24.5.07

Entrevista a Washington Castilhos

Por ocasião da visita de Bento XVI, Washington Castilhos, do Sexuality Policy Watch (Observatório de Sexualidade e Política), escreveu vários artigos, extremamente interessantes, sobre a Igreja Católica e a sexualidade. Fui um dos entrevistados para o artigo “A ética entre o bem e o mal”, que pode ser encontrado através do seguinte link: http://www.sxpolitics.org/mambo452/index.php?option=com_content&task=view&id=106&Itemid=127. A seguir, publico as perguntas de Castilhos e as minhas respostas:

1. A pergunta central do texto é: é possivel para o homem constituir uma ética que não seja a religiosa?

Sim. Não consta que haja mais criminosos entre os irreligiosos do que entre os religiosos. O ser humano sabe que determinadas coisas são erradas porque é capaz de se colocar no lugar do outro e de colocar o outro no seu lugar. Quem faz uma coisa errada sabe que rompe um pacto tácito estabelecido com os outros seres humanos. Não é preciso religião para ensinar isso. A ética exposta por Kant, por exemplo, não é religiosa. As religiões não fazem senão – na melhor das hipóteses – espelhar os princípios e a regras que os homens elaboraram para poderem melhor conviver em sociedade. A prova disso é que, embora muitos dos princípios e regras que os homens se impõem não sejam espelhados pela religião, eles são, no entanto, respeitados. Por exemplo, achamos errado que uma pessoa abandone um amigo na hora da necessidade. Pensamos assim, embora esse princípio não tenha sido enunciado por nenhum dos mandamentos. Por que então imaginar que, se não existissem os mandamentos, não continuaríamos, do mesmo modo, a considerar algumas coisas certas e outras erradas? Os gregos não tinham mandamentos e acreditavam que seus deuses eram capazes de mentir, trair, roubar, e até de prender e castrar o pai, ou de devorar os filhos. Entretanto, tanto quanto nós, eles consideravam essas coisas erradas.

Alguns, porém, ainda que não sejam eles próprios religiosos, alegam que a religião é necessária como um freio para os impulsos criminosos de grande parte da humanidade. Para isso, o que realmente acham necessário inventar é o inferno. A existência do inferno seria uma "pia fraus", uma "mentira santa". Isso nada tem a ver com moral. Ao contrário, trata-se de uma fraude, de uma mentira, de uma imoralidade com finalidades repressivas. Como poderia estar uma imoralidade na base da moral?

O verdadeiro freio para os criminosos é a lei humana e a sua aplicação. Como diz, com razão, Pierre Bayle, "um mal que só se vê à distância ou por conjectura" – ele se refere ao Inferno – "não muda nossa conduta, como se pode ver pelo exemplo dos jovens que sabem que morrerão um dia ou pensam que morrerão talvez dentro em pouco e nem por isso estão prontos a mortificar suas paixões". E ainda: "A concupiscência sendo a fonte de todos os crimes, é evidente que, já que ela reina entre os religiosos, tanto que entre os ateus, os idólatras devem ser tão capazes de serem levados a todo tipo de crime quanto os ateus; e que uns e outros não teriam conseguido formar sociedades, se um freio mais forte que a relgião, a saber, as leis humanas, não reprimisse sua perversidade. E isso mostra a falta de fundamento que há em dizer que o conhecimento vago e confuso de uma Providência seja útil para enfraquecer a corrupção humana."

2. Nos pronunciamentos de Bento XVI, um tema se coloca como urgente proposta de caminho para a sociedade moderna: o alargamento da razão. O papa Bento XVI sonha com uma Igreja que se contraponha ao que enxerga como a principal fraqueza da cultura contemporânea: o relativismo. Na opinião do papa a razão encontra-se hoje reduzida, resumida à cientificidade, existem nas palavras dele "patologias da razão" ou "hybris da razão", como também ele chama. Para isso, ele propõe o tal "alargamento da razão" como saída ao "laicismo dominante". Como o sr analisa esse raciocínio? Em sua opinião, a Igreja Católica tem problemas em lidar com a modernidade?

Francamente, não vejo grande novidade no discurso de Bento XVI. O que é diferente é a atitude dele, que é mais agressiva, na defesa dos dogmas da Igreja Católica. No fundo, foi a partir da grande síntese de fé e razão empreendida por são Tomás de Aquino que, em Regensburg, ele atacou o fideísmo muçulmano e protestante. Graças a uma interpretação extremamente questionável de santo Agostinho e são Paulo – interpretação que os coloca demasiadamente próximos da posição de Tomás – ele localiza na Idade Média tardia, em Duns Scotus, a origem do fideísmo ocidental e, com isso, do Protestantismo. Este seria, portanto, o resultado de um desvio da linha correta, isto é, tomista.

A meu ver, o que na verdade ocorreu foi que a teologia da Idade Média tardia se deu conta da irrecuperável incompatibilidade entre a razão e a religião revelada: entre o Deus dos filósofos e o Deus de Abraão, como diria Pascal mais tarde. Ela percebeu esse problema, não por uma insuficiência da sua racionalidade, mas, ao contrário, por ter sido intransigentemente racional. Foi por não querer diminuir nem a razão, nem a religião, que ela optou pelo dualismo. Pode-se dizer que o fundamentalismo protestante é a opção exclusiva pelo lado da fé e, por outro lado, que o positivismo – que, junto com o relativismo, é o outro alvo dos ataques de Bento XVI – é a opção pelo lado da razão. É por causa dessa origem que, de certo modo, justifica-se tomar o positivismo como uma razão diminuída, uma razão que limita a si própria.

A solução para essas limitações é, evidentemente, o abandono da própria problemática da relação entre a fé e a razão, que o positivismo ainda inconscientemente conserva. A verdadeira razão ampliada é a razão ilimitadamente livre e crítica, a razão tout court, e a principal condição para o seu exercício é a sociedade aberta. A tentativa de Bento XVI de voltar ao tomismo, como se nada senão um desvio tivesse ocorrido depois dele, é simplesmente regressiva e, por isso, destinada ao fracasso.

3. Em um texto recente seu, o sr afirma que é preciso defender a modernidade e a razão contra ataques da esquerda e da direita e afirma que é perigoso "relativizar a razão pelo sentimento". É perigoso relativizar a razão pela fé?

Sem dúvida. Colocar a fé, que é o oposto da razão, antes da razão é ser irracionalista. O irracionalismo – principalmente no que diz respeito à esfera pública – é o que há de mais perigoso.

3. Como o sr analisa a ética católica em relação à reprodução e à sexualidade e a moralidade que ela imprime a temas relativos a esses campos?

O catolicismo alega defender a vida, mas a verdade é que a vida que realmente importa, para ele, não é esta, mas a "outra", isto é, a "eterna", isto é, a que vem depois da morte, isto é, a própria morte. E, perto da vida eterna, o que é, para o verdadeiro católico, o sofrimento nesta vida? Assim, o catolicismo não defende a vida, mas a morte e o sofrimento. "Quem quer o celeste", dizia são Bernardo, "não gosta do terrestre; quem anseia pelo eterno despreza o transitório". Desse modo, os prazeres terrenos não valem por si e estão muito próximos do pecado, pois afastam o ser humano do celeste e do eterno. Não é, pois, por um respeito absoluto pela vida terrena – respeito que ela jamais teve – que a Igreja condena o aborto, mas, em primeiro lugar, porque, segundo a sua interpretação teleológica do mundo, o prazer sexual não tem, para ela, finalidade em si próprio, mas na reprodução, e, em segundo lugar, porque quer afirmar a heteronomia do ser humano, quer afirmar sua convicção de que o ser humano não é dono de si próprio nem do seu corpo. É por essas mesmas razões que ela condena a homossexualidade.

Penso que cada um tem o direito de acreditar no que quiser, por mais irracional que seja, e de agir de acordo com as suas crenças, desde que, ao fazê-lo, não infrinja idêntico direito de outrem. Isso porém implica que ninguém – nem indivíduos nem instituições laicas ou religiosas – tem o direito de impor as suas crenças particulares ou o seu modo de vida aos outros. Assim, a Igreja está sendo subversiva do princípio universal do direito e do Estado laico quando, por exemplo, tenta impedir os casais homossexuais de terem as suas parcerias civis reconhecidas pela lei.

8 comentários:

Anônimo disse...

Estive pensando nisso, quero dizer, em relação a super valorização da igreja sobre a vida "eterna", ou seja, a morte. O ser-humano está aqui para nenhum propósito que não seja: programar-se para sua vida "outra", segundo os dogmas de algumas religiões. Não quero de forma alguma ofender ou depredar o catolicismo, mas o incrível é que eles vivem condenando movimentos ou manifestações ditas - o "anti-Cristo". Ora, a meu ver, a igreja católica se empenha ao máximo em matar o Cristo. Jesus está sempre morto, na cruz. Para q ninguém se esqueça q ele foi sacrificado pelo pecado do mundo ou p que fique claro q seu poder pode ser substituído pelo poder do Papa? O Cristo católico é sempre fragilizado e, por fim, morto. A figura do Papa é sempre mais enaltecida. Sem dizer q o Cristo é rejeitado por suas origens. O catolicismo rejeita veemente a idéia de um Cristo judeu. O catolicismo enaltece o anticristo. Não estou afirmando q o Papa seja a besta, como muitos dizem, mas o lance é esse. Se depender da igreja católica, não há Cristo que sobreviva, não há vida terrena, não há saúde pública, as doenças e epidemias evoluirão até q se chegue num ponto em q a única saída será mesmo a "outra" vida. Isso para eles, é claro. Mas, afinal, qual é o peso do poder papal atualmente? Parabéns pelas suas respostas. Grande abraço.

carlos eduardo disse...

Você disse que a teologia da idade média foi intransigentemente racional, por não querer diminuir pela fé nem pela razão e, assim, optou pelo dualismo;
e que a solução seria o abandono da problemática entre a fé e a razão.
Você enxerga uma postura de Bento XVI que não seja regressiva e destinada ao fracasso?
O abandono da problemática entre fé e razão não seria o mesmo que uma falta de postura (mesmo considerando-se que a fé não deve ser racionalmente fundamentada)?
O papa representa a igreja e essa parece sugerir uma postura cristã de disseminação da fé.

Em suma: Isso representa de fato o fracasso de uma instituição ideológica?

(me desculpa se a pergunta está mal formulada ou já respondida na própria entrevista, possível falta de atenção minha. É dúvida de aluno mesmo. Quero esclarecer
para dissipar determinadas confusões teóricas)

Anônimo disse...

Oi Cícero,
eu não sabia que você tinha um blog, que bacana!
Eu sou a responsável pela sua comunidade lá no Orkut: já somos 450 membros!
Vou ler seus posts com calma e comento.
Um abraço!
Veronica

Antonio Cicero disse...

Carlos Eduardo,

conforme já esclareci num comentário ao texto "A poesia é um segredo dos deuses", no momento estou terminando de escrever o texto de uma conferência que farei em Portugal e, antes de terminá-la, não consigo pensar em nenhum outro assunto. Por isso, infelizmente, só poderei responder aos comentários de vocês no final da semana que vem. Até lá, tenhamos paciência.

Abraço,
Antonio Cicero

Antonio Cicero disse...

Veronica,
que bom que você apareceu. 450 membros? Incrível! Bem, muitíssimo obrigado por manter essa comunidade. Morro de vontade de ir lá, mas acho que ficaria sem jeito, sem graça. Mas qualquer hora eu tomo coragem.
Um beijo muito grande a você e um abraço a todos os membros,
Antonio Cicero

Anônimo disse...

tá tudo aceso em mim, tá tudo assim, tão claro... (conhece? - rs)

vc tem essa capacidade, a de iluminar os caminhos.

como sempre, textos elucidativos.

muita luz lúcida pr'ocê!

blog nota 10!

grande beijo, gracinha!

Lucas Nicolato disse...

Caro Antônio,

Gostei muito do texto, embora discorde em parte de sua opinião sobre a ideologia católica. A relação entre vida, morte, sofrimento e salvação são complexas e se situam numa esfera simbólica, mística, onde a razão não é capaz de penetrar. Justamente por isso, contudo, concordo plenamente com sua última resposta. É justamente porque a religião se encontra em um terreno exterior à racionalidade rigorosa que não pode ser utilizada como base para legislações. Tal atitude abriria as portas para todo tipo de infrações aos princípios básicos do Estado Democrático de Direito. Toda a estrutura do Estado tem como suporte a idéia de um sistema definido através de procedimentos objetivos, racionais, regidos por leis racionalmente estabelecidas. Isso não tira o direito à subjetividade, nem à emoção ou à fé dos indivíduos. Pelo contrário, é justamente essa subordinação do poder à razão que garante as liberdades do indivíduo, inclusive a liberdade de agir sem qualquer base racional, dentro de certos limites.

O que as instituições religiosas deveriam perceber é que atitudes que visam dar força de lei a preceitos religiosos particulares apenas enfraquecem as religiões, pois criam a possibilidade de invasão do terreno espiritual pelo estado. Acredito que seria muito mais benéfico à Igreja Católica, com relação às uniões homossexuais, pleitear não apenas o seu reconhecimento, mas o reconhecimento de que a formação de núcleos familiares não deve ser constrangida de forma alguma pelo estado, que a família deve ser auto-constituída e auto-gerida (obviamente dentro, também, de limites razoáveis). Apenas com a defesa de todas as possibilidades familiares, sejam monogâmicas heterossexuais, homossexuais, poligâmicas, é que as religiões poderiam garantir seus direitos de praticarem e incentivarem suas idéias específicas sobre a família.

Espero que sua conferência seja um sucesso. Aguardo ansiosamente as respostas aos comentários. Mais uma vez, parabéns pelo blog, pelos artigos e poemas, e pelos 450 fãs na comunidade do orkut.

Um abraço,
Lucas Nicolato

Anônimo disse...

Cícero, e se as religiões, pelo menos as universais, com seus dogmas [ortodoxia] e códigos de conduta [ortopraxis] tiverem a mesma origem que os nossos valores básicos [princípios éticos universais, como em Kant]? Isso explicaria por que não precisamos de religião para sermos morais. Mas não dispensaria a fonte comum dos valores: Deus ou o Absoluto ou a Razõa ou seja lá que nome se lhe dê. De qualquer forma, não seguir uma religião não significa não ter um deus, seja ele o próprio Absoluto, portanto infinito, seja ele um sucedâneo, um objeto de idolatria qualquer, portanto finito. Abraço, edg