9.6.12

Vladimir Safatle: "Um livro impossível"




O seguinte -- excelente -- artigo de Vladimir Safatle foi publicado na Folha de São Paulo, no dia 5 de julho.



Um livro impossível


"Ensaios sobre Cultura", de Celso Furtado (Contraponto, 198 páginas), é um livro impossível de ser escrito. Ele reúne artigos e intervenções do economista sobre as relações entre cultura e economia, assim como textos de sua autoria à ocasião de sua rápida passagem pelo Ministério da Cultura, entre 1986 e 1988.

Tal livro é impossível porque, atualmente, não é mais pensável um economista falando com profundidade sobre processos de formação cultural e sobre as relações necessárias entre desenvolvimento e criatividade.

Afundada em uma autoilusão que lhe leva a se ver como uma "ciência matemática", a economia ensinada nas universidades em nada mais se assemelha ao impressionante cruzamento entre história, teoria social e sensibilidade para os processos culturais, que fizeram a marca da experiência intelectual brasileira de Celso Furtado.

Acreditando que sua cientificidade é paga necessariamente com seu afastamento do campo das ciências humanas, a economia de hoje deleita-se com modelos de "ação racional" que nada têm a ver com o modo com que ações sociais realmente se constituem por meio da mobilização de crenças, valores e aspirações.

Dessa forma, economista algum é mais capaz de escrever algo como: "Falar de desenvolvimento como reencontro com o gênio criativo e como realização das potencialidades humanas pode parecer simples fuga na utopia. Mas que é a utopia senão o fruto da percepção de dimensões secretas da realidade, um afloramento das energias contidas que antecipa a ampliação do horizonte de potencialidades aberto ao homem? Esta ação de vanguarda constitui uma das ações mais nobres a serem cumpridas pelos intelectuais nas épocas de crise".

Mas, não contente em simplesmente escrever sobre as relações entre desenvolvimento e criatividade, Celso Furtado quis implementá-las. Sua passagem pelo Ministério da Cultura foi um dos momentos mais ousados de criação de políticas culturais no Brasil.

Por meio deste livro, descobrimos quão avançado era seu projeto original de Lei de Incentivo à Cultura. Celso Furtado sugeria que não apenas as empresas pudessem se beneficiar de isenção fiscal ao financiar atividades culturais. Também as pessoas físicas poderiam abater parte de seu Imposto de Renda ao financiar projetos que elas escolheriam a partir de uma lista fornecida pelo MinC. Dificilmente poderíamos pensar em ideia mais bem acabada de democratização da produção cultural e valorização dos impostos.

Ações ousadas como essa só são possíveis para pessoas capazes de aliar conhecimento técnico e sensibilidade cultural. Pessoas impossíveis, como Celso Furtado.

8 comentários:

Aetano disse...

Grato pelo texto, Cicero.

A propósito de Safatle, em seu último artigo, Caetano Veloso diz:

"Lendo Safatle, me dei conta do quão velho sou. Atribuo à juventude do autor o destemor da volta ao tom opressivo da esquerda 'indiferente' e 'universalista' de minha juventude. Questões de raça, sexo, nacionalidade e estética eram inexistentes (na verdade, estorvos no caminho da Revolução); o 'socialismo branco' da Escandinávia (que, no entanto, ele hoje usa como exemplo positivo) também. O Chile de Allende, como o de Pinochet, convivia, mudo, com a criminalização da homossexualidade (que lá só deixou de ser crime em 1999) e com a interdição do divórcio (só admitido em 2004)."

Caetano está, no caso, comentando o livro "A esquerda que não teme dizer seu nome", cujo autor é Vladimir Safatle, e conclui - ironicamente - dizendo que lera alguns artigos de "Diário da corte" - coletâneas de textos de Paulo Francis - "para contrastá-los com a cabeça de concreto armado do Vladimir".

Esse Caetano é um farol!

Abcs

Aetano

Mara disse...

Caetano é um farol como o de Alexandria, que iluminava a Antiguidade. As questões apontadas pelo artista (sim, um grande artista, com a grandeza e as limitações de um artista) só não existiam na sua cabeça, assim como as questões objetivas e damandas materiais da esquerda seriam um devaneio da juventude corajosa de esquerda dos dias de hoje,já que viveríamos em uma sociedade pós-materialista, com demandas pós-materiais. Um passeio por qualquer cidade brasileira nos mostra o contrário.

Nobile José disse...

cicero,

acabei de reler "o mundo desde o fim". tem muita gente "comendo mosca" nas universidades do país.
tenho conversado com alguns "doutores" em ciências sociais que estão mais perdidos que cego em tiroteio, qdo o assunto é modernidade.
no direito, então, é literalemnte um deus-nos-acuda.

aff!

abrçs.

Aetano disse...

Cicero,

Por obediência ao princípio do contraditório, deixo aqui o texto de Safatle, publicado hoje, na Folha, e que responde a Caetano:

VLADIMIR SAFATLE

Indiferença

No último domingo, Caetano Veloso escreveu uma crítica em sua coluna de "O Globo" a respeito de meu livro: "A Esquerda que Não Teme Dizer seu Nome" (Três Estrelas, 88 págs.). Sua crítica me fez perceber que talvez não tenha me expressado com suficiente clareza a respeito de posições que considero fundamentais.

Por isso, peço a permissão dos leitores para falar na primeira pessoa e voltar a certos pontos que escrevi.

O livro visa defender duas posições maiores para a esquerda: o igualitarismo e a centralidade da soberania popular. Caetano critica minha maneira de defender o igualitarismo, vendo nisso um arcaísmo. Para ele, tal igualitarismo não seria muito diferente do tom opressivo da esquerda "indiferente" e "universalista" de sua juventude. Esquerda para quem questões de raça, sexo, nacionalidade e estética eram diversionismo que nos desviariam da revolução.

Caetano lembra, com razão, de como Salvador Allende não mexeu em leis que criminalizavam o homossexualismo e impediam o divórcio.

Longe de mim querer diminuir a importância dos apelos de modernização social embutidos em demandas de reconhecimento da diversidade de hábitos e culturas. Estas são questões maiores, por tocarem diretamente a vida dos indivíduos em sua singularidade. Não se trata de voltar aquém das políticas das diferenças e de defesa das minorias. Trata-se de tentar ir além.

Quando afirmo que devemos ser indiferentes à diferença é por defender que a vida social deve alcançar um estágio no qual a diferença do outro me é indiferente. Ou seja, a diversidade social, com sua plasticidade mutante, deve ser acolhida em uma calma indiferença. Que para alcançar tal estágio devamos passar por processos de abertura da vida social à multiplicidade, como as leis de discriminação positiva. Isso não muda o fato de não querermos uma sociedade onde os sujeitos se atomizem em identidades estanques e defensivas. Queremos uma política pós-identitária, radicalmente aberta à alteridade.

Um exemplo: discute-se hoje o direito (a meu ver, indiscutível) de homossexuais se casarem. Mas por que não ir além e afirmar que o ordenamento jurídico deve ser indiferente ao problema do casamento?

"Indiferença" significa, aqui, não querer legislar sobre as diferenças. Ou seja, por que não simplesmente abolir as leis que procuram legislar sobre a forma do casamento e das famílias, permitindo que os arranjos afetivos singulares entre sujeitos autônomos sejam reconhecidos? Não creio que isso seja arcaísmo, mas o verdadeiro universalismo.

Por fim, Caetano diz que tenho "cabeça de concreto armado". Gosto da ideia. Niemeyer nos mostrou como se pode fazer curvas e formas inesperadas com o concreto armado.

***

Aetano disse...

De fato, "O mundo desde o fim" é uma obra extraordinária! Mas, como vc disse, Nóbile, parece ter nascido póstuma.

Nobile José disse...

Prezado Aetano,

Não entendi seu comentário. Eu não disse que tal obra “parece ter nascido póstuma". Ademais, não consegui decifrar a que morte você se refere. Obviamente se trata de algum sentido figurado que de fato escapou à minha compreensão.

Tendo em vista a presença da conjunção “mas”, creio se tratar de uma crítica na qual você deixa claro não concordar com o teor do livro. Será? Enfim, se for isso, talvez a morte a que você se refere seja justamente o conteúdo do livro...

Como de fato não entendi – veja, não estou sendo irônico – vou explicitar um pouco o que eu de fato eu quis dizer com o meu comentário: que as luzes da modernidade ainda não conseguiram alcançar toda essa "energia escura" do período pré-apócrise; e que isso se dá tanto por ignorância (na maior parte dos casos, inclusive por doutores!), quanto por um enfrentamento direto, ou seja, quando uma pessoa de fato sabe o que é modernidade, e após, a critica. Mas como ao assim proceder, tal crítico acaba por reafirmá-la, não vejo nenhum descompasso temporal em tal conceito, e dessa forma, não vejo como tal obra, que prova a existência da apócrise, possa ter nascido póstuma.

A meu ver, o que de fato está, se não morto, fadado à decrepitude, são essas tentações do engodo pré-moderno, disseminados amplamente em nossas instituições: do supremo tribunal ao guarda municipal, passando pelas universidades de "ponta".

E o que mais me impressionou nessa novidade trazida pela obra é como pode um imbecil, às vezes, ter razão. Porque a razão descola do sujeito que enuncia o discurso – e isso me faz, às vezes, dar razão, por exemplo, a uma frase (e apenas a uma ou duas frases, opa!) perdida num longo texto de ... Reinaldo Azevedo. ou de um Fidel Castro, ou de um Roberto Campos - até de João Pereira Coutinho e Luiz Felipe Pondé recolho fragmentos! (Cruzes!!!)

Mas se tiver sido outra intenção a sua ao atribuir o que eu não disse, ou seja, para que eu dissesse tal frase, deveria haver uma explicação anterior e uma troca de conjunção; vejamos: 1) para a obra ser póstuma ela o seria em relação à morte da pré-modernidade; 2) dessa forma, trocar-se-ia a conjunção "mas" pela conjunção "e". Aí, tudo bem. ;)

Abrçs.

Aetano disse...

Rsrsrsrs

Caro Nóbile, estou acompanhando o blog a partir de um celular, razão por que serei breve. Quando eu disse que a obra parecia ter nascido póstuma, na verdade estava remetendo a uma frase de Nietzsche, para quem alguns filósofos nascem póstumos (cito de cabeça). A razão pela qual Nietzche dizia isso é a mesma que motivou o meu comentário: como pode uma obra como "O mundo desde o fim" não ter a repercussão que ela merece? Isso ficará para a posteridade?
O fato é que ainda pensamos como se Cicero não tivesse feito tal intervenção. Mais uma vez citando Nietzsche, parece que Cicero, cuidando da modernidade, é na verdade um extemporâneo.
Agradeço a oportunidade de esclarecer.

Abcs

Nobile José disse...

Grande Aetano,

Agora entendi...

Concordo com vc. O fato de ainda "pensarem" (não digo "pensamos", pois desse pensamento pré-moderno pelo menos tento me excluir) como se Cicero ainda não tivesse feito tal intervenção é que é ab-surdo.

Mas o voto do Min. Marco Aurélio, do STF, sobre os anencéfalos, me causou certo alívio. E a vitória da extrema direita na Grécia, certa apreensão.

Enfim, "O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente." CDA

Abrçs.