20.10.08

Cecília Meireles: "Elegia a uma pequena borboleta"

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Elegia a uma pequena borboleta


Como chegavas do casulo,
— inacabada seda viva —
tuas antenas — fios soltos
da trama de que eras tecida,
e teus olhos, dois grãos da noite
de onde o teu mistério surgia,

como caíste sobre o mundo
inábil, na manhã tão clara,
sem mãe, sem guia, sem conselho,
e rolavas por uma escada
como papel, penugem, poeira,
com mais sonho e silêncio que asas,

minha mão tosca te agarrou
com uma dura, inocente culpa,
e é cinza de lua teu corpo,
meus dedos, sua sepultura.
Já desfeita e ainda palpitante,
expiras sem noção nenhuma.

Ó bordado do véu do dia,
transparente anêmona aérea!
não leves meu rosto contigo:
leva o pranto que te celebra,
no olho precário em que te acabas,
meu remorso ajoelhado leva!

Choro a tua forma violada,
miraculosa, alva, divina,
criatura de pólen, de aragem,
diáfana pétala da vida!
Choro ter pesado em teu corpo
que no estame não pesaria.

Choro esta humana insuficiência:
— a confusão dos nossos olhos
— o selvagem peso do gesto,
— cegueira — ignorância — remotos
instintos súbitos — violências
que o sonho e a graça prostram mortos

Pudesse a etéreos paraísos
ascender teu leve fantasma,
e meu coração penitente
ser a rosa desabrochada
para servir-te mel e aroma,
por toda a eternidade escrava!

E as lágrimas que por ti choro
fossem o orvalho desses campos,
— os espelhos que refletissem
— vôo e silêncio — os teus encantos,
com a ternura humilde e o remorso
dos meus desacertos humanos!




De: MEIRELES, Cecília. “Retrato natural”. In: Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967.

9 comentários:

Unknown disse...

Antonio, sabes de sua alma de cicero?
Eu que por vezes fui "embalada" por sua palavras em folhas de sons.
Eu que canto por mim e por meu canto, tenho em você grilos afins...
Esta nesse dia minha vontade em auxilio do verbo escrito...(salve a tecnologia e suas crias!)
Tenho o desejo de cantar-te no mais puro desse desejo...
Faço dessas palavras a linha que pode me ligar a você.
salve suas mãos que como anzois pesca no ar lindas palavras em forma de peixe...

beijo em sua fase...

Claudia Romano

claudiaromanocantora@gmail.com

Anônimo disse...

Prezado A. Cícero,
Impressionante. O poema flui com tanta delicadeza e leveza, que parece a própria borboleta ressuscitada.
JR.

ADRIANO NUNES disse...

CICERO,


QUE SENSIBILIDADE POÉTICA DA CECÍLIA! COMPARAR A BORBOLETA SEM ASAS À ANÊMONA DO MAR! E COMO A COMPARAÇÃO PROCEDE! BELÍSSIMO POEMA! UMA OBRA-PRIMA! VOCÊ CADA VEZ MAIS ACERTANDO EM CHEIO AS NOSSAS ALMAS E COMO, CECÍLIA, ARRANCANDO NOSSAS ASAS E, AINDA ASSIM, COLOCANDO-NOS EM PLENO VÔO ETÉREO E IMPENSÁVEL! PARABÉNS!


UM VÔO-ABRAÇO!
ADRIANO NUNES, MACEIÓ/AL.


p.s: OBRIGADO PELA AULA! FANTÁSTICA! POR ISSO TE AMO TANTO, MEU POETA!

Anônimo disse...

Caro Antônio Cicero,
Sempre que passeio por aqui, tenho a sensação de resvalar a justa medida da razão ou da beleza.
Longa vida!
Abraços
Mariano.

Lupo Lobato disse...

Liga não, Cecília, as borboletas são eternas.

ADRIANO NUNES disse...

CICERO,


SALVE CECÍLIA MEIRELES! UM BELÍSSIMO POEMA DELA QUE ADORO MUITO:


EPIGRAMA N 5:


GOSTO DA GOTA D'ÁGUA QUE SE EQUILIBRA
NA FOLHA RASA, TREMENDO AO VENTO.


TODO O UNIVERSO, NO OCEANO DO AR, SECRETO VIBRA:
E ELA RESISTE, NO ISOLAMENTO.


SEU CRISTAL SIMPLES REPRIME A FORMA, NO INSTANTE INCERTO:
PRONTO A CAIR, PRONTO A FICAR - LÍMPIDO E EXATO.


E A FOLHA É UM PEQUENO DESERTO
PARA A IMENSIDADE DO ATO.





IN: VIAGEM VAGA MÚSICA;EDITORA NOVA FRONTEIRA;1982;7 IMPRESSÃO; PÁGINA 54.



UM FORTE ABRAÇO!
ADRIANO NUNES, MACEIÓ/AL.

Lupo Lobato disse...

POR ENQUANTO, DEVORO APENAS

Por enquanto, devoro apenas,
com paciente ritmo,
estas folhagens do mundo.

Por enquanto, sou este corpo necessário
que se enruga à luz do dia, à leveza do ar.
Corpo não escolhido,
aceito, de paciente ritmo.

Deixai-me depois dormir meu tempo indispensável
enrolada nestes fios que humilde tece
um paciente ritmo,
deixai-me descansar nesta experiência de tela frágil
onde prolongo a aprendizagem
de cada instante na escola do paciente ritmo.
Estarei ouvindo os comandos
de infinitos professores sem voz.

Deixai-me elaborar as asas claras
de paciente ritmo,
para a alegria de não ter mais peso,
de desprender-me do obrigatório alimento,
de ter merecido a etérea liberdade.

Deixai-me ir, enfim, sobre ar e luz,
com a substância apenas das cores,
no ritmo paciente
que me vai desfazer em cinzas de seda,
num pequeno arco-íris de pó.

Mas tudo isto está sendo inventado agora,
por este corpo melancólico,
de paciente ritmo,
que resignado devora
(na verdade inapetente)
as folhagens do mundo.

Cecília Meireles, do livro Estudante Empírico.

Anônimo disse...

Qual a estrutura formal, linguagem, metrica, organização, sonoridade e tema?

Anônimo disse...

Meditar sobre a poesia de Cecília Meireles é, inevitavelmente, andar sobre nuvem, bruma, vento..., entre linhas milimétricas de perfeição e beleza, num mundo mágico onde a emoção é pouca para o infinito de sua imaginação, alcance poético, visão da alma...
A poesia "Elegia a uma pequena borboleta" é uma dessas preciosidades imune ao tempo, veio para acrescentar.
A vida, assim, é o embrenhamento do irascível, do impactante, como quem caminha lado a lado com as flores, a brisa, o orvalho...
Imortalidade.