26.5.09

Richard Rorty: "O fogo da vida"

O estudante de filosofia Marcos Carvalho Lopes me enviou o último artigo escrito pelo filósofo norte-americano Richard Rorty. Originalmente publicado na revista da Poetry Foundation, ele foi muito bem traduzido por Susana de Castro. Tomei a liberdade, entretanto, de pôr a minha tradução do poema de Swinburne no lugar da dela.

O fogo da vida

Richard Rorty


Em um ensaio chamado “Pragmatismo e romantismo” tentei recolocar o argumento da “Defesa da poesia” de Shelley. No coração do romantismo, disse, estava a afirmação de que a razão só pode seguir os caminhos que a imaginação abriu primeiro. Sem palavras, não há raciocínio. Sem imaginação, não há palavras novas. Sem palavras novas, não há progresso moral ou intelectual.

Terminei este ensaio contrastando a habilidade do poeta de nos dar uma linguagem mais rica com a tentativa do filósofo de adquirir um acesso não-linguístico ao realmente real. O sonho de Platão por tal acesso foi ele mesmo uma grande descoberta poética. Mas no tempo de Shelley, argumentei, este sonho já havia se esgotado. Nós somos hoje mais capazes de reconhecer nossa finitude -- de admitir que jamais vamos entrar em contato com algo maior que nós mesmos. Esperamos, ao invés disso, que a vida humana aqui na terra se tornará mais rica do que nos séculos passados porque a linguagem usada por nossos remotos descendentes terá mais recursos do que a nossa tinha. Nosso vocabulário estará para os deles como os dos nossos ancestrais primitivos estavam para os nossos.

Nesses ensaios, como em escritos anteriores, usei ‘poesia’ em sentido largo. Expandi o termo de Harold Bloom ‘poeta forte’ para cobrir escritores de prosa que inventaram novos jogos de linguagem para jogarmos – pessoas como Platão, Newton, Marx, Darwin e Freud tanto quanto os versistas como Milton e Blake. Esses jogos podem envolver equações matemáticas, ou argumentos indutivos, ou narrativas dramáticas, ou (no caso dos versistas) inovação da prosódica. Mas a distinção entre prosa e verso era irrelevante para meus propósitos filosóficos.

Pouco depois de ter terminado de escrever “Pragmatismo e romantismo” fui diagnosticado com um câncer inoperável no pâncreas. Alguns meses depois de ter sido informado sobre as más notícias, estava sentado tomando café com meu filho mais velho e uma prima que estava me visitando. Minha prima (que é uma pastora da igreja batista) me perguntou se eu havia encontrado meus pensamentos se virando em direção a temas religiosos, e eu disse que não. “Bem, e quanto à filosofia?”, meu filho perguntou. “Não”, respondi, nem a filosofia que havia escrito nem a que havia lido pareci ter qualquer ligação com a minha situação. Não tinha nenhum problema com o argumento de Epicuro de que é irracional sentir medo da morte, nem com a sugestão de Heidegger de que a ontoteologia origina-se na tentativa de fugir da nossa mortalidade. Mas nem ataraxia (liberdade de perturbação) nem Sein zum Tode (ser em direção à morte) me pareciam ser o ponto principal.

“Nada do que tem lido tem sido de alguma utilidade?”, insistiu meu filho. “Sim”, me falei sem pensar, “poesia”. “Quais poemas?”, perguntou. Citei duas velhas castanhas que havia recentemente escavado da memória e que estranhamente estavam me encorajando, os versos mais citados do “Jardim de Proserpine” de Swinburn.

Agradecemos brevemente
A todos os deuses que há
Por não se viver para sempre;
Por jamais os mortos se erguerem;
Por chegar, por mais que volteie,
O rio sem dúvida ao mar.


We thank with brief thanksgiving
Whatever gods may be
That no life lives for ever;
That dead men rise up never;
That even the weariest river
Winds somewhere safe to sea.


e “Em seu aniversário de setenta e cinco anos” de Landor:

Natureza amei, e, próximo à natureza, arte;
Esquentei ambas as mãos diante do fogo da vida,
Ela afunda, e estou pronto para partir.

Nature I loved, and next to Nature, Art;
I warmed both hands before the fire of life,
It sinks, and I am ready to depart.


Encontrei conforto neste meandro lento e nestas brasas gaguejantes. Suspeito que nenhum efeito comparável poderia ser provocado pela prosa. Não apenas imagens, mas também rima e ritmo foram necessários para fazer o trabalho. Em linhas como essas, todos os três conspiram para produzir um grau de compressão, e assim de impacto, que apenas o verso pode alcançar. Comparada com as emoções moldadas tramadas pelos versistas, mesmo a melhor prosa é dispersa.

Apesar de diversos pedaços de verso terem tido grande significados para mim em momentos particulares da minha vida, jamais fui capaz de escrever algo pessoal (a não ser rascunhar sonetos durante reuniões departamentais entendiantes – uma maneira de rabiscar) Nem estou em dia com o trabalho dos poetas contemporâneos. Quando leio versos, na maioria das vezes se trata dos meus favoritos da adolescência. Suspeito que minha ambivalência com relação a poesia, neste sentido restrito, seja o resultado de complicações edipianas produzidas por ter tido um poeta como pai (ver James Rorty, Children of the Sun (Macmillan, 1926).)

Como quer que tenha sido, agora gostaria que tivesse passado mais tempo da minha vida com versos. Isso não é porque tema ter perdido as verdades que são incapazes de serem a afirmadas em prosa. Não existem tais verdades; não existe nada sobre a morte que Swinburne e Landor soubessem, mas que Epicuro e Heidegger fracassaram em descobrir. Ao contrário, é porque teria vivido mais plenamente se tivesse sido capaz de recitar mais velhas castanhas – da mesma forma que também teria se tivesse tido mais amigos íntimos. Culturas com vocabulários mais ricos são mais plenamente humanas – mais distantes das bestas – do que as mais pobres; homens e mulheres individuais são mais completamente humanos quando suas memórias estão amplamente estocadas com versos.


Trad. Susana de Castro

18 comentários:

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,

Estou plenamente tocado por esse texto porque fiz da minha vida uma dedicação plena à Poesia, porque amo os versos de uma maneira que nem mesmo sei descrever com textos em prosa, porque pude salvar-me de toda frieza do mundo racional, porque consegui ver que entre a vida vivida e a pensada há aquela que é sentida em mim e que possui uma luz que percorre infinitos caminhos, isto é: aquela que nunca quis saber da morte porque se abriga dentro de uma redoma protetora: todos os poemas!
Amanhã é o meu aniversário e esse texto é o melhor presente que eu poderia receber nesse momento!


Abraço fraterno!
Adriano Nunes.

Héber Sales disse...

Fantástico e muito emocionante. Muito obrigado a você e ao Marcos por compartilharem esse artigo conosco. Abraços!

Liberté disse...

muitos dizem que a poesia é a prima arte da real imaginação da proximidade dos deuses

Alcione disse...

Olhos tristonhos

Não é a chuva
O que cai lá fora
Não é ainda o cheiro
da primavera
são respingos
bem vindos
Flores muito bem urdidas
Por essas mãos de quimera
Flor de laranjeira
Quaresmeira , limão,
Olhos tristonhos
Roubou meu coração.

Angela disse...

Emocionei-me. Alguém, na iminência da morte, vê com rara lucidez a poesia, a amizade.Obrigada por compartilhar este belíssimo texto.
abraço
Angela

Unknown disse...

Cicero,

Muito obrigado.

E isso diz tudo.

Um abraço,

Antonio Engelke

fred girauta disse...

!!!

Anônimo disse...

Antonio,


Um soneto estranho:

***MUNDO-CÃO SEM SONETO***


Nesse mundo (de) cão,
Gatilho, mira,
Todo tiro atravessa
Sina, sonho,
Penetra muito além
Do que suponho,
Do profundo da vida,
Tudo tira


Do seu fado mecânico:
Disparo,
Chumbo, pólvora, treva,
Som, pavor.
Ó projétil perdido,
Aonde for,
Faça do seu vil vôo
Um anteparo


Para a aerodinâmica
Letal,
Para a arquitetura
Sem quimera,
Pra seu vil esqueleto
De metal.


Ó projétil sem rumo,
Feito fera
Em fúria, que nos faz
Alvo final
De fatos em jornais,
Que nos lacera!




Beijos,
Cecile.

Fernando disse...

Olá Cícero,

A música do Moraes Moreira, "Prometeu", do disco de 1979, tem a letra do Cicero. É você?
Fernando

Eleonora Marino Duarte disse...

pensador,

excelente!

muito obrigada!

Antonio Cicero disse...

É sim, Fernando.

Beto disse...

oi, cicero,
muito bonito o texto. sobretudo, no que há de depoimento, o momento de um filósofo na proximidade da morte. a lembrança, "sem pensar", dos poemas, do que cabe na palma da mão, do que cabe na pequenez da alma tornando-a maior, mais reconfortada, no encontro com a imensidão, com o medo da imensidão, com a coragem do enfrentamento da imensidão, com o acatar da imensidão. as sutilezas e ironias de muito do que foi dito também são bonitas. o dito desde uma instância pessoal. esses pequenos textos, como muitos outros, escritos depois das grandes obras, quando não se "quer" dizer mais nada, quando se diz à revelia de. muito bonito e comovente, menos pelas posições filosóficas e mais pela força de uma vida comparecendo, pelo fogo da vida, em um momento em que tudo começa a ser mar. se rorty conhecesse poemas como "nênia" e "buquê", se rorty tivesse lido seus poemas, iria se lembrar de muitos deles nesse momento.
abração,
beto

Fernando disse...

Olá Cícero,

Você tem a letra de "Prometeu"?. Já procurei na internet, pedi para Moraes (ficou de enviar mas os baianos esquecem - rs, rs,) e nada..Se puder postar ou enviar

Antonio Cicero disse...

Beto,

Muito obrigado. Adorei suas palavras.

Grande abraço

Antonio Cicero disse...

Fernando,

vou procurar nos meus discos. No computador, não tenho.

Abraço

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,

Um poema:

"TUDO SOBRE O POEMA"


Hoje, não quero saber de mais nada.
Hoje, não me peçam versos nem vida.
Hoje, não sei se adianta ter alma.
Hoje, não me tragam sequer cigarros.
Hoje, não me atropelem com promessas.
Hoje, não sei se findando eternizo-me.
Hoje, nenhuma estrela me fascina.
Hoje, nenhuma visita me alegra.
Hoje, não tenho esperanças nem tédio.
Hoje, nem mesmo porvir me interessa.


Porque perdi a crença que me impuseram,
Que me ensinaram como a mais humana,
Que me provaram à força ser útil,
Que me mostraram feito o sol no céu,
Que me convenceram com seus sorrisos,
Com palavras desconhecidas, fortes,
Com exemplos, teses, doutrinas, mitos,
Amedrontando-me com o que sou,
Revelando-me, pondo-me em torpor,
Retirando de mim meu coração.


Hoje, nenhum vácuo me ressuscita.
Hoje, ninguém me traz felicidade.
Hoje, nenhuma festa me distrai.
Hoje, não me vejo apagando velas,
Cantando, cortando bolo, surpreso,
Recebendo todos os meus amigos,
Os parentes, os presentes, estranhos.
Hoje, não faz sentido ter momento,
Ter data, foto, memória, pedidos.
Hoje, não devo sair do poema.



Abraço forte!
Adriano Nunes.

wilson luques costa disse...

Estrada de Frutal / MG


De tudo isso me componho
desses céus desses mares dessas serras
dessas casas de sapé mesmo sem saber habitá-las
dessas estrelas que situam a minha pequenez no universo quisera ser um antiprometeu e tirar esse fogo dos homens tirar esses
traffic-jams dos caminhos ou esses faróis de racionalidade...

deixar os homens seguir à deriva

a razão obstupefata-nos

sampa - wilson luques costa

Anônimo disse...

Uma bela escolha,emocionante e toca na alma.
C.