13.1.14

Demétrio Magnoli: "O arco, a flecha e o avião"




No dia 11 de janeiro, a Folha de São Paulo publicou o seguinte, excelente artigo de Demétrio Magnoli:



O arco, a flecha e o avião

Dois índios nus, pintados de urucum, arcos retesados, apontam suas flechas para o avião que os fotografava. A força magnética daquela imagem, divulgada em 2008, deriva de suas ressonâncias culturais, que tocam nos nervos do binômio natureza/civilização, o núcleo pulsante da narrativa romântica ocidental. Eis a Amazônia, sussurra uma voz dentro de nós. A voz está errada. Aqueles índios isolados existem, mas a Amazônia é outra coisa: o fruto do encontro entre ondas migratórias recentes e indígenas deslocados por quatro séculos de colonização. O conflito étnico em Humaitá, ponta emersa de tensões explosivas e difusas, decorre da decisão política de rejeitar a história em nome do mito.

Esqueça a lenda do paraíso isolado: a economia-mundo englobou a Amazônia no sistema de intercâmbios globais desde que Manaus tornou-se um porto de navios oceânicos, no anoitecer do século 19. Esqueça a lenda dos "povos da floresta": a Amazônia foi ocupada por pioneiros do Nordeste e do Centro-Sul em dois ciclos sucessivos, entre 1880 e 1920 e de 1942 em diante. Esqueça a lenda das tradições imemoriais: as festas folclóricas da região, surgidas décadas atrás, refletem as extensas mestiçagens entre os colonos e deles com os povos autóctones. A pureza está na foto, o vislumbre de uma relíquia, um instantâneo vestigial. Os Tenharim, conta-nos o repórter Fabiano Maisonnave, são evangélicos, moram em casas de madeira com eletricidade, deslocam-se em motos, torcem pelo Flamengo e pelo Corinthians. Por que traçar uma fronteira étnica intransponível separando-os dos demais habitantes de Humaitá?

Quem é índio? De acordo com o Retrato Molecular do Brasil, de Sérgio D. Pena, 54% dos "brancos" da Região Norte apresentam linhagens maternas ameríndias. O Censo 2010 registrou taxas espantosas de crescimento anual da população indígena do Acre (7,1%), de Roraima (5,8%) e do Amazonas (4,1%), interpretadas pelo IBGE como "etnogênese" ou "reetinização": o resultado de mudanças em massa na opção de autodeclaração étnica estimuladas pelas políticas raciais. Na Amazônia, redefinir-se como indígena tornou-se uma estratégia destinada a obter segurança fundiária, cotas preferenciais e privilégios extraordinários (como o de cobrar pedágios em rodovias federais). Os caboclos amazônicos, que são meio-índios, reagem declarando-se inimigos dos índios. Aí estão as raízes políticas da "guerra de Humaitá".

Quem é índio? Telma Tenharim, mulher do cacique cuja morte acendeu a faísca das violências em Humaitá, "uma mulher miúda com poucos traços indígenas", é filha do primeiro branco que teria entrado em contato com o grupo, nos anos 1940. Segundo a clássica definição de Darcy Ribeiro, índio é o indivíduo "reconhecido como membro por uma comunidade pré-colombiana que se identifica etnicamente diversa da nacional" e, ainda, "considerado indígena pela população brasileira com quem está em contato". A política indígena oficial, capturada por ONGs racialistas e entidades missionárias, é uma pedagogia de "reetinização" que se nutre das carências sociais e fabrica o conflito étnico.

"Em nenhum momento a gente falou que meu pai foi assassinado. A gente viu que ele caiu da moto." As palavras de Gilvan, filho do cacique morto, confirmam as conclusões da perícia policial, mas contrastam com o texto do coordenador regional da Funai, Ivã Bocchini, postado no blog do órgão, que sugeria a hipótese de assassinato. O cacique "era como um chefe de Estado", escreveu Bocchini, exigindo que "seja apontada a verdadeira causa da morte" e celebrando "a luta do povo Tenharim".

Um "chefe de Estado" com o arco retesado e a flecha apontada para o avião dos intrusos "brancos": nessa imagem falsa, construída pelas políticas estatais de raça, encontram-se as sementes do ódio entre caboclos-índios e índios-caboclos.


                                                                                                                       Demétrio Magnoli

2 comentários:

Nobile José disse...

1.excelente mesmo!
em tempos de rolezinho, ouço o eco de sua entrevista à folha, em 2007, apontado para uma onda reacionária no país, seja pela direita, seja pela esquerda.
2. relendo o mundo desde o fim, começo a entendê-lo melhor. nelson rodrigues tinha razão ao dizer que a arte da leitura está na releitura.
3. por falar em nelson, eis ali um reacionário honesto, ou, um quase não-reacionário. lendo o óbvio ululante, as críticas q ele faz às esquerdas ainda causam pânico em meus contemporâneos.
4. sim, a liberdade é mais importante que o pão.
5. tô com os mano do rolé e com a democracia formal, mas me acusam de burguês - pobre esquerda.
6. mentando sobre racionalismo x irracionalismo. venho percebendo um problema no tempo. a racionalidade exige uma separação inclusive temporal. como vivemos no presente e, vá lá, no calor dos acontecimentos, na prática nossa irrazão atua mais q nossa razão.
7. isso não significa que a irrazão deva prevalecer. pelo contrário - é mais um motivo para sermos racionais.
8. seu ensaio sobre o niilismo já ficou pronto? onde acho?
9. eis o que eu queria citar: a liberdade é mais importante que o pão.
10. abrçs.

Antonio Cicero disse...

Caro Nobile José,

obrigado pelo comentário. Estou revendo todos os meus ensaios dos últimos anos, inclusive o Niilismo, para publicar num livro, este ano. Quando sentir que ele está mesmo pronto, aviso-lhe, para lhe enviar.

Abraço