ENTRE O MÍTICO, O FILOSÓFICO E O LITERÁRIO NO LIVRO ESTRANHA ALQUIMIA, DE ANTONIO CICERO
Ensaio de Alexandra Vieira de Almeida, Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ)
Estranha
alquimia (Penalux, 2020), primeira antologia de poemas do poeta,
filósofo, crítico literário e letrista carioca Antonio Cicero, consagrado e membro da
Academia Brasileira de Letras, foi organizada pelo incansável poeta Diego Mendes Sousa e
com colaboração do escritor Fabio
de Sousa Coutinho.* A coletânea integra o “Item do Colecionador”
da editora paulista e é retirada dos livros Guardar
(1996), A cidade e os livros
(2002) e Porventura (2012).
Com novo dimensionamento do organizador e colaborador, a obra é composta por
quatro partes: Baú de nuvens, Alma Caiada, Poeta é uma África e Continente.
Em cada seção do livro, temos como poema de
abertura, o título de cada capítulo. No poema “Baú de nuvens”, somos enovelados
pelas urdiduras interrogativas do poeta, com indagações e reflexões sobre a
vida, mas dando um tom diferenciado e irônico ao que é originário,
reconstruindo as perguntas não em respostas facilitadoras, mas a novas
perguntas, criando-se, assim, um círculo com um contorno em aberto, pois o
primeiro verso se apresenta com uma interrogação, da mesma forma como o último
verso. Vejamos: “Para
onde vou, de onde vim? Não sei se me acho ou me extravio./Ariadne não fia o seu
fio./à frente, mas atrás de mim?/Não será a saída um desvio/e o caminho o único
fim?” Aqui, o poema não se conclui com a palavra “fim”. Com
doses interpretativas, Cicero reconta literariamente o mito pelo viés filosófico,
esta estranha alquimia, que perpassa todo o seu livro, ou seja, num amálgama
entre a poesia, a lenda e a Sofia, o poeta não se fia no fio da crença, mas
reconstrói o mito pela chama da poesia reflexiva, que faz de Ariadne a ponte
para as questões mais abissais do ser, em seu teor de labirinto intelectivo,
porém estruturado pelo tecido vertiginoso do literário em seu mais alto grau.
Nos seus versos, somos levados para a
perplexidade entre o antigo e o contemporâneo, o cosmopolitismo e o particular,
numa tessitura poliglota e multilingual, onde encontramos várias línguas,
vários continentes e nações. Entre o estrangeiro e o nacional, seu olhar
dinâmico e interrogativo transita pelas avenidas e ruas do passado e do
presente. Flertando com os monumentos do berço civilizatório ocidental, a
cultura greco-romana, não deixa de lado a presença da África, palavra que dá
título uma das seções da obra. Perpassando as ruínas do antigo, passeia pelas
lentes do asfalto citadino. Natureza e urbe se revelam como a outra alquimia,
que mistura, no atanor, belas e originais metáforas. O casamento alquímico na
sua coletânea não se dá de forma harmônica, há uma ruptura e uma tensão que
fazem dos elementos um enroscar de camadas plurais e desiguais, como o
panejamento de uma escultura barroca, que nos conduz a movimentos ondulatórios
e com diferentes tons e dobras.
No meio dos poemas, encontramos letras de
músicas, escritas para vários cantores, como sua irmã Marina Lima e Adriana
Calcanhotto, como exemplos. Assim, nós nos perguntaríamos, letras de música
também não seriam poemas? E, assim, somos conduzidos para a dialética tão
acirrada pelos teóricos mais rígidos, que criam uma fronteira, um abismo entre
ambos. Se fosse dessa forma, Bob Dylan não teria ganho o prêmio Nobel de
Literatura por suas letras musicadas. Poesia pode se revelar na música, assim
como a música na poesia. Estamos falando da relação entre ritmo e o trabalho
com a linguagem, algo que Cicero conhece profundamente. Nesse sentido, as artes
podem ser vasos comunicantes, e, nesse sentido, é mais do que importante e
notório, colocar as letras de músicas numa antologia de poemas, pois ambas
trabalham com a mesma linguagem, unindo palavra e sonoridade, aspectos que são
estruturados de forma primordial na sua poética. No caso de Estranha alquimia, temos
poemas que foram musicados e letras de canções, numa variedade que afirma a
junção entre as ideias, as imagens e os sons.
No poema “Inverno”, por exemplo, composta para
melodia de Calcanhotto, temos a dimensão intertextual da palavra enquanto verbo
potencial e germinativo, que abrange outras significações nos matizes
polissêmicos do novo texto. Num dos versos, temos: “sem amarras, barco embriagado ao
mar”. Como não percebermos aqui os ecos do poeta francês
Rimbaud, com seu “barco bêbado”? O mesmo ocorre no seu poema “Canção da alma
caiada”, poema musicado por Marina Lima, com o nome de “Alma caiada”. Aqui,
novamente, encontramos a faceta do literário, pois todos os versos do texto
começam por letra maiúscula, característica muito recorrente no Parnasianismo e
Simbolismo, enfatizando a introdução dos versos. Em outros poemas do escritor,
temos a alternância entre minúsculas e maiúsculas, dando diversidade à forma
poética, não se prendendo a padrões exclusivistas. Em “Água Perrier”, como
outro exemplo em que se apresenta o jogo textual e literário, entre forma e
conteúdo, o poeta Antonio Cicero cria uma rica rima em que no verso anterior
temos o substantivo “clichês”, que rima, no plural, com o adjetivo no singular,
“blasé”, fazendo um efeito ímpar, num olhar, não ofuscado pelas sombras da
dissonância, mas de uma assonância que equaciona a movência da pluralidade na
unidade. A sua música não se atém à facilidade e ao óbvio, o que prepondera na
atualidade, mas pela força do pensamento, a “poeticidade” mergulhada no mar
turbulento da “reflexão”. Mas não deixa de unir o formal e o informal, o que
está no centro e na periferia, a língua normativa à oralidade, criando um jogo
dinâmico entre a estrutura padrão em “banir-se-ão”, com o semantismo do que é
descentralizado: “do
centro rumo a um logrador/subúrbio desse coração”, em poema
musicado por Orlando Moraes.
No poema “Diamante”, o amor é metaforizado por um
símbolo elementar, mineral. Algo do âmbito do concreto passa a ter valor
existencial, o amor e sua mineralidade. Criando choques linguísticos nessa
poesia, Cicero extrai das palavras mais brutas, elevando a dureza, a dor, para
patamares fulgurantes e acesos pela chama prometeica dos versos, que crescem
numa gradação avassaladora, fundindo as sombras e a luz: “onde é mais funda a
escuridão;/e volta indecente esplendor/e loucura e tesão e dor”. O amor é, ao
mesmo tempo, elementar e solar, adquirindo o paradoxo bravio dos signos
linguísticos. Passa de carvão a diamante, tem que ser burilado, para que a
maldade dos anos não apague as altas temperaturas da combustão erótica das
origens, fundando e fundindo o fogo perpétuo de uma eternidade que pode virar
pó.
Já no poema “O grito”, nos deparamos com a
releitura do mito de Prometeu. Este personagem não está além, é o próprio
eu-lírico que se espelha e se mira no espelho da linguagem, em que temos o
embate entre prisão e liberdade, o mundo dos deuses e o ceticismo, a crença e a
descrença. Sem seguir uma pontuação tradicional, como exemplo, no verso
seguinte, em que falta uma vírgula, “e uma ponta do fígado mas digo”, esta
subversão linguística serve para se discutir a problemática que existe entre
necessidade e libertação, entre o mito e o logos, entre o não-ser e o ser,
entre o coletivo e o individual. O poema “Sair”, de forma ainda mais radical,
utiliza-se do verbo para representar algo que foge do comum, fora do
tradicional, o ateísmo e o desmoronamento de tudo o que nos causa conforto e
amparo: “Largar o cobertor, a cama, o/ medo, o terço, o quarto, largar/toda
simbologia e religião...” Essa ruptura também é formal, desconstruindo a
estrutura sistemática tanto conceitual quanto linguística, pois Cicero quebra palavras
entre os versos. O que importa para este eu-lírico é toda a physis em sua dimensão
natural, em que o artifício seria desmascarado pelo sol que anima a Terra.
No poema “Maresia’, Cicero realiza a difícil
proeza de unir, alquimicamente, o conceptismo com o cultismo, num jogo de
ideias e palavras, como na seguinte estrofe: “Ah, se eu fosse marinheiro/Era eu
quem tinha partido/Mas meu coração ligeiro/Não se teria partido”. E no poema
musicado por Philip Glass, todo em inglês, o grande compositor da música
contemporânea erudita, há um paralelismo entre céu e mar, sendo o texto
intitulado “Ignorant sky”, em que num dos versos temos: “There is no God among
us anymore”. A natureza desafia mais uma vez a crença teológica e o poeta, a
partir da natura,
ganha na queda de braço com Deus. Sky
e ocean se
espelham como Imago Dei
que se esfacelam perante o enigma mágico do mundo em sua vertente mais do que
humana nas suas simbologias não mais ofuscadas pela luz do alto. Esse blue pode nadar nas águas
cambiantes da existência.
Outra temática que perpassa sua poesia é o
homoerotismo. No poema “Eco”, jogando de forma lúdica e irônica com o título,
em que o ritmo e sonoridade representam esse ecoar dos versos que se unem pela
sua musicalidade e representação simbólica, há uma relação erótica entre o ser
e a natureza, Narciso e o mar, este elemento natural que é masculino: “A pele
salgada daquele surfista/parece doce de leite condensado/Com seu olhar, o mar é
narcisista/e, na vista de um, o outro é espelhado”. O jogo entre salgado e doce
revela a dimensão andrógina desse ser, que transita entre o universo
arquetípico antigo ao mundo contemporâneo, fazendo o elo, a ponte, entre o
passado e o momento do ato da escrita, como reveladora do espanto perante as
coisas inominadas.
Em Antonio Cicero, temos o diálogo com o mito,
com os nomes proeminentes da filosofia, da matemática, como no poema
“Arquimedes de Siracusa” e, também, a pluralidade das artes em seus múltiplos
entrelaçamentos. Em “As flores da cidade”, podemos perceber uma ponte com “As
flores do mal”, de Baudelaire, em que este poeta citadino revelou os conflitos
entre natureza e artifício, tão bem trabalhados nesse poema de Cicero. O poeta
carioca diz: “Há flores pelo caminho através/da cidade à cidade: naturais/em canteiros
e em árvores, mas quase todos artificiais/nos cabelos dos bebês, em
cachorros/mimados, em vitrines e revistas/femininas, em cartazes e outdoors...”
Em outras artes, cita por exemplo, no poema “Museu de arte contemporânea”, a
arquitetura através de Niemeyer, em que conclui, em versos de rico lirismo: “um
céu na terra, quase nada, aire,/a flor de concreto do Niemeyer”. Em vários de seus poemas, também, a
estranha alquimia se verte a partir da relação entre o mito e a técnica, tão
bem pensados pelo filósofo Heidegger. A linguagem da tecnologia, sai de sua
gênese mitológica para se inserir no mundo contemporâneo, misturando o antigo e
o novo, o estrangeiro e o local.
A realidade concreta é entremesclada ao tom
mítico e, também, filosófico, criando-se, um amálgama precioso, que se cava no
fundo da terra. Encontramos em sua poesia o diálogo entre o asfalto e a
grandeza do encantamento lírico. Regiões antigas não mais existentes que
perfuram as ruas movimentadas da urbe selvagem, com seus barulhos, assombros e
ônibus. No poema “Transparências”, Cicero joga com os sentidos do título do
texto, pois o que é turvo é trazido à luz, pela análise dos versos. Os poetas e
mitógrafos caminham por uma estrada de errância, sendo que “nada é certo nada
claro”. Nos seus versos, saem dos subterrâneos o delírio, o caos, o trágico, a
morte, o desejo, o sagrado, o ceticismo, numa dança exótica e híbrida.
Para concluir nosso estudo, vamos arrematar com a
análise de três poemas, da quarta parte, “Continente”, que são: “Amazônia”, a
bem conhecida poesia metalinguística “Guardar” e o texto poético que fecha o
livro, “Medusa”. Em
“Amazônia”, percebemos a mescla entre prosa e poesia, pois nos deparamos com a
contação de uma longa história, com um enredo que reúne os sentidos da nossa
brasilidade ao mito universal. Se no início, o poeta nos narra sobre a
“Amazônia”, ele, num processo de recordação (com digressões), a partir da
ancestralidade, se volta para o universo do mito greco-romano. Mas a flora e a
fauna da Amazônia lhe fascinam. A floresta de nossa Terra Brasilis também tem um encantamento mítico,
voltando-se para a figura das amazonas e, também, Orellana. Assim, Cicero une,
nos seus versos, numa alquimia perfeita, o mito e a história. A história
enquanto narração e aquela como fatos que se sucederam no tempo. E, num
processo de autorreflexão e autoironia, o poeta faz uma análise interpretativa
de seu próprio fazer poético, pois o eu-lírico diz, comparando-se ao antigo: “A
Amazônia quer versos heroicos e épicos,/não os meus líricos, eróticos,
céticos/e tão frívolos...” E se espelha no passado, ao relatar os mitos de
Ares, Afrodite e Hefesto, o Olimpo invade a nossa selva, através da dimensão da
memória e do esquecimento, utilizando até o verbo específico para isso,
“recordar”: “Recordo-os/e esqueço a que ponto me perdi da selva/dos meus
ancestrais”.
No famoso poema “Guardar”, muito bem estruturado,
com sua metalinguagem ímpar e imaginária, o verbo é metamorfoseado pelo canto
lírico. O dom de guardar ultrapassa as fronteiras de seu significado exposto
para adquirir uma conotação latente e escondida, como o a literatura assim
requer. Guardar não é esconder algo num cofre, mas olhar, fitar e iluminar
alguma coisa. Aqui, temos uma rica interpretação e metáfora do labor poético, este
que produz uma iluminação nas coisas, faz com que algo externo adquira uma
luminosidade pelas palavras incandescentes e plenas de vitalidade. E, para
isso, Cicero utiliza a bela imagem do voo do pássaro, como a potência
imaginativa do poeta, que não prende e represa os dons do poético, mas os
guarda dos olhos enviesados e sem a sabedoria necessária para compreendê-lo.
Ele diz: “Por isso melhor se guardar o voo de um pássaro/Do que pássaros sem
voos”. Portanto, ele conclui que para se guardar o poema, algo que indica o
zelo, ele deve ser declarado no terreno da referência. O embate entre o guardar
e o escrever, o zelo e o que se torna público, o particular, o privado, na sua
realização enquanto materialidade no coletivo.
Por fim, temos o poema “Medusa”, onde o mito é
utilizado para suas reflexões filosóficas, num processo de recognição. Uma
reconstrução do originário na força poética do novo. Aqui, também, encontramos
mais uma vez, a reunião entre o narrativo e o lírico, reorganizando as coisas
pelas palavras que tecem um jogo duplo entre a petrificação perfurante e o
mergulho nos aspectos mais diáfanos da poiesis.
O eu-lírico mesmo corta a cabeça da Medusa, apresentando seus motivos e nos
revelando a poeticidade existente na força mítica. Uma nova versão do
mito é apresentada por Cicero, em sua dimensão simbólica e, ao mesmo tempo,
analítica, pois reflete sobre temas como a finitude e a morte. Entre deuses e
seres, a imortalidade se cobre com o manto da carnalidade e da transitoriedade.
O trabalho genial de reconto progride em tons cada vez maiores e Cicero nos
mostra, de forma lúcida e perfeita, os olhos como metáforas para os espelhos do
ser em seu aspecto reflexivo e de crítica corrosiva. O final do poema é
surpreendente, sendo uma síntese de um dos momentos cruciais do texto, em que o
mito nos espanta pela sua força de fabulação metafórica: “A ser não sendo, de
madrugada/levanto com sede dessa água”.
Portanto,
Antonio Cicero, em Estranha
alquimia,
mescla as diferentes áreas de conhecimento, de temáticas e gêneros, guardando
um tesouro a sete chaves que serão usadas pela abertura de seus leitores com o
mecanismo interpretativo da poesia. Num trabalho de
interlocução, aquilo que se guarda se queima pela ardência inventiva de seus
receptores num processo de doação recíproca, em que o eu e o outro, ora
silenciam, ora comunicam as mais belas imagens. Um livro para não se esquecer, mas para ser guardado
para a eternidade das eras e do tempo sempre em desenvolvimento crescente de
ideias e reflexões. Guardar é ultrapassar as barreiras do tempo
e do espaço, das cronologias e das fronteiras, fazendo-se conhecido e
enaltecido pela leitura e pela crítica especializada, adquirindo voos cada vez
mais altos e expansivos.
* Para aquisição:
https://www.editorapenalux.com.br/loja/estranha-alquimia