21.9.09

Pensar o mundo

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 19 de setembro:


Pensar o mundo

ANOS ATRÁS , um dos admiráveis ciclos de conferências concebidos e organizados por Adauto Novaes intitulava-se "Poetas que Pensaram o Mundo". Sempre gostei desse título.

A sintaxe presente na expressão "pensar o mundo" não é corriqueira ou normal. Normalmente diríamos "pensar SOBRE o mundo". Não é que seja gramaticalmente incorreto dizer "pensar o mundo"; apenas, não se trata de uma construção comum. O verbo "pensar" pode ser intransitivo, transitivo direto ou transitivo indireto. Como transitivo direto, porém, seu objeto é normalmente (1) uma oração substantivada (por exemplo, "eles pensam que a terra é plana"), (2) um verbo ("penso sonhar"), ou (3) um nome ou um pronome com função adverbial ("penso isso" por "penso assim"; "penso o contrário" por "penso de modo contrário").

Em geral, é somente como transitivo indireto que o objeto do verbo "pensar" pode ser um nome, de modo que se diz "penso numa (ou sobre) uma rosa" ou "penso em (ou sobre) Marcelo", mas raramente, exceto em poesia, dir-se-ia "penso uma rosa" ou "penso Marcelo".

Em francês, tais construções são mais comuns do que em português, de modo que não é raro encontrarem-se títulos de livros ou artigos contendo o sintagma "penser l'être" (pensar o ser) ou "penser l'homme" (pensar o homem). Mesmo em francês, porém, essa expressão é, segundo o monumental "Trésor de la Langue Française", que cita, a propósito, textos de Sartre, de Merleau-Ponty e de Alain, usada "sobretudo no domínio da reflexão, do conhecimento científico e filosófico".

Ora, não creio que a construção tradicional, em que o verbo "pensar", ao ter por objeto um nome, é transitivo indireto, construção que também se encontra nas demais línguas indoeuropeias que conheço, seja arbitrária. Parece-me que lhe subjaz uma concepção do pensamento como um ato dotado da estrutura de uma proposição, de uma sentença, de um juízo. Nesse sentido, pensar numa coisa ou sobre uma coisa é fazer para si mesmo um juízo a respeito dela: de que ela existe e/ou de que tem tais ou quais propriedades e/ou de que tem tais ou quais relações com tais ou quais coisas. Normalmente concebemos o pensamento, portanto, como primariamente discursivo ou dianoético, como dizia Aristóteles, e não como intuitivo ou noético. A preposição "em" ou "sobre", quando digo "penso numa rosa" ou "penso sobre uma rosa" funciona como uma marca verbal do caráter mediado da relação do meu pensamento com a rosa. Interpondo-se entre o pensamento e a rosa, ela, por um lado, os separa e, por outro, os reúne. É desse modo que funciona o pensamento filosófico.

Pode-se dizer que, quando a palavra "mundo" significa a totalidade do pensável tomada como uma totalidade, então "pensar sobre o mundo" é filosofar. Mas, e "pensar o mundo"? Nesse caso, a abolição da preposição sugere a abolição da separação e da mediação entre o pensamento e a coisa pensada. É como se o pensamento não pretendesse ficar SOBRE, isto é, acima ou, de algum modo, "fora" do mundo, para pensá-lo. É como se ele ou bem se situasse no mundo pensado, ou bem como se apreendesse o mundo enquanto pensamento. Tal seria um pensamento intuitivo e noético, isto é, uma intuição intelectual. Nesse sentido, pensar o mundo afigura-se inteiramente diferente de pensar sobre o mundo e, portanto, de filosofar.

Entretanto, se, como foi dito há pouco, a construção em que o objeto direto do verbo "pensar" é um nome, como em "pensar o mundo", parece ser de origem filosófica, pode-se questionar se não será ilusória a distinção que acabo de desenhar. Parece-me que não. Dos três pensadores citados pelo "Trésor", dois, Sartre e Merleau-Ponty, são fenomenólogos. Ora, a fenomenologia criticava exatamente a relação excessivamente mediada estabelecida pela filosofia tradicional entre o pensamento e seu objeto intencional. Ela pretendia, portanto, voltar a uma intuição direta e pura dos objetos. Pois é precisamente essa relação intuitiva do pensamento com seu objeto intencional que os filósofos citados pretendem exprimir ao tornar direta a transitividade normalmente indireta do verbo "pensar". Portanto, ainda que originada no discurso filosófico, essa sintaxe foi concebida para exprimir ambição cognitiva oposta à da filosofia tradicional.

De qualquer maneira, trata-se de uma construção admiravelmente apta a exprimir a ambição poética do pensar intuitivo. Melhor dizendo: ela poeticamente revela a diferença específica do pensamento poético.

13 comentários:

Emerson Leal disse...

Belo texto, meu caro Cícero. Amanhã nos veremos na Casa do Saber. Abração!

Eleonora Marino Duarte disse...

pensador,


belo texto!

li na folha, mas aqui tenho a oportunidade de dizer o quanto foi proveitosa a leitura. descobertas e revisões.

uma das coisas que mais aprecio em sua escrita é a forma como conduz o pensamento, com calma, manso, mesmo que em turbilhão, parte a parte, com o máximo de poesia e cuidado.

O seu “Pensar o mundo” é bastante interessante e nada egoísta.

sou fã!

grande abraço!

Jefferson Bessa disse...

Os grandes trânsitos possíveis
se poeticamente caminhamos.

Estradas que vão
do verbo ao objeto
sem nenhum sinal vermelho :)

Lindo artigo, Cicero!
Um abraço.

ADRIANO NUNES disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Clotilde Zingali disse...

Olá :)) lindo artigo! usei essa expressão numa de minhas crônicas, mas infelizemente, no ato da publicação ela foi alterada... renasci disso ao ler suas palavras. obrigada

Arthur Nogueira disse...

Querido Cicero,

que saudade que estava dos seus artigos. Lindíssimo o título do ciclo de conferências e não menos atrativas todas as suas conclusões sobre ele.

Um beijo.

Marcello Jardim disse...

Prezado Cícero,sua crônica torna notavelmente clara e procedente a "ambição poética do pensar intuitivo".Lembrei-me da leitura do Willian Blake do "The Tiger" e "Ah! Sun-flower" e também de uma frase de Rimbaud que diz: "a poesia não voltará a ritmar a ação; ela passará a antecipar-se-lhe."

Grande abraço.

Marcus Fabiano disse...

Antônio,

Se o que se dá aos olhos é a coisa e à mente, o conceito, Husserl, Bergson e o grupo “todos contra Kant” bem que nos poderiam ter brindado com um pouco dessa sua benfazeja clareza analítica.

Do filósofo ao poeta (esse demiurgo de epifanias), até Rodin hesitou no batismo do seu celebérrimo Pensador (le penseur), primitivamente nomeado O Poeta (le poète), vez que em verdade figura o próprio Dante a meditar a sua Divina Comédia.

Parabéns pelo ótimo texto.
Um abraço e um poema a propósito.


O PENSADOR, O POETA
(AU MUSÉE RODIN)

ali, sobre
as portas do inferno
em bronze
a robusta forma
de um homem
eternizado em pose
au-delà de ce monde

não em fotografia
mas em pátinas
de sulfúricas salivas
sobre uma pele oca
que de labaredas lambida
desperta em alma
aquela carne fria
e pelas chamas
que a tonalizam
acabam a fogo
aquele pensador
- ou guardador
de demônios.

Anônimo disse...

Antonio,


Impossível imaginar o mundo, pensar o mundo sem você por perto!


Um poema:


"Colapso II" - Para Neuma Lima Santos



Calo-me, neste momento,
Porque, se me dou ao mundo,
Meu mundo logo se perde.
E para que essas palavras
Tão gastas, tão corroídas
Pelo tempo, por propósitos
Da vida? O que ainda sei


Do meu coração? Que resta
Dos versos que um dia fiz,
Pensando dá-los a alguém?
Hoje, não tenho mais nada.
Nenhum parente, vizinho,
Conhecido, amante, cúmplice.
Calo-me. É chegada a vez!


Vou cuspir mesmo no prato
Para lambê-lo depois,
Mas não me venham com pedras,
Não me traguem as idéias,
Não me tratem com consolos.
Eu sou despida de mim,
Eu sou só, eu sou poeta.


Bastam-me as falhas, as farpas,
Os abusos, os meus medos,
Toda a minha lentidão.
Calo-me porque sei pouco
Ouvir, porque não preciso
De ecos, de ficar de frente
Com o que busco ou proclamo.


Aprendi a me defender
Dos ruídos, dos gemidos
Da minha alma. Esse silêncio
É a morte dentro do cérebro,
O mistério pleno, o sonho
Das gretas, desses protótipos,
Mas compreendo-o, confirmo-o.


Não me provem coisa alguma,
Não me venham com as fórmulas
Pitagóricas da mente,
Da razão, de tais rascunhos
Medievais, dos pesares
Inevitáveis do agora,
Não me importam tantas lágrimas.


Que quererei das lembranças?
Que quererei dos remorsos?
Há muito não me procuro
Em verdades, em loucuras.
Que quererei das desculpas?
Quebrarei taças pra quê?
Quero a mímica dos mudos,


Os fantasmas dos fantoches,
As rochas, grossos grafites,
O gesto por decifrar,
Os bastidores, o flerte
Fixo, não qualquer oxímoro
Roçando o texto. Quiçá,
Outra quimera de fato.


Grande beijo,
Cecile.

Climacus disse...

Cícero, não sei se entendi o que você diz, mas, o trabalho poético vem antes, depois ou durante o mundo?

Antonio Cicero disse...

André, acho que eu é que entendi bem a sua pergunta.

Climacus disse...

"A eternidade não é antes ou depois do mundo, nem antes da criação do mundo nem quando ele sucumbe" (Hegel, Enciclopédia, frag. 258, citado no belíssimo livro de Paulo Arantes: Hegel - a ordem do tempo, p. 137).

Fernando Campanella disse...

Boa noite, Cícero. Olha, li o texto várias vezes, confesso que tive um pouco de dificuldade, mas é de um desenvolvimento e de uma coerência exemplares. Pensar sobre o mundo e pensar o mundo...muito interessante esta colocação sobre nossa divisão e nesse sentido os cientistas pensam sobre o mundo e o explicam, racionalmente, o que ajuda até certo ponto. Porém, a alma poética vai mais longe, integrando-se, captando talvez uma quintessência, então poetas pensam o mundo. Que o diga Bashô, Li Po,e tantos outros, poetas que apreenderam o instante, e se entregaram e se integraram.
E, finalizando, a poesia deve estar mesmo na origem de tudo, vem dos fundamentos do ar.
Grande abraço.