroas ocidentais.
Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto,
Via limpo os corações.
Então ele, estendendo a mão calosa e tosca,
Afeita a só carpintejar,
Como um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.
Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.
Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
Dissecar a sua ilusão.
Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil,
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.
Hoje, quando ele aí vai, de áloe e cardamomo
Na cabeça, com ar taful,
Dizem que ensandeceu, e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.
ASSIS, Machado de. "Ocidentais". In:_____. Obra completa, vol.3. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973.
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5 comentários:
Prezado Cicero, lembro-me de ter feito um trabalho, ainda na década de 90, sobre este poema, no qual defendi a "tese", por assim dizer, de que esta mosca azul poderia ser lida como uma alegoria da vontade de Schopenhauer. E a hipótese se mostrou bastante plausível, ainda que, à época, minha visão das relações entre poesia e filosofia não fosse, digamos, das mais sofisticadas (eu mal saíra da adolescência...). Bom reencontrar esse poema aqui. Grande abraço de um leitor de seus poemas e ensaios, Marcio. (P.S.: Se lhe interessar, veja lá um blog que criei recentemente com a leva mais recente de meus poemas. O endereço é http://nevesobasdunas.blogspot.com.br Sendo inconveniente o convite, perdoe a petulância e desconsidere-o simplesmente).
Caro Marcio Renato,
tentei seguir o link para o seu blog, mas ele não funcionou. Será que está certo?
Abraço
Caro Marcio Renato,
agora sim, fui e gostei do blog e dos poemas. Parabéns!
Abraço
A jóia
Aonde foram parar
As jóias da família
Foram pro penhor
Decerto eu diria
As mãos tremulas
Lembram das lembranças
Mal traçadas linhas
As jóias de então
Um diamante, uma esmeralda.
No teu colo
Na tua mão
Já não são nada
Mas posso renovar
Por trinta, sessenta, noventa dias
E ter uma esperança
Faz tão bem ao coração
E título nenhum te dará
Isso que eu tenho agora, em vão.
Cicero,
que belo poema! salve Machado de Assis! Obrigado por compartilhá-lo!
Aliás, curioso, fui ao blog do Márcio Renato e gostei do seu poema "Arqueologia do presente".
Abraço forte,
Adriano Nunes
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