31.5.09

O desejo do contemporâneo

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 30 de maio:


O desejo do contemporâneo


O FILÓSOFO Gilles Deleuze diz que "uma boa maneira de ler, hoje em dia, seria tratar um livro assim como se escuta um disco, assim como se vê um filme ou um programa de televisão, assim como se acolhe uma canção: qualquer tratamento do livro que exija para ele um respeito, uma atenção especial, corresponde a outra época e condena definitivamente o livro".

Por mim, cada qual que leia o que quiser da maneira que lhe aprouver. Contudo, quando leio, por exemplo, as bobagens ou trivialidades que são cotidianamente escritas sobre Nietzsche por alguns dos seus fãs, tenho a impressão de que hoje praticamente todo o mundo já adotou a maneira de ler recomendada pelo autor de "Diferença e Repetição". E então tendo a achar que Heidegger é que estava certo, quando recomendava aos seus alunos que adiassem a leitura de Nietzsche para depois que estudassem Aristóteles durante uns dez ou 15 anos.

Deleuze jamais concordaria com isso, pois considerava repressiva a história da filosofia. Segundo ele, as pessoas não se sentem no direito de pensar antes de terem lido Platão, Descartes, Kant e Heidegger. Talvez. Mas eu diria antes que quem não quer pensar sempre acha uma desculpa para tal. Se, na França, é a história da filosofia, no Brasil é a filosofia contemporânea que tem esse papel. Tradicionalmente o brasileiro, tendendo a considerar-se atrasado em relação ao que se discute no Primeiro Mundo, não se dá o direito a pensar antes de estar a par do "dernier cri" europeu ou norte-americano. Ora, mal se conhece o "dernier cri" e ele já deixou de o ser, de modo que, correndo-se atrás do próximo, deixa-se para pensar por conta própria mais tarde.

Além disso, quem só deseja estar "up to date" acaba por jamais ler os clássicos. A leitura dos contemporâneos toma-lhe todo o tempo. Tal pessoa espera que os autores da moda lhe indiquem quais dos autores do passado ainda devem ser respeitados (por exemplo, Spinoza e Nietzsche) e quais devem ser desprezados (por exemplo, Descartes e Hegel). E, no mais das vezes, como aquilo que os contemporâneos escrevem sobre os autores que recomendam é considerado justamente o supra-sumo destes, torna-se supérflua a leitura dos originais.

Pensemos no significado desse desejo de ser contemporâneo. "Contemporâneo" quer dizer "do mesmo tempo" ou "do mesmo tempo que". Quando dizemos, por exemplo, "Mário e Oswald foram contemporâneos", queremos dizer: "Mário e Oswald foram do mesmo tempo"; e quando dizemos "Leonardo foi contemporâneo de Michelangelo", queremos dizer: "Leonardo foi do mesmo tempo que Michelangelo".

Quando, por outro lado, digo que uma coisa ou pessoa é contemporânea, sem explicitar de quê ou de quem, fica sempre implícito que essa coisa ou pessoa é contemporânea de mim, que estou a dizê-lo. Se digo, por exemplo, "Giorgio Agamben é um filósofo contemporâneo", quero dizer que ele é meu contemporâneo: o que poderia ser dito pelas palavras "Giorgio Agamben é um filósofo do mesmo tempo que eu". Ou seja, o que quer que seja contemporâneo, sem mais, é contemporâneo de mim (seja quem eu for). É claro que, como a contemporaneidade consiste em uma relação comutativa, não posso deixar de, reflexivamente, me reconhecer contemporâneo das coisas ou pessoas que me são contemporâneas.

Isso significa que não tem sentido que eu – seja quem eu for – me diga contemporâneo, sem mais. "Eu sou contemporâneo" significa apenas: "Eu sou do mesmo tempo que eu". Assim também, não tem sentido desejar ser contemporâneo, sem mais, pois "desejo ser contemporâneo" significa apenas: "Desejo ser do mesmo tempo que eu". Finalmente, não tem sentido desejar ser contemporâneo de alguma coisa ou pessoa contemporânea, uma vez que eu já sou, evidentemente, contemporâneo de quem me é contemporâneo.

Assim, o desejo do contemporâneo não passa de sintoma de um agudo provincianismo temporal. Quando se manifesta no campo da filosofia, talvez o melhor antídoto para ele seja exatamente a leitura cuidadosa dos clássicos.

E, de volta a Deleuze, devo dizer que, no lugar de tratar um livro como normalmente se escuta uma canção, acho mais proveitoso, de vez em quando, escutar algumas canções com o respeito e a atenção especial que o bom leitor jamais deixará de dedicar aos bons livros.

35 comentários:

helio disse...

Perfeito. Muitas pessoas tem o hábito de usar "contemporâneo" como sinônimo de algo moderno ou atual, esquecendo a idéia do comparativo.

Dionísio José disse...

A princípio, achei muito estranho o tom - e o conteúdo - abertamente conservador do artigo. Não porque o conservadorismo seja estranho por si. Mas, como dizia Nietzsche, o importante não é "o que", mas "quem".
É absurdamente estranho que o artigo seja escrito por alguém que fazia "canções" (de sucesso), absolutamente nietzscheanas.
Mas, refletindo, pensei: aquilo foi na década de 80 (20 anos!), quando se tratava de "tomar o poder"... Agora trata-se justamente de conservá-lo!Do mesmo modo que Lula era "sindicalista radical" e hoje tem Collor como aliado...
É evidente que a mudança conservadora na política se refletiria "na filosofia": antes Nietzsche e Foucault; agora Hegel e Aristóteles...
É isso!Ponto para Marx!

Marcello Jardim disse...

Caro Cícero, muito instigante seu artigo na Folha e também seu post sobre Searle. A leitura próxima dos dois me faz considerar : Há mais ou menos verdade nas coisas “encantadas” ou nas “desencantadas” ? Desde quando o que seja natural ou sobrenatural não diz respeito sobretudo ao âmbito do constatável pelo “ humano, demasiado humano” ? Os deuses, Deus, a razão, os anjos e santos e a ciência e os sábios, enfim, toda diferença extraordinária seria assim tão extraordinária sem que uma horda de demônios e de desrazão e indiferenciação fosse arrancada de seu sono eterno? Mestres e escravos de nós mesmos? Que estranha unidade se insinua em tudo que aí é diverso?
Se não há erro em afirmar que o real é vasto e diante dele nossas experiências muito limitadas, então pode-se dizer também, com segurança, que, no sentido em que seja verdadeira essa vastidão do real, nada sabemos. Mas, se nada sabemos assim, nem o mais encantado sobrenatural e nem a mais irrefutável naturalização podem ir além de ser uma representação de maneiras muito próprias (e um tanto impotentes) de lidarmos com aquilo que é urgente e opaco a um só tempo : o mistério. Puro e simples e nada fácil, clássico e atualíssimo, possível e impossível, profano e sagrado mistério de ser o que se é.
Desbravemos nossos preconceitos, que o não-saber exige a lucidez que está antes e depois de tantos pleitos ( e no meio, a vida, essa brutal confraternização), que a verdade não tarda a existir em nós mas, brava, sempre distante.
Abraço.

Antonio Cicero disse...

Dionísio,

Não há nada de conservador no meu artigo. A sua leitura sim, é conservadora. Alguns pontos a observar:


1. O artigo não ataca Nietzsche, mas as interpretações bobas e triviais de Nietzsche que pululam por aí. Conservador é quem não aceita nada além bobagens e trivialidades e quem as repete.

2. O que critiquei em Foucault foi:

A. a atitude dele ao defender incondicionalmente o regime REACIONÁRIO e teocrático que foi instalado pelo aiatolá Khomeini.

B. o seu culto REACIONÁRIO da “espiritualidade” na política, culto que leva à teocracia.

C. a inconsequência do relativismo que lhe serviu para justificar essa virada reacionária. Esse relativismo é aparentemente libertário, mas objetivamente REACIONÁRIO. Quem critica o que é REACIONÁRIO, como o fiz, não pode ser chamado de conservador.

3. Em vez de pensar clichês – estes sim, conservadores – sobre Aristóteles e Hegel, você devia tentar estudá-los. Em vez de citar Marx, você faria melhor de o ler. Se o lesse, você saberia que, para ele, os maiores pensadores do mundo foram exatamente Aristóteles e Hegel. E saberia que, longe de idolatrar a contemporaneidade, Marx criticou praticamente todos os filósofos que lhe eram contemporâneos. Nietzsche, aliás, atacou praticamente todos os seus contemporâneos, sobretudo, aliás, os que se achavam “de esquerda”. Exprimindo repulsa por seus contemporâneos, Nietzsche pretendia ser o oposto, isto é, EXTEMPORÂNEO. Tal é a atitude do verdadeiro filósofo.

4. Hoje, grande parte dos nossos contemporâneos – de direita ou de “esquerda” – se revelam, a um olhar mais atento, como OBJETIVAMENTE REACIONÁRIOS. Sendo assim, eu os critico. Não aceitar que eles sejam criticados é que é uma atitude REACIONÁRIA.

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,

Acho engraçados alguns leitores, com algumas dose de veneno ou falta de conhecimento mesmo, tentarem, "ingenuamente", apontar quaisquer falhas em seus artigos, que sei que são bem trabalhados e bem feitos, como se você fosse um universitário ou um aprendiz de Filosofia. Será que esse "povinho" ainda não aprendeu que aqui em seu blog não existem superficialidades? Ter dúvidas, temos... mas há mil maneiras de aprender sem querer fazer com que os outros pareçam estar expondo algo distorcido... e você, Grande Cicero, é uma luz para todos nós aqui.. Parabéns por mais esse ensaio... ah! Dionísio José, você realmente tem que estudar... e estudar muito!


Abraço forte!
Adriano Nunes.

Anônimo disse...

Artigo muito bem elaborado,muito bem colocado e muito coerente com toda trajetória do autor.
A.Cícero , esse teu espaço , o seu compartilhar é sempre enriquecedor
e nos leva além das linhas...

C.

Jefferson Bessa disse...

Caro Cícero,

Leitura é tarefa difícil, trabalho diário e respeitoso, por isso gostei muito de sua posição em relação ao que Deleuze disse. Obrigado pelo texto!

Um abraço.
Jefferson

Anônimo disse...

Cicero,

Sempre me soou levemente displicente essa passagem de Deleuze. Leve porque, sinceramente, acredito na simpatia dele pela letra de canção; displicente porque, ao que me parece malgré-lui, o sentido contemporâneo de se ler degradou-se tanto... bem como o de se ouvir... Algo me ficou, no entanto, como pergunta: por que entendo perfeitamente o que significa uma expressão como “filosofia nietzscheana”, mas não consigo entender o que significa uma expressão como “canção nietzcheana”? Seu último parágrafo deste texto é uma pérola, ainda mais quando o sentido de conservar se encontra tão em baixa.

Abraço,
Marcelo Diniz

Flávio Corrêa de Mello disse...

Olá Cícero,

Há tempos não vinha aqui no seu "acontecimentos". Só neste mês retomei as atividades internéticas. Acompanhar seu blog é uma ótima ginástica cerebral. Ginástica de existir e bem.

Bem, quanto ao post, falando de um contemporâneo para outro, me sinto um tanto desconectado para aprofundar, já que profissionalmente sou obrigado a falar de filósofos sem os ter lido. Falo de Deleuze, Guatarri, Foucault, Heidegger, Spinoza e etc... Li o Danilo Marcondes naquela publicação do JZE... ~Te digo sinto falta de aprofundar um autor, ler Marx por exemplo. De certa maneira, o acelerado de informações nos dá esse sentimento de perdidos (seria essa uma das concepções da pós-modernidade, da crise contemporâneo do eu sem raízes? - E não seria esse meu pequeno aparte também uma reprodução de clichês...).

Entretanto, louvando meu Deus interior, procuro ler, modestamente e na medida do meu curto tempo, os clássicos da poesia e da prosa. Estes sim, vou lendo e dissecando, fruindo, sem pressa, passo a passo, prazerosamente. Embora a literatura, diferente da filosofia, seja passível de uma leitura mais solta, mais independente.
Enquanto isso, martelo minha cabeçita por aqui, procurando aprender um pouco mais. Aliás, acabei de aprender que Deleuze sugeria ler um livro como se ouve uma canção... Mas depende de que canção, certo? Pois existem músicas que passam batido, outras que nos emocionam, verdadeiras catarses, outras que nos fazem escrever e, por fim, outras que nos fazem adquirir a discografia inteira do cantor em questão. Ou seja, não seria em todas as áreas, mesmo na filosofia, uma relação de desejo e de afinidades?

Bom estar aqui de novo, abraços

Anita disse...

Sei que extraída de seu contexto uma citação pode perder ou ter seu sentido transformado por completo, e confesso que não conheço o contexto original em que esta foi escrita. Pincei do blog da Marina Lima e vi alguma ligação com a discussão.
” O excesso de leitura priva a mente de toda elasticidade, assim como a contínua pressão de um peso afrouxa uma mola. A maneira mais segura de jamais ter um pensamento próprio é apanhar um livro toda vez que se tem um tempo livre…” (SCHOPENHAUER, 1851)
Concordo plena mente com o Jefferson Bessa. E vejo na busca pelo “dernier cri” uma busca na verdade pelo “prêt à penser”. A importância da leitura dos clássicos, pra mim, está no fato de que se deve conhecer a árvore pela raiz. O que vem depois está adicionado de interpretações. Se eu quero conhecer Adorno, é Adorno quem eu devo ler, e não Umberto Eco ou Mauro Wolf. Pelo menos não num primeiro momento. Se quero falar sobre Adorno, é Adorno quem eu devo ler, caso contrário cai no velho “diz-que-me-diz” onde a essência desaparece.
Se cito Adorno (novamente) é porque no momento estou justamente tentando conhecer os clássicos, conhecer filosofia... E estou começando por ele, pois tem que se começar por algum lugar. Aprendi até agora é que a leitura leva a mais leitura e isso não tem fim. Chega a ser angustiante, mas o mesmo post da citação anterior me apresentou um caminho.
“Não devemos ler escritos sobre a matéria acerca da qual estamos refletindo, do contrário atamos o gênio”. ( KANT, 1780 )
Até o segundo parágrafo também tive a sensação de que seria bombardeada por conservadorismo. Mas acho que dali em diante fica claro que não é, de forma alguma, o caso. Vejo nos blogs um espaço maravilhoso para discutir e conhecer ideias, principalmente quando o autor tem presença constante nas discussões, como é o caso aqui. Afinal de contas, de que outra forma teríamos um contato tão direto com alguém que admiramos e com quem queremos aprender? Não vejo motivo para ataques diretos, mas sim para a prática pura da dialética.
Essa história do "contemporâneo, sem mais" é fascinante. Acho que essa sede pela contemporaneidade absoluta acaba por apagar de certa forma a "coabitação, sem mais". O que quero dizer é que o pensamento fica tão fundamentado no outro, o tal contemporâneo, que já não há espaço para a presença do próprio pensamento.
O último parágrafo é realmente uma pérola. Uma atitude que com certeza deve ser expandida a outras áreas da cultura e da vida. E no quesito pérola ... “quem não quer pensar sempre acha uma desculpa para tal.” Isso sim é pra inchar cabeças...
P.S.: Também fiquei inculcada com esse negócio de “canções nietzscheanas”...
Bjos a todos!!

Armando disse...

É como disse o arquiteto espanhol Antonio Gaudi: "Originalidade é a volta à origem."

Aetano disse...

Caro Cicero,

O que vc descreve no texto ocorreu comigo que, na leitura de textos filosóficos, pulei de Platão para Nietzsche, passando rapidamente por Descartes e por outros.
Vc tem razão quando diz que esse procedimento é impróprio. No meu caso, eu diria que isso aconteceu porque o texto de Nietzsche me pegou de cheio e acabei esquecendo de fazer meus 15 anos de leitura de Aristóteles (e outros).
Agora, convivendo com o seu pensamento, e sobretudo com a leitura de "O mundo desde o fim" - falo mais desse livro revelador em outra oportunidade -, senti que eu também fiz leituras bobas e triviais de Nietzsche e, pior, era intelectualmente incapaz de agir de modo diverso.
Mas, o que me incomoda nesse instante é outra incapacidade: a de não lhe saber fazer o elogio e a declaração de gratidão que vc merece, razão pela qual vou ficar nos frustrantes "parabéns" e "muito obrigado".

Um forte abraço!

Aeta

Marcelo Pereira disse...

Sei que é clichê, mas é quase irresistível mandar esse Drummond:

"Como ficou chato ser moderno, agora serei eterno."

Abraços e parabéns, Cícero, por este mais que oportuno espaço de pensamento e - para mim - de aprendizado.

Antonio Cicero disse...

Aeta,

a primeira coisa que li em filosofia foi Sartre; depois, por coincidência, exatamente os autores que você cita: Platão, Nietzsche, Descartes: nessa ordem, se bem me lembro. Depois passei para os outros. Mas a história de dez, quinze anos de Aristóteles é evidentemente um exagero de Heidegger. Mas ela me veio a calhar contra o exagero oposto de Deleuze.

Não sei se você notou que o artigo da Folha reproduz parte do ensaio "O agoral", de "O mundo desde o fim".
E quem agradece sou eu.

Abraço

Roberto Grey disse...

Caro Antônio,
Nossa fome brasileira pela "fast philosophy", aliás pelo "fast tudo", talvez seja uma das causas da tão lamentada falta do "pensamento nacional"
Quanto à frase de Deleuze, me parece uma brincadeira ligada à sua auto-descrição como filósofo-pop (outra brincadeira). Na verdade, ele está combatendo o espírito de seriedade que tanto inibe a percepção das coisas quanto à capacidade de pensar por si. Confesso que foi uma frivolidade compreensível, mas perigosa para os ingênuos e para os militantes da frivolidade.
(Eu)estranho que um poeta tão bom como v ainda se preocupe em dar satisfações ao ser acusado de conservador e reacionário, e ainda empregue reacionário de uma maneira ideológica à la 60, 70 e 80.
Um abraço do seu leitor crítico,
Roberto Grey

Antonio Cicero disse...

Caro Roberto Grey,

Obrigado pelo elogio. Quanto à crítica, devo dizer que não penso que as palavras “conservador” e “reacionário” tenham perdido o sentido. Elas designam os inimigos da modernidade, da sociedade aberta, da social-democracia. Assim é, por exemplo, o Partido Republicano, nos Estados Unidos. Assim foi o governo Bush. Tenho horror a essa gente. Politicamente sou, portanto, um inimigo dos conservadores e dos reacionários.

Abraço

leo gonçalves disse...

Polêmica é sempre bom! Põe cabeças pra ferver. No fundo, o que você e todo nós queremos é que a mediocridade saia fora de moda.
Esse artigo deu o que pensar e o que falar entre amigos no próprio sábado. Andamos comentando...

Bem, confesso que fico desconfiado das explicações que partem do significado dicionarístico. As palavras transbordam do Aurélio e do Houaiss. Lembro de vezes que consultei os dois, insatisfeito ainda busquei alguma explicação da palavra correlata no Le Robert e no Webster e continuei insatisfeito com a explicação. Na prática elas têm muito mais reverberações.

minha amiga letícia (http://atrasdosolhos.wordpress.com/2009/05/30/o-desejo-do-contemporaneo/) comentava algo que concordo muito: "considerar diferentes níveis de contemporaneidade".

paulinho disse...

cicero cicero cicero cicero,

que DELÍCIA este seu texto! puta que pariu três vezes (rs)!

ri MUITO durante o desenvolvimento das suas linhas. porque você é tão lógico, tão claro -- tão lúcido! --, que chega a ser divertido! é um tapa na cara de todos: suas palavras desvendam o que está na frente de todos, a um palmo do nariz, e que, muitas e muitas e muitas vezes, não se consegue ver.

quando iniciei a leitura, de pronto não gostei do tal filósofo gilles deleuze. pensei: "mas que pensamento torto! quem disse a ele que, ao escutar uma canção, ao assistir a um filme ou ao ver um programa de tv, escute tal canção ou assista ao tal filme ou ao tal programa de tv com uma atenção menor do que a dispensada na leitura de um livro?"

a atenção que dispenso a um livro do antonio cicero (rs), a um do drummond ou a um de clarice, é a mesma que disponibilizo às canções de caetano, às do chico buarque, às do gilberto gil, às de antonio cicero (rs).

de fato, só um mal leitor, apenas um leitor preguiçoso, dignifica uma postura como a defendida por deleuze.

belezas nunca se fazem excludentes. sempre sempre sempre: complementares, enriquecedoras, não importando a fonte -- se um livro, um disco, um filme, um quadro, se uma peça de teatro, um encontro com amigos ou um programa de tv.

tudo lindo, tudo benvindo, meu poetósofo de primeira grandeza!

beijo enorme em você!

Antonio Cicero disse...

Muito obrigado, Paulinho. Ganhei o dia com seu comentário.

Beijo

Antonio Cicero disse...

Leo,

Não se trata de definições do dicionário. “Contemporâneo” é con-temporâneo e quer dizer “do mesmo tempo”. Ou dizemos “X é contemporâneo de Y”, isto é, “X é do mesmo tempo que Y” ou dizemos simplesmente “X é contemporâneo”, isto é, “X é do mesmo tempo que eu”.

Que definição seria mais correta que essa? De que definição você gostaria mais?

A Letícia diz que eu não considero diferentes níveis de contemporaneidade. Que quer dizer ela com isso? Fui ao site indicado e vi que ela dá exemplos do que considera ser diferentes níveis de contemporaneidade:

“Posso ser contemporânea da máquina de escrever, do nicholas negroponte, do josé sarney, do iphone e do fogão à lenha da casa da minha avó. aliás, sou contemporânea da minha avó e do filho do meu sobrinho”.

É a pura verdade. Essas coisas são contemporâneas dela sim. Alguma delas deveria se excluída ou ser considerada menos contemporânea? Não vejo por quê, a menos que ela explicite o contexto, dizendo, por exemplo, “X foi meu contemporâneo na escola”. Fora semelhantes contextualizações, todas essas coisas são contemporâneas dela sim.

E ela prossegue:

“ultimamente tenho pensando muito que esse amor aos clássicos revela, sim, uma tentativa de manter determinadas castas intelectuais ainda hoje, tempo em que, teoricamente, todos têm acesso aos saberes. a academia sacraliza o saber erudito, a poetagem pop sacraliza esse saber contemporâneo de que o cicero fala. e onde nós, que buscamos algo além, ficamos?
nunca fui contemporânea à ideia de paideuma, do ezra pound. prefiro, assim como o mario chamie, a mãedeuma, bem mais afim com certa contemporaneidade matriacal. não posso acreditar que ter lido cassandra rios tenha sido menos importante do que ter lido shakespeare, para a minha história da literatura individual.”

Por que o amor aos clássicos revelaria “uma tentativa de manter determinadas castas intelectuais ainda hoje”, se ela mesma reconhece que, hoje, “teoricamente todos têm acesso aos saberes”, logo, também aos clássicos? Todos têm de fato, em princípio, acesso a todos os saberes e é assim que deve ser. Por isso mesmo, eu publico poemas clássicos aqui no blog, em meio a poemas contemporâneos. Por que o preconceito contra os clássicos seria menos ruim do que o preconceito contra os contemporâneos? Por que não simplesmente recusar todo preconceito dessa natureza? É o que eu tento fazer. Sobre a questão dos clássicos, aliás, em vez de me repetir, remeto os interessados ao meu artigo “Os estudos literários e o cânone”, aqui no blog, em http://antoniocicero.blogspot.com/2009/02/os-estudos-literarios-e-o-canone.html.

Em suma, não vejo nenhum argumento convincente contra a definição de “contemporâneo” que ofereci.

Abraço

wilson luques costa disse...

PREZADO ANTONIO CICERO,

Desculpe-me, mas não me convence essa de x é contemporâneo. Porquanto será contemporâneo enquanto emissor. Sendo que uma frase lógica é perene em sua estrutura. Desculpe por discordar, tentarei escrever mais.

wilson luques costa disse...

Prezado ANTONIO CICERO,

´Ou dizemos “X é contemporâneo de Y”, isto é, “X é do mesmo tempo que Y” ou dizemos simplesmente “X é contemporâneo”, isto é, “X é do mesmo tempo que eu”.

Sinceramente, não concordo, num primeiro momento, com “X é contemporâneo”, isto é, “X é do mesmo tempo que eu”. A meu ver, isso seria uma indeterminação. Veja: quando se afirma que x é contemporâneo -- por que ser contemporaneo de mim, só porque ocultei o y? Ou seja, não atribuí a y, portanto entende-se mim (z)? É assaz difícil apor a minha dúvida aqui no blog e tocado por um outro tempo que me acelera em sentido aula. Essa frase tem uma relação biunívoca -- não seria como x é imortal ou x não é mortal. Penso, mais uma vez, que é mister atribuir algo ao contemporãneo para uma maior clareza. Veja: você usa da frase x é contemporâneo de y -- mas na outra deixa subentendido que x é contemporâneo , portanto, de mim; ou são frases distintas ou poderei enunciar x é contemporâneo de mim de y...E por aí vai... Eu julgo que essas questões seriam melhor resolvidas num ambiente onde todos pudessesm externar as suas dúvidas -- pela oralidade... mas o que tenho a colocar é um pouco esse arrazoado -- que sei que nos embaraçou um pouco mais...
Espero que não fique melindrado por eu colocar essas minhas dúvidas ... um abraço sincero do wilson--- desculpe-me pelos erros de digitações e outros que tais..

wilson luques costa disse...

x é do mesmo tempo que eu de y

wilson luques costa disse...

Fiz algumas correções. Mas não necessita publicar. Desculpe-me pelo volume desordenado. Publiquei no meu blog. Deverei colocar mais questionamentos até me convencer plenamente.

Acabo de colocar algumas dúvidas sobre a matéria de Antonio Cicero sobre O desejo contemporâneo. Vou tentar desenvolver mais a minha crítica.

Prezado ANTONIO CICERO,

´Ou dizemos “X é contemporâneo de Y”, isto é, “X é do mesmo tempo que Y” ou dizemos simplesmente “X é contemporâneo”, isto é, “X é do mesmo tempo que eu”. (sic)



Sinceramente, não concordo, num primeiro momento, com “X é contemporâneo”, isto é, “X é do mesmo tempo que eu”.



A meu ver, isso seria, a meu ver ainda, uma indeterminação. Veja: quando se afirma que x é contemporâneo -- por que ser contemporâneo de mim, só porque ocultei o y?

Ou seja, não atribuí a y, portanto entende-se mim (z)?

É assaz difícil apor a minha dúvida aqui no blog e tocado por um outro tempo que me acelera em sentido aula.

Essa frase tem uma relação biunívoca -- não seria como x é imortal ou x não é mortal.

Penso, mais uma vez, que é mister atribuir algo ao contemporâneo para uma maior clareza.

Veja: você usa da frase x é contemporâneo de y -- mas na outra deixa subentendido que x é contemporâneo , portanto de mim; ou são frases distintas, ou poderei enunciar x é do mesmo tempo que eu de y... E por aí vai...

Eu julgo que essas questões seriam melhor resolvidas num ambiente onde todos pudessesm externar as suas dúvidas -- pela oralidade... mas o que tenho a colocar é um pouco esse arrazoado -- que sei que nos embaraçou um pouco mais...

Espero que não fique melindrado por eu colocar essas minhas dúvidas ...

um abraço sincero do wilson---

desculpe-me erros de digitações e outros que tais...

Antonio Cicero disse...

Wilson,

“Contemporâneo” quer dizer “do mesmo tempo” ou “do mesmo tempo que”. Trata-se, portanto, de um termo que exprime uma relação. Não tem sentido usar essa palavra a menos que estabeleça uma relação entre dois termos ou relata. Quando digo “Leonardo foi contemporâneo de Michelangelo”, os dois relata estão explicitados. Quando digo apenas “Leonardo foi contemporâneo”, essa proposição está incompleta. Ela não consegue dizer nada. Quando digo, porém, “Leonardo é contemporâneo”, supõe-se implícito que o segundo relatum seja eu mesmo. Qualquer outra suposição seria totalmente arbitrária.

Não há nada de estranho nisso. É exatamente como com a expressão “longe”. Eu posso dizer: “Pequim fica longe de São Paulo”. Se eu disser apenas “Pequim fica longe”, quero dizer que Pequim fica longe de mim, isto é, de onde eu me encontro.

Abraço

WILSON LUQUES COSTA disse...

Prezado Antonio Cicero,

Antes de tudo, grato pelo retorno. Mas vejamos: se contemporâneo = do mesmo tempo que eu -- isso não nos impediria de escrever x é do mesmo tempo que eu de y -- nesse sentido, podendo ocoorrer um tipo de atrelamento às temporalidades entre ´x´ ´eu´ y --permitindo-nos supor uma linha de contemporaneidade que não se romperia.
Mais uma vez o meu muito obrigado

Antonio Cicero disse...

Wilson,
Pelo que entendo, o que você está dizendo é simplesmente que a relação de contemporaneidade é transitiva. É verdade, Se X é contemporâneo de Y e Y é contemporâneo de mim, então X é contemporâneo de mim: o que é verdade.

Abraço

Marcello Jardim disse...

Prezado Cícero, mas de onde vem que X ou Y tornam-se contemporâneos de mim?Porque há uma experiência pessoal de tempo que não seja a do tempo medido. O agora é o que pode um relógio?Sou antes contemporâneo de minha memória, na qual há um alfabeto cuja contemporaneidade não é da mesma espécie daquela que se pode aferir no tempo de um calendário.Desde que, de toda maneira, há uma experiência que torna possível o que seja tempo (ou o contrário, não importa), sou levado a considerar que ser contemporâneo é uma possibilidade capaz de nos colocar diante da enigmática percepção do quanto permanece a nós interditada a palavra para o que seja tempo...para o tempo de sermos...
Abraço.

wilson luques costa disse...

Prezado Antonio Cicero,

Permita-me mais uma abordagem:
´Antonio Cicero disse...
Wilson,
Pelo que entendo, o que você está dizendo é simplesmente que a relação de contemporaneidade é transitiva. É verdade, Se X é contemporâneo de Y e Y é contemporâneo de mim, então X é contemporâneo de mim: o que é verdade.

Abraço

5 de Junho de 2009 20:20´


--- Quando você faz a argumentação acima, fica dúbio se é verdade o que digo, ou se é verdade, se penso dessa maneira, que o seu pensamento é verdadeiro -- sim, penso que nesse sentido o eu fica atrelado e que nesse sentido a ideia de contemporaneidade torna-se universal -- por exemplo: Sócrates é contemporâneo de Platão ou Sócrates é do mesmo tempo que eu de Platão. A saber, o Eu superestrutura a contemporaneidade - eese é um tipo de leitura e interpretação que se poderia fazer... Há muito mais coisas que penso até quando estou dormindo... é pena que não anoto tudo... Mas é um questionamento que por ora me ocorre--.
Grato
wilson

wilson luques costa disse...

Adendo: Enquanto eu, existe contemporaneidade. Ou seja, quando aludo ou nomeio qualquer contemporaneidade,enquanto eu, a contemporaneidade está em função ou em relação ao eu. Quando digo que Shakerspeare é contemporâneo de Bacon, não seria a temporalidade de ambos que os faria contemporãneo, mas sim a minha superestruturação.
grato.
wilson

Anônimo disse...

Caro Cícero, sem querer fazer ironia, mas fazando com bom humor, como ficou chato ser contemporâneo, agora serei extemporâneo.
Abraço

Anônimo disse...

Prezado Cícero,

Recentemente ofereci a uma universidade um projeto de traduções de "Clássicos da Ciência Ocidental". O primeiro dos livros a serem traduzidos seria os "Elementos" de Euclides, cuja última edição brasileira é da década de 40.

Bom, você pode imaginar no que deu: em nada.

Saudações, Renato.

Anônimo disse...

Não sei como anda essa situação do 'up to date' em outros departamentos, mas os de Comunicação adoram as modas. Por exemplo, 'agenciamentos', 'dispositivos', 'não sei o quê lá maquínico', enfim, tudo isso é usado como ou substituindo um 'ou seja', como uma vírgula, como um ponto final etc. E usa-se nas mais variadas situações. Então, é aquela história, quando serve pra tudo, na verdade, não serve pra nada. No final das contas, pior que o filósofo truncado e obscuro é o uso que fazem dele.

Gustavo disse...

É importante lembrar que o próprio Deleuze, mesmo tendo um estilo ácido e quiçá exagerado às vezes, é um ávido leitor da modernidade, donde pôde fazer bom proveito de Leibniz, Spinoza, Hume... E, ademais, para que se possa fazer qualquer crítica descente, é extremamente necessário o conhecimento do que se vai criticar: o anticartesianismo deleuziano e até seu antiplatonismo (ainda que influenciado por Nietzsche) devem ter lhe rendido longas horas de leitura de Descartes e Platão. O que Deleuze ressalta - talvez inocentemente, por não saber o que seria a figura do jovem pós-moderno -, é o caráter edipiano da história da filosofia e suas consequências epistemológicas. Ainda assim, entendo perfeitamente quando diz das frases soltas de Nietzsche; para isso, transcrevo a seguir uma pequena passagem de outro nietzschiano, Cioran, autor de Breviário de Decomposição:

"Quando se é jovem, busca-se heróis: eu tive os meus: Heinrich Von Kleist, Karoline Von Gunderode, Gérard de Nerval, Otto Wininger... Embriagado de seu suicídio, tinha a certeza de que só eles haviam ido até o final [...]"

Antonio Cicero disse...

Gustavo,

a observação mais perspicaz que Cioran fez sobre Nietzsche encontra-se aqui: http://antoniocicero.blogspot.com.br/2008/12/cioran-sobre-nietzsche.html.

Abraço