9.1.12

Sobre a discussão entre Popper e Wittgenstein





Em artigo publicado hoje no suplemento “tec”, da Folha de São Paulo, Luli Radfahrer se refere a um episódio famoso da história intelectual do século XX. Trata-se do desentendimento entre Karl Popper e Ludwig Wittgenstein. Segundo Radfahrer,

“Wittgenstein argumentava que as questões filosóficas não passavam de problemas linguísticos. Popper discordava. Para estimular o debate, a Universidade de Cambridge convidou Popper para expor suas ideias, com Wittgenstein e outros figurões no auditório.
“A expectativa era grande, mas não para o que ocorreu. Mal começado o evento, Wittgenstein pegou o espeto da lareira e, armado com ele, saiu gritando que Popper estava errado. A situação só não terminou em tragédia porque alguém da plateia gritou para que ele sossegasse. A lenda diz que a bronca veio de Bertrand Russell, pouco importa.”

Eis a versão que Popper conta dessa história:


No início do ano letivo de 1946-47,o secretário do Clube de Ciências Morais, de Cambridge, convidou-me a fazer uma exposição acerca de alguma ‘charada filosófica’. Estava claro que se tratava de uma formulação devida a Wittgenstein, por trás da qual estava sua tese filosófica de que, em Filosofia, não existem problemas genuínos, mas tão-somente charadas lingüísticas. Uma vez que essa tese estava entre minhas aversões prediletas, decidi falar a propósito de ‘Existem problemas filosóficos?’. Comecei meu trabalho (lido na sala de R.B. Braithawaite, no “King’s College”, no dia 26 de outubro de 1946) exprimindo surpresa por ter sido convidado pelo secretário a falar ‘a propósito de alguma charada filosófica’; e assinalei que, negando implicitamente a existência de problemas filosóficos, quem fizera o convite tomara posição, talvez inadvertidamente, num debate gerado por um genuíno problema filosófico.

Desnecessário dizer que, com isso, eu pretendia apenas fazer uma introdução provocadora e leve do meu tema. Mas, a essa altura, Wittgenstein pulou da cadeira e disse, alto e ,ao que me pareceu, em tom zangado: ‘O Secretário fez exatamente o que lhe foi dito que fizesse. Observou instruções minhas’. Não dei atenção e prossegui; mas, como ficou claro, alguns dos admiradores de Wittgenstein, ali presentes, deram atenção às suas palavras e, em conseqüência, tomaram minha observação, que pretendia ser uma brincadeira, como uma queixa séria contra o Secretário. E assim parece ter entendido o pobre Secretário, com se vê da ata em que ele refere o incidente, acrescentando em nota de pé de página: “Essa foi a forma de convite usada pelo Clube.”

Fui adiante, apesar de tudo, para dizer que, se eu não acreditasse na existência de problemas filosóficos genuínos, eu não seria por certo filósofo; e que o fato de muitas, talvez todas as pessoas acolherem irrefletidamente soluções insustentáveis para muitos, talvez para todos os problemas filosóficos, propiciava a única justificativa para ser-se filósofo. Wittgenstein ergueu-se de novo, interrompeu-me, e falou longamente acerca de charadas e da inexistência de problemas filosóficos. Em momento que me pareceu adequado, interrompi-o, apresentando uma lista de problemas filosóficos, por mim preparada, onde figuravam questões como “Conhecemos as coisas através de nossos sentidos?”, “Há conhecimento por indução?”
Wittgenstein rejeitou essas indicações, dizendo tratar-se de questões lógicas e não filosóficas. Mencionei então o problema de saber se existem infinitos potenciais ou talvez mesmo atuais, o que ele considerou uma questão de Matemática. (Isso consta da ata.) Aludi, em seguida, aos problemas morais e ao problema da validade das regras morais. A essa altura, Wittgenstein, que estava sentado junto à lareira e brandia nervosamente o atiçador de fogo, que por vezes usava como batuta de maestro, para sublinhar suas afirmações, lançou-me um desafio: “Dê-me um exemplo de regra moral”. Respondi: “Não ameaçar conferencistas visitantes com atiçadores de fogo”. Wittgenstein, com raiva, atirou longe o atiçador e precipitou-se para fora da sala, batendo a porta atrás de si”.


POPPER, Karl. Autobiografia intelectual. São Paulo: Cultrix, 1977.

10 comentários:

Wagner Schadeck disse...

Fantástico, Cícero.

Necopinus disse...

Pobre Karl Popper, Wittgenstein mal sabia quem ele era... Popper passou a vida se vangloriando de uma coisa que Wittgenstein nem se deu conta que ocorreu. Bom, acontece todo dia.

Lupo Lobato disse...

não sei porque eu sinto que em algum ligar dessa história tem uma lição zen.

tipo o wittgenstein atravessar o tição na garganta de Popper dizendo: isto sim é real!

Antonio Cicero disse...

Pois eu penso que, se o que Necopinus supõe, isto é, que Wittgenstein mal sabia quem era Popper, e que Wittgenstein nem se deu conta do que ocorreu, então, pobre do Wittgenstein!

one of us! disse...

Pobre Wittgenstein, viva Popper.

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,

adorei a sua resposta!


Abraço forte,
Adriano Nunes

Necopinus disse...

Cicero,
Concordo com você. Não julgo Popper inferior a Wittgenstein. Na verdade, não ligo muito para nenhum dos dois, mas ainda assim, prefiro Popper. O problema é que "O Atiçador de Wittgenstein", diz exatamente o que afirmei e ainda explica o imenso ressentimento social de Popper em relação a L.W.

Marcus Fabiano disse...

Caso típico de denúncia do uso de um "argumento baculino"por quem dizia nem estar argumentando. Golaço de Popper.

Parabéns pela postagem, Cícero.

Marco Rodrigues disse...

Na verdade, caríssimos, ocupar-se de questões relacionadas a Popper e Wittgenstein significa adentrar nas questões mais raquíticas do pensamento, cujo empobrecimento da linguagem representa um suicídio filosófico e a morte da imaginação.
Tanto Popper quanto Wittgenstein são metonímicos e dogmáticos no fim das contas. Medíocres no que se refere a um espírito filosófico criativo.

Antonio Fernando Pinheiro Pedro disse...

Popper e os arrogantes...
Sempre tem quem goste da arrogância como forma de afirmação. Sempre haverá um Popper que revelará a arrogância ao próprio arrogante.
Assim é com seu método científico, de contínuo aprendizado pelo questionamento. Afinal, nada é definitivo, não é mesmo?