30.7.21

Pedro Tamen: "Como se na boca da trompete"

 



Faleceu ontem o grande poeta português Pedro Tamen. Eu já admirava muito sua poesia quando o conheci, em 2006, na ocasião em que ambos, a convite do Centro Nacional de Cultura de Portugal, participamos de uma missão de poetas lusófonos a Macau. Desde então ficamos amigos, e lamento profundamente a sua morte.Eis um dos seus belos poemas:



Como se na boca da trompete

coloca-se a surdina sobre a vida

e a memória irrompe qual um vento

imitação de sons    de vozes    tiros

num escuro que nada mais já pode iluminar


Não há cheiro novo que resseja a planta

verdadeira    a genuína cor    o prato

a fumegar de uma sápida sopa inexistente

sopra-se na vida todo o ar que o tempo

nos pôs no peito em anos discorridos

e é cor de sombra agora o arco-íris





TAMEN,  Pedro. "Como se na boca da trompete". In:_____. Memória indescritível. Lisboa: Gótica, 2000. 

 



28.7.21

Daniel Jonas: "Composição a negro cinzento"

 



Composição a negro cinzento



Aquela além

recolhida, bravia


defenestrando 

o olhar, a razão, a fé,



pode ser a mãe de Whistler;

a minha não é.

*





JONAS,  Daniel. "Composição a negro cinzento". In:_____. "Bisonte". In:_____. Os fantasmas inquilinos.:Poemas escolhidos. Seleção por Mariano Marovatto. São Paulo: Todavia, 2019.

26.7.21

Manuel Bandeira: "A Antonio Nobre"

 



A Antônio Nobre



Tu que penaste tanto e em cujo canto

Há a ingenuidade santa do menino;

Que amaste os choupos, o dobrar do sino,

E cujo pranto faz correr o pranto:


Com que magoado olhar, magoado espanto

Revejo em teu destino o meu destino!

Essa dor de tossir bebendo o ar fino,

A esmorecer e desejando tanto...


Mas tu dormiste em paz como as crianças.

Sorriu a Glória às tuas esperanças

E beijou-te na boca... O lindo som!


Quem me dará o beijo que cobiço?

Foste conde aos vinte anos... Eu, nem isso...

Eu, não terei a Glória... nem fui bom.




BANDEIRA, Manuel. "A Antônio Nobre". In: _____. "A cinza das horas". In:_____. Estrela da vida inteira -- poesias reunidas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.


23.7.21

Georg Trakl: "Gesang einer gefangenen Amsel" / "Canto dum melro preso": trad. de Paulo Quintela

 



Gesang einer gefangenen Amsel

                           Für Ludwig von Ficker

 

Dunkler Odem im grünen Gezweig.

Blaue Blümchen umschweben das Antlitz

Des Einsamen, den goldenen Schritt

Ersterbend unter dem Ölbaum.

Aufflattert mit trunknem Flügel die Nacht.

So leise blutet Demut,

Tau, der langsam tropft vom blühenden Dorn.

Strahlender Arme Erbarmen

Umfängt ein brechendes Herz.




Canto dum melro preso

                              A Ludwig von Ficker


Hálito escuro na verde ramaria.

Florinhas azuis pairam em volta da face

Do solitário, fazendo morrer o passo

Dourado sob a oliveira.

Levanta voo a noite em asa ébria.

Tão baixo sangra humildade,

Orvalho, que manso goteja do espinheiro em flor.

Compaixão de braços radiosos

Abraça um coração que quebra.







TRAKL, Georg. "Gesang einer gefangenen Amsel" / "Canto dum melro preso". In:_____. Poemas.
Antologia e versão portuguesa de Paulo Quintela. Porto: M. J. Costa & Ca., Ltda.

21.7.21

Antonio Cicero: "Nênia"

 



                                               NÊNIA


A morte nada foi para ele, pois enquanto vivia não havia a morte e, agora que há, ele já não vive. Não temer a morte tornava-lhe a vida mais leve e o dispensava de desejar a imortalidade em vão. Sua vida era infinita, não porque se estendesse indefinidamente no tempo mas porque, como um campo visual, não tinha limite. Tal qual outras coisas preciosas, ela não se media pela extensão mas pela intensidade. Louvemos e contemos no número dos felizes os que bem empregaram o parco tempo que a sorte lhes emprestou. Bom não é viver, mas viver bem. Ele viu a luz do dia, teve amigos, amou e floresceu. Às vezes anuviava-se o seu brilho. Às vezes era radiante. Quem pergunta quanto tempo viveu? Viveu e ilumina nossa memória.

 

 



CICERO, Antonio. "Nênia". In:_____. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002.

17.7.21

Bertolt Brecht: "Vom ertrunkenen Mädchen" / "A moça afogada"

 



A moça afogada


1

Quando ela se afogou e a boiar foi descendo 

Dos córregos para os rios mais caudalosos, 

Brilhava o céu de opala tão maravilhoso 

Qual se devesse recompensar o cadáver.

 

2

Sargaços e algas iam-na enleando,

De modo que ela aos poucos ficava com mais peso.

Frios os peixes nadavam-lhe pelas pernas,

Plantas e bichos faziam-lhe ainda mais lenta a última viagem.


3

E o céu da tarde era escuro feito fumaça

Retendo à noite o brilho das estréias sobre o horizonte.

Mas cedo alvoreceu, a fim de que também

Manhã e tarde houvesse para ela.


4

Quando seu corpo branco apodreceu nas águas, 

Aconteceu (bem devagar) que Deus foi-a esquecendo:

Primeiro o rosto, as mãos depois e por fim os cabelos.

Então ela passou a ser no rio uma carniça igual a tantas outras.




BRECHT, Bertolt. "A moça afogada". In:_____. Poemas e canções. Seleção e tradução por Geir Campos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. 




Vom ertrunkenen Mädchen


1

Als sie ertrunken war und hinunterschwamm

Von den Bächen in die größeren Flüsse

Schien der Opal des Himmels sehr wundersam

Als ob er die Leiche begütigen müsse.


2

Tang und Algen hielten sich an ihr ein

So daß sie langsam viel schwerer ward.

Kühl die Fische schwammen an ihrem Bein

Pflanzen und Tiere beschwerten noch ihre letzte Fahrt.


3

Und der Himmel ward abends dunkel wie Rauch

Und hielt nachts mit den Sternen das Licht in Schwebe.

 Aber früh ward er hell, daß es auch

Noch für sie Morgen und Abend gebe.


4

Als ihr bleicher Leib im Wasser verfaulet war

Geschah es (sehr langsam), daß Gott sie allmählich vergaß

Erst ihr Gesicht, dann die Hände und ganz zuletzt erst ihr Haar.

Dann ward sie Aas in Flüssen mit vielem Aas.





BRECHT, Bertolt. "Vom ertrunkenen Mädchen". In:_____. Die Gedichte von Bertot Brecht in einem Band. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981.


15.7.21

Luís Miguel Nava: "Na pele"

 



Na pele



O mar, venho ver-lhe a pele a rebentar

ao longo das falésias, o que sempre

me traz a exaltação desses rapazes que circulam

por Lisboa no verão.

O mar está-lhes na pele. Partilho

com eles os quartos das pensões, sentindo as ondas

a avançar entre os lençóis. Perco-me à vista

da pedra onde o mar vem largar a pele.





NAVA, Luís Miguel. "Na pele". In:_____. "Onde a nudez". In:_____. Poesia completa. 1979-1994. Org. por Gastão Cruz. Lisboa:  Publicações Dom Quixote, 2002.

11.7.21

ENTRE O MÍTICO, O FILOSÓFICO E O LITERÁRIO NO LIVRO ESTRANHA ALQUIMIA, DE ANTONIO CICERO

Ensaio de Alexandra Vieira de Almeida, Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ)



Estranha alquimia (Penalux, 2020), primeira antologia de poemas do poeta, filósofo, crítico literário e letrista carioca Antonio Cicero, consagrado e membro da Academia Brasileira de Letras, foi organizada pelo incansável poeta Diego Mendes Sousa e com colaboração do escritor Fabio de Sousa Coutinho.* A coletânea integra o “Item do Colecionador” da editora paulista e é retirada dos livros Guardar (1996), A cidade e os livros (2002) e Porventura (2012). Com novo dimensionamento do organizador e colaborador, a obra é composta por quatro partes: Baú de nuvens, Alma Caiada, Poeta é uma África e Continente.

 

Em cada seção do livro, temos como poema de abertura, o título de cada capítulo. No poema “Baú de nuvens”, somos enovelados pelas urdiduras interrogativas do poeta, com indagações e reflexões sobre a vida, mas dando um tom diferenciado e irônico ao que é originário, reconstruindo as perguntas não em respostas facilitadoras, mas a novas perguntas, criando-se, assim, um círculo com um contorno em aberto, pois o primeiro verso se apresenta com uma interrogação, da mesma forma como o último verso. Vejamos: “Para onde vou, de onde vim? Não sei se me acho ou me extravio./Ariadne não fia o seu fio./à frente, mas atrás de mim?/Não será a saída um desvio/e o caminho o único fim?” Aqui, o poema não se conclui com a palavra “fim”. Com doses interpretativas, Cicero reconta literariamente o mito pelo viés filosófico, esta estranha alquimia, que perpassa todo o seu livro, ou seja, num amálgama entre a poesia, a lenda e a Sofia, o poeta não se fia no fio da crença, mas reconstrói o mito pela chama da poesia reflexiva, que faz de Ariadne a ponte para as questões mais abissais do ser, em seu teor de labirinto intelectivo, porém estruturado pelo tecido vertiginoso do literário em seu mais alto grau.

 

Nos seus versos, somos levados para a perplexidade entre o antigo e o contemporâneo, o cosmopolitismo e o particular, numa tessitura poliglota e multilingual, onde encontramos várias línguas, vários continentes e nações. Entre o estrangeiro e o nacional, seu olhar dinâmico e interrogativo transita pelas avenidas e ruas do passado e do presente. Flertando com os monumentos do berço civilizatório ocidental, a cultura greco-romana, não deixa de lado a presença da África, palavra que dá título uma das seções da obra. Perpassando as ruínas do antigo, passeia pelas lentes do asfalto citadino. Natureza e urbe se revelam como a outra alquimia, que mistura, no atanor, belas e originais metáforas. O casamento alquímico na sua coletânea não se dá de forma harmônica, há uma ruptura e uma tensão que fazem dos elementos um enroscar de camadas plurais e desiguais, como o panejamento de uma escultura barroca, que nos conduz a movimentos ondulatórios e com diferentes tons e dobras.

 

No meio dos poemas, encontramos letras de músicas, escritas para vários cantores, como sua irmã Marina Lima e Adriana Calcanhotto, como exemplos. Assim, nós nos perguntaríamos, letras de música também não seriam poemas? E, assim, somos conduzidos para a dialética tão acirrada pelos teóricos mais rígidos, que criam uma fronteira, um abismo entre ambos. Se fosse dessa forma, Bob Dylan não teria ganho o prêmio Nobel de Literatura por suas letras musicadas. Poesia pode se revelar na música, assim como a música na poesia. Estamos falando da relação entre ritmo e o trabalho com a linguagem, algo que Cicero conhece profundamente. Nesse sentido, as artes podem ser vasos comunicantes, e, nesse sentido, é mais do que importante e notório, colocar as letras de músicas numa antologia de poemas, pois ambas trabalham com a mesma linguagem, unindo palavra e sonoridade, aspectos que são estruturados de forma primordial na sua poética. No caso de Estranha alquimia, temos poemas que foram musicados e letras de canções, numa variedade que afirma a junção entre as ideias, as imagens e os sons.

 

No poema “Inverno”, por exemplo, composta para melodia de Calcanhotto, temos a dimensão intertextual da palavra enquanto verbo potencial e germinativo, que abrange outras significações nos matizes polissêmicos do novo texto. Num dos versos, temos: “sem amarras, barco embriagado ao mar”. Como não percebermos aqui os ecos do poeta francês Rimbaud, com seu “barco bêbado”? O mesmo ocorre no seu poema “Canção da alma caiada”, poema musicado por Marina Lima, com o nome de “Alma caiada”. Aqui, novamente, encontramos a faceta do literário, pois todos os versos do texto começam por letra maiúscula, característica muito recorrente no Parnasianismo e Simbolismo, enfatizando a introdução dos versos. Em outros poemas do escritor, temos a alternância entre minúsculas e maiúsculas, dando diversidade à forma poética, não se prendendo a padrões exclusivistas. Em “Água Perrier”, como outro exemplo em que se apresenta o jogo textual e literário, entre forma e conteúdo, o poeta Antonio Cicero cria uma rica rima em que no verso anterior temos o substantivo “clichês”, que rima, no plural, com o adjetivo no singular, “blasé”, fazendo um efeito ímpar, num olhar, não ofuscado pelas sombras da dissonância, mas de uma assonância que equaciona a movência da pluralidade na unidade. A sua música não se atém à facilidade e ao óbvio, o que prepondera na atualidade, mas pela força do pensamento, a “poeticidade” mergulhada no mar turbulento da “reflexão”. Mas não deixa de unir o formal e o informal, o que está no centro e na periferia, a língua normativa à oralidade, criando um jogo dinâmico entre a estrutura padrão em “banir-se-ão”, com o semantismo do que é descentralizado: “do centro rumo a um logrador/subúrbio desse coração”, em poema musicado por Orlando Moraes.

 

No poema “Diamante”, o amor é metaforizado por um símbolo elementar, mineral. Algo do âmbito do concreto passa a ter valor existencial, o amor e sua mineralidade. Criando choques linguísticos nessa poesia, Cicero extrai das palavras mais brutas, elevando a dureza, a dor, para patamares fulgurantes e acesos pela chama prometeica dos versos, que crescem numa gradação avassaladora, fundindo as sombras e a luz: “onde é mais funda a escuridão;/e volta indecente esplendor/e loucura e tesão e dor”. O amor é, ao mesmo tempo, elementar e solar, adquirindo o paradoxo bravio dos signos linguísticos. Passa de carvão a diamante, tem que ser burilado, para que a maldade dos anos não apague as altas temperaturas da combustão erótica das origens, fundando e fundindo o fogo perpétuo de uma eternidade que pode virar pó.

 

Já no poema “O grito”, nos deparamos com a releitura do mito de Prometeu. Este personagem não está além, é o próprio eu-lírico que se espelha e se mira no espelho da linguagem, em que temos o embate entre prisão e liberdade, o mundo dos deuses e o ceticismo, a crença e a descrença. Sem seguir uma pontuação tradicional, como exemplo, no verso seguinte, em que falta uma vírgula, “e uma ponta do fígado mas digo”, esta subversão linguística serve para se discutir a problemática que existe entre necessidade e libertação, entre o mito e o logos, entre o não-ser e o ser, entre o coletivo e o individual. O poema “Sair”, de forma ainda mais radical, utiliza-se do verbo para representar algo que foge do comum, fora do tradicional, o ateísmo e o desmoronamento de tudo o que nos causa conforto e amparo: “Largar o cobertor, a cama, o/ medo, o terço, o quarto, largar/toda simbologia e religião...” Essa ruptura também é formal, desconstruindo a estrutura sistemática tanto conceitual quanto linguística, pois Cicero quebra palavras entre os versos. O que importa para este eu-lírico é toda a physis em sua dimensão natural, em que o artifício seria desmascarado pelo sol que anima a Terra.

 

No poema “Maresia’, Cicero realiza a difícil proeza de unir, alquimicamente, o conceptismo com o cultismo, num jogo de ideias e palavras, como na seguinte estrofe: “Ah, se eu fosse marinheiro/Era eu quem tinha partido/Mas meu coração ligeiro/Não se teria partido”. E no poema musicado por Philip Glass, todo em inglês, o grande compositor da música contemporânea erudita, há um paralelismo entre céu e mar, sendo o texto intitulado “Ignorant sky”, em que num dos versos temos: “There is no God among us anymore”. A natureza desafia mais uma vez a crença teológica e o poeta, a partir da natura, ganha na queda de braço com Deus. Sky e ocean se espelham como Imago Dei que se esfacelam perante o enigma mágico do mundo em sua vertente mais do que humana nas suas simbologias não mais ofuscadas pela luz do alto. Esse blue pode nadar nas águas cambiantes da existência.

Outra temática que perpassa sua poesia é o homoerotismo. No poema “Eco”, jogando de forma lúdica e irônica com o título, em que o ritmo e sonoridade representam esse ecoar dos versos que se unem pela sua musicalidade e representação simbólica, há uma relação erótica entre o ser e a natureza, Narciso e o mar, este elemento natural que é masculino: “A pele salgada daquele surfista/parece doce de leite condensado/Com seu olhar, o mar é narcisista/e, na vista de um, o outro é espelhado”. O jogo entre salgado e doce revela a dimensão andrógina desse ser, que transita entre o universo arquetípico antigo ao mundo contemporâneo, fazendo o elo, a ponte, entre o passado e o momento do ato da escrita, como reveladora do espanto perante as coisas inominadas.

 

Em Antonio Cicero, temos o diálogo com o mito, com os nomes proeminentes da filosofia, da matemática, como no poema “Arquimedes de Siracusa” e, também, a pluralidade das artes em seus múltiplos entrelaçamentos. Em “As flores da cidade”, podemos perceber uma ponte com “As flores do mal”, de Baudelaire, em que este poeta citadino revelou os conflitos entre natureza e artifício, tão bem trabalhados nesse poema de Cicero. O poeta carioca diz: “Há flores pelo caminho através/da cidade à cidade: naturais/em canteiros e em árvores, mas quase todos artificiais/nos cabelos dos bebês, em cachorros/mimados, em vitrines e revistas/femininas, em cartazes e outdoors...” Em outras artes, cita por exemplo, no poema “Museu de arte contemporânea”, a arquitetura através de Niemeyer, em que conclui, em versos de rico lirismo: “um céu na terra, quase nada, aire,/a flor de concreto do Niemeyer”. Em vários de seus poemas, também, a estranha alquimia se verte a partir da relação entre o mito e a técnica, tão bem pensados pelo filósofo Heidegger. A linguagem da tecnologia, sai de sua gênese mitológica para se inserir no mundo contemporâneo, misturando o antigo e o novo, o estrangeiro e o local.

 

A realidade concreta é entremesclada ao tom mítico e, também, filosófico, criando-se, um amálgama precioso, que se cava no fundo da terra. Encontramos em sua poesia o diálogo entre o asfalto e a grandeza do encantamento lírico. Regiões antigas não mais existentes que perfuram as ruas movimentadas da urbe selvagem, com seus barulhos, assombros e ônibus. No poema “Transparências”, Cicero joga com os sentidos do título do texto, pois o que é turvo é trazido à luz, pela análise dos versos. Os poetas e mitógrafos caminham por uma estrada de errância, sendo que “nada é certo nada claro”. Nos seus versos, saem dos subterrâneos o delírio, o caos, o trágico, a morte, o desejo, o sagrado, o ceticismo, numa dança exótica e híbrida.

 

Para concluir nosso estudo, vamos arrematar com a análise de três poemas, da quarta parte, “Continente”, que são: “Amazônia”, a bem conhecida poesia metalinguística “Guardar” e o texto poético que fecha o livro, “Medusa”. Em “Amazônia”, percebemos a mescla entre prosa e poesia, pois nos deparamos com a contação de uma longa história, com um enredo que reúne os sentidos da nossa brasilidade ao mito universal. Se no início, o poeta nos narra sobre a “Amazônia”, ele, num processo de recordação (com digressões), a partir da ancestralidade, se volta para o universo do mito greco-romano. Mas a flora e a fauna da Amazônia lhe fascinam. A floresta de nossa Terra Brasilis também tem um encantamento mítico, voltando-se para a figura das amazonas e, também, Orellana. Assim, Cicero une, nos seus versos, numa alquimia perfeita, o mito e a história. A história enquanto narração e aquela como fatos que se sucederam no tempo. E, num processo de autorreflexão e autoironia, o poeta faz uma análise interpretativa de seu próprio fazer poético, pois o eu-lírico diz, comparando-se ao antigo: “A Amazônia quer versos heroicos e épicos,/não os meus líricos, eróticos, céticos/e tão frívolos...” E se espelha no passado, ao relatar os mitos de Ares, Afrodite e Hefesto, o Olimpo invade a nossa selva, através da dimensão da memória e do esquecimento, utilizando até o verbo específico para isso, “recordar”: “Recordo-os/e esqueço a que ponto me perdi da selva/dos meus ancestrais”.

 

No famoso poema “Guardar”, muito bem estruturado, com sua metalinguagem ímpar e imaginária, o verbo é metamorfoseado pelo canto lírico. O dom de guardar ultrapassa as fronteiras de seu significado exposto para adquirir uma conotação latente e escondida, como o a literatura assim requer. Guardar não é esconder algo num cofre, mas olhar, fitar e iluminar alguma coisa. Aqui, temos uma rica interpretação e metáfora do labor poético, este que produz uma iluminação nas coisas, faz com que algo externo adquira uma luminosidade pelas palavras incandescentes e plenas de vitalidade. E, para isso, Cicero utiliza a bela imagem do voo do pássaro, como a potência imaginativa do poeta, que não prende e represa os dons do poético, mas os guarda dos olhos enviesados e sem a sabedoria necessária para compreendê-lo. Ele diz: “Por isso melhor se guardar o voo de um pássaro/Do que pássaros sem voos”. Portanto, ele conclui que para se guardar o poema, algo que indica o zelo, ele deve ser declarado no terreno da referência. O embate entre o guardar e o escrever, o zelo e o que se torna público, o particular, o privado, na sua realização enquanto materialidade no coletivo.

 

Por fim, temos o poema “Medusa”, onde o mito é utilizado para suas reflexões filosóficas, num processo de recognição. Uma reconstrução do originário na força poética do novo. Aqui, também, encontramos mais uma vez, a reunião entre o narrativo e o lírico, reorganizando as coisas pelas palavras que tecem um jogo duplo entre a petrificação perfurante e o mergulho nos aspectos mais diáfanos da poiesis. O eu-lírico mesmo corta a cabeça da Medusa, apresentando seus motivos e nos revelando a poeticidade existente na força mítica.  Uma nova versão do mito é apresentada por Cicero, em sua dimensão simbólica e, ao mesmo tempo, analítica, pois reflete sobre temas como a finitude e a morte. Entre deuses e seres, a imortalidade se cobre com o manto da carnalidade e da transitoriedade. O trabalho genial de reconto progride em tons cada vez maiores e Cicero nos mostra, de forma lúcida e perfeita, os olhos como metáforas para os espelhos do ser em seu aspecto reflexivo e de crítica corrosiva. O final do poema é surpreendente, sendo uma síntese de um dos momentos cruciais do texto, em que o mito nos espanta pela sua força de fabulação metafórica: “A ser não sendo, de madrugada/levanto com sede dessa água”.

 

Portanto, Antonio Cicero, em Estranha alquimia, mescla as diferentes áreas de conhecimento, de temáticas e gêneros, guardando um tesouro a sete chaves que serão usadas pela abertura de seus leitores com o mecanismo interpretativo da poesia. Num trabalho de interlocução, aquilo que se guarda se queima pela ardência inventiva de seus receptores num processo de doação recíproca, em que o eu e o outro, ora silenciam, ora comunicam as mais belas imagens. Um livro para não se esquecer, mas para ser guardado para a eternidade das eras e do tempo sempre em desenvolvimento crescente de ideias e reflexões. Guardar é ultrapassar as barreiras do tempo e do espaço, das cronologias e das fronteiras, fazendo-se conhecido e enaltecido pela leitura e pela crítica especializada, adquirindo voos cada vez mais altos e expansivos.




* Para aquisição:

https://www.editorapenalux.com.br/loja/estranha-alquimia


10.7.21

Christovam de Chevalier: "Paisagem noturna"

 



Paisagem noturna



Os homens na noite

rumam ao relento.

Nas costas o açoite

do rugir do tempo.


Caminham pela noite

arrastados pelo vento.

Camuflam o desgaste

de rumarem a esmo.


Corre noite, gazela

lépida, afoita, faceira

Inteira na sua mazela

de dar-se a si rameira.


Os homens e a noite

num só escuro intenso

estão entregues à sorte

e estão ali por inteiro.


No baticum da boite

todos trocam olhares

misturam-se na noite

sons, salivas e suores.


ACorre a noite, cadela

trôpega, trapaceira...

Os que ficaram de vela

pedem no bar a saideira







CHEVALIER, Christovam de. "Paisagem noturna". In:_____. Inventário de esperanças. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2021.

8.7.21

Lêdo Ivo: "A inspiração"

 



A inspiração


Não creio na inspiração

essa bruxa radiosa

que sopra a canção

e te faz alegre ou triste.

Mas que ela existe, existe!





IVO, Lêdo. "A inspiração", In:_____. "O soldado raso". In:_____.  Poesia completa (1940-2004). Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.

6.7.21

José Régio: "Testamento do poeta"

 



Testamento do poeta



Todo esse vosso esforço é vão, amigos:

Não sou dos que se aceita... a não ser mortos.

Demais, já desisti de quaisquer portos;

Não peço a vossa esmola de mendigos.


O mesmo vos direi, sonhos antigos

De amor! olhos nos meus outrora absortos!

Corpos já hoje inchados, velhos, tortos,

Que fostes o melhor dos meus pascigos!


E o mesmo digo a tudo e a todos, - hoje

Que tudo e todos vejo reduzidos,

E ao meu próprio Deus nego, e o ar me foge.


Para reaver, porém, todo o Universo,

E amar! e crer! e achar meus mil sentidos!....

Basta-me o gesto de contar um verso.




RÉGIO, José. "Testamento do poeta". In: BERARDINELLI, Cleonice (org.).Cinco séculos de sonetos portugueses de Camões a Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.

3.7.21

António Machado: "`Plaza" / "Praça": Trad. de Antonio Cicero

 




Praça


A praça tem uma torre

a torre tem um balcão,

o balcão tem uma dama,

a dama uma branca flor.

Pois passou um cavalheiro

-- quem sabe por que passou? --

e levou consigo a praça,

com sua torre e o balcão, 

com o balcão e a dama,

a dama e a branca flor.






Plaza


La plaza tiene una torre,

la torre tiene un balcón,

el balcón tiene una dama,

la dama una blanca flor.

ha pasado un caballero

– ¿ quién sabe por qué pasó ?–,

y se ha llevado la plaza,

con su torre y su balcón,

con su balcón y su dama

su dama y su blanca flor.





MACHADO, António. "Plaza". In: ENZENSBERGER, Hans Magnus (org.). Museum der modernen Poesie. Franfurt am Main: Suhrkamp Taschenbuch Verlag, 2002. Tradução de Antonio Cicero.


1.7.21

Adriano Nunes: "O peito, algo me diz"

 



Adriano Nunes é poeta e tradutor, fluente em grego antigo, latim, francês, italiano, espanhol, inglês, inglês elisabetano, alemão. Formado em Medicina (UFAL) e em Direito (UFAL). Mestre em Sociologia (UFAL). Cinco livros de poemas publicados: Laringes de grafite (Vidráguas, 2012); Antípodas tropicais (Vidráguas, 2014), Quarenta contente cantante (Vidráguas, 2015); Mitorragias (Patuá, 2019); Escombros do infinito (Amazon, 2020). Canções com Frejat, Leoni, Péricles Cavalcanti, entre outros.

 

 

 

O peito, algo me diz

 

certamente feliz

quase tudo já fui

quase tudo já fiz

abriga-me tal luz:

 

vingo por ser poeta

e vivo por um triz!

quando uma mágoa aperta

o peito, algo me diz

 

em segredo: ‘que mundo

não é seu, aprendiz

de Proteu? Mas no fundo...

a que voz satisfiz?





NUNES, Adriano. "O peito, algo me diz". In: Academia Brasileira de Letras. Revista Brasileira. Rio de Janeiro, fase IX. Janeiro-Fevereiro-Março 2021. Ano IV, nº106.