30.11.08

Fernando Pessoa / Alberto Caeiro: "Há metafísica bastante em não pensar em nada"

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Há metafísica bastante em não pensar em nada. (s.d.)

V

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do Mundo?
Sei lá o que penso do Mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o Sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o Sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do Sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

«Constituição íntima das coisas»...
«Sentido íntimo do Universo»...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das coisas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.



De PESSOA, Fernando. "Ficções do interlúdio: Poemas completos de A. Caeiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

7 comentários:

ADRIANO NUNES disse...

AMADO MESTRE,


VISÍVEL DEUS.
PESSOA AMÁVEL.
NOITE DE SOL.
POEMA CLARO.
AMIGO AMADO.
SONHO VISÍVEL.
QUE PODE SER
DEUS ALIÁS?
DEMAIS TALVEZ
AO PENSAMENTO.
SÓ O CORAÇÃO
É QUE BEM SABE
O QUE SE PASSA
ALÉM DE DENTRO!



OBS.: PESSOA TRANSCENDE TUDO QUE SOMOS( ou que pensamos ser... nunca saberemos se podemos algo ser!). O VERBO SER EM SI COM TODAS AS SUAS PERSPECTIVAS IMPOSSÍVEIS, TODAS AS SUAS CORES INVÍSEIS E MAIS. O RESGATE DE DEUS DE TUDO QUE VEM TER NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DE - NÃO-DEUS/DEUS-ADÃO E EVA - COMPROMETE A PRÓPRIA EXISTÊNCIA DO UNIVERSO. FERNANDO MUDA A ROTAÇÃO DA CRENÇA E PASSAMOS A CRER QUE SOMOS DESCRENTE, AINDA QUE TUDO PAREÇA CLARO ENIGMA... PARA SABER QUE SEMPRE SE DISSE DA PLANTA QUE UMA PLANTA É UMA PLANTA E QUE SE DISSE DA PEDRA QUE UMA PEDRA É UMA PEDRA... E NÃO OUSAMOS NADA DIZER!"Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fím?"
BUSCO INCESSANTEMENTE ENCONTRAR MEUS "EUS" DISPERSOS E PERCO-ME NA TENTATIVA VÃ DE NÃO SEQUER TÊ-LOS CONCEBIDOS. "Sei que nunca terei o que procuro
E que nem sei buscar o que desejo,
Mas busco, insciente, no silêncio escuro
E pasmo do que sei que não almejo."
PESSOA.PESSOA.PESSOA.A PESSOA QUE SOU NA PESSOA QUE BUSCA QUEM ME SINTO. "GOSTO DO PESSOA NA PESSOA"... TALVEZ MAIS QUE ISSO, TALVEZ MAIS EM MIM DO QUE VIOLENTAMENTE ME PENSO. "Tudo o que faço ou medito
Fica sempre pela metade,
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.
Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lucida e rica,
E eu sou um mar de sargaço ---

Um mar onde boiam lentos
Fragmentos de um mar de além...
Vontades ou pensamentos?
Nao o sei e sei-o bem."... CONTINUAR, SEGUIR, IR ALÉM DO QUE SE PODE E DEPOIS REVER O QUE PASSOU PARA, ENFIM, SABER QUE: "A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus."


ABRAÇO FORTE!
ADRIANO NUNES, MACEIÓ/AL.

ADRIANO NUNES disse...

AMADO MESTRE,

PARA O MOMENTO:


"Retrato Em Branco e Preto"
(Chico Buarque/Tom Jobim)


Já conheço os passos dessa estrada
Sei que não vai dar em nada
Seus segredos sei de cor
Já conheço as pedras do caminho
E sei também que ali sozinho
Eu vou ficar, tanto pior
O que é que eu posso contra o encanto
Desse amor que eu nego tanto
Evito tanto
E que no entanto
Volta sempre a enfeitiçar
Com seus mesmos tristes velhos fatos
Que num álbum de retrato
Eu teimo em colecionar

Lá vou eu de novo como um tolo
Procurar o desconsolo
Que cansei de conhecer
Novos dias tristes, noites claras
Versos, cartas, minha cara
Ainda volto a lhe escrever
Pra dizer que isso é pecado
Eu trago o peito tão marcado
De lembranças do passado
E você sabe a razão
Vou colecionar mais um soneto
Outro retrato em branco e preto
A maltratar meu coração.


ABRAÇO FORTE!
ADRIANO NUNES, MACEIÓ/AL.

Arthur Nogueira disse...

Querido Cicero,

esse poema é sublime. Daqueles para se levar a vida toda lendo. Continue inspirado por aí.

Um beijo,

A.

Anônimo disse...

Há pouco tempo procurei saber da influência de Nietzsche na poesia de Pessoa, mas não encontrei nada (nem continuei a busca). Mas há muito do "profeta sem morada" na poesia de Pessoa. Seria possível postar textos de Nietzsche que guardam grande semelhança com esse poema de Caeiro, por exemplo, e reconhecer em ambos (textos e poema) um ataque a Kant e à sua "coisa em si". Mais. Seria possível entender o presente poema como uma negação de todo o IDEAL, de toda METAFÍSICA, enfim, de toda idéia que divida o mundo em duas realidades distintas, quais sejam, essência e aparência.

Grato pelo espaço.

@eta.

Anônimo disse...

ô pessoa danada este homem, não (rs)?

MARAVILHA, sempre, vir aqui!

beijo, meu querido e sempre benvindo!

sappho disse...

Uma das minhas partes favoritas de sua obra poética.

Outro vídeo pra vc, dessa vez uma peça musical sobre a revisão da constituição passada na Califórnia:
http://atheistmedia.blogspot.com/2008/12/prop-8-musical.html

Paulinho disse...

simplesmente há metafísica demais! tem metafísica sobrando!hahaha
que sabe eu das cousas?!!
abraços!