10.11.13

Rubem Fonseca: "Restos"





Restos

O garçom era um velho
habituado a ouvir as queixas dos fregueses
enquanto esperava
a aposentadoria e a morte.
Tinha um rosto branco
enrugado e triste.
Enquanto isso,
a freguesa da mesa da frente,
com ávida sensibilidade de radar,
corria o olhar de um lado para o outro,
procurando machos ainda curiosos
de sua beleza evanescente.
Quando saímos,
éramos os últimos,
uma fila disciplinada de fodidos
esperava os restos finais do dia.
Os restos dos restos
iriam depois para os cães
ainda mais famintos.
Era uma mulher magra
de lábios finos.



FONSECA, Rubem. Amálgama. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.

7 comentários:

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,


muito obrigado por publicar este belo poema. Lembrou-me dos poemas de Bertolt Brecht.



Abraço forte,
Adriano Nunes

Nobile José disse...

cicero, o pondé de hj tá mto interessante, não? de fato, a modernidade nos traz a razão; mas não zera a ambivalência que o autor do texto aponta. abrçs.

Luiz Felipe Pondé, FSP, 11.11.2013

Kubrick de olhos bem abertos

Depois de ler sobre pré-história, minha percepção do mundo mudou. Para começo de conversa, o tema da violência na condição humana é melhor compreendido quando olhamos para nossos ancestrais do Paleolítico Superior do que quando tentamos compreendê-lo a partir de ideias como "o modelo social está ultrapassado", apesar de saber que frases como essa dão orgasmo em muita gente.

Somos seres do desejo, e não de razão. Com isso não quero dizer que não sejamos racionais, mas sim que o desejo se impõe à razão. Freud e Lacan bem sabem disso. Schopenhauer e Nietzsche também sabem isso. Devoramos tudo à nossa volta por conta dessa força irracional chamada desejo.

O cineasta Stanley Kubrick (que aliás está "nos visitando" no Museu da Imagem e do Som, o MIS) entendeu bem esse aspecto: é na pré-história e no desejo que melhor entendemos nossa desorganização interna, nossas contradições e a luta que temos cotidianamente contra elas. Refiro-me a dois dos seus filmes, "2001, Uma Odisseia no Espaço", de 1968, e "De Olhos Bem Fechados", de 1999.

O primeiro se abre com o momento descrito como "aurora". Nessa sequência, dois bandos de homens pré-históricos disputam a posse de um pequeno lago. O mais fraco perde. Depois, acuados, comem ervas embaixo de uma pedra, atormentados por predadores à noite.

(continua)

Nobile José disse...

(continuação)
Um deles, na manhã seguinte, descobre que, tendo um osso nas mãos, consegue ficar mais forte. Matam um animal grande e "se tornam" carnívoros (o vegetarianismo é um comportamento ultrapassado evolucionariamente).

Mais tarde, munidos de ossos nas mãos, atacam o bando que os haviam expulsado do lago. O "novo homem", com uma arma na mão, retoma o lago. Na cena seguinte, joga o osso para cima e este vira uma nave espacial. Chegamos ao futuro da pré-história.

Já na última parte do filme, vemos o primeiro computador com inteligência artificial se "revoltar" contra os dois astronautas da nave. O que o filme nos revela? Que o "avanço técnico" seguramente está associado à violência.

Isso não significa que seja "bonito". Hoje em dia, por causa do modo como se dá o debate público, baseado em caricaturas do outro, difamação e simplificação ridícula (tipo: quem não pensa como eu é racista, "sequicista" e a favor da TFP), torna-se necessário fazermos reparos como esse: reconhecer a relação de implicação entre melhoria material da vida, avanço cultural e uma dose de violência não significa achar isso bonito, mas sim reconhecer o grau de ambivalência que marca nossa condição. Mas, num mundo de mimados, como é o nosso, dizer isso parece ser "gostar" disso.

O que Kubrick está dizendo aqui é que provavelmente nossa história de ganhos técnicos implica um alto grau de risco. O problema é que queremos os ganhos, mas, no mundo da carochinha, no qual vivem os mimados, parece ser possível zerar a ambivalência. Nada disso quer dizer que devemos cultivar a violência, mas que não adianta pintar sua cara com cores de anjo porque só vai convencer gente boba.

No outro filme, "De Olhos Bem Fechados", Kubrick dialoga profundamente com Freud. O filme é baseado, em última instância, num sonho de Freud no qual ele entra num trem e um aviso diz que ali só permanecem pessoas de olhos bem fechados.

O sonho está dentro do processo de "autoanálise" de Freud, no qual ele descobre o complexo de Édipo e sua vergonha pelo fato de o pai não ter reagido a uma humilhação feita por um grupo de antissemitas testemunhada pelo menino Sigmund. O tema envolve a ambivalência dos sentimentos e desejos da criança para com os pais.

No filme, a mulher (a deusa Nicole Kidman) conta para o marido (Tom Cruise) que um dia desejou fazer sexo violento com um oficial da Marinha que ela tinha visto num hotel quando eles estavam num momento "família" (quis ser a "puta" dele). Com isso, ela joga o marido num total desespero, que só se encerra quando ela o chama para trepar ("let's fuck").

O desejo da bela e bem comportada mulher revela ao marido que nem ela escapa da desorganização do desejo sexual "ilegítimo". A vida ordenada está sempre por um triz.

Anônimo disse...

Cicero,

interessante o artigo do Pondé que o Nobile José postou. Fiquei curioso sobre o que pensa a respeito (é uma pena que não escreva mais sua coluna). Realmente faz sentido que o "avanço técnico" tenha sido engatilhado pela violência, mas será que o capitalismo não zera tal ambivalência? Digo, investimentos em pesquisas que acabem por aumentar a margem de lucro não substituiriam tranquilamente os investimentos na indústria bélica? Penso que sim, mesmo que a tecnologia mais avançada nem sempre seja a mais lucrativa (creio que raramente o é). Isto é, uma vez alcançada a modernidade a violência deixa de ser condição necessária.

Antonio Cicero disse...

Caro Erick,

sinceramente, não vejo nada interessante ou de novo nesse artigo do Pondé. Sabe-se há séculos que a guerra impulsiona a tecnologia. A única razão pela qual Pondé repete essa banalidade é pelo intuito de repisar mais uma vez suas velhas teses. Estas são não apenas banais e simplórias, mas reacionárias. O que dizem é simplesmente que, no fundo, o ser humano não presta, logo, quem luta para melhorar a sociedade – por exemplo, quem luta contra o racismo e o sexismo -- é ingênuo, burro e ignorante, Francamente!

É exatamente porque (1) cada um de nós é diferente um do outro e deseja coisas diferentes, e
(2) não há nenhum princípio absoluto e positivo que seja racional – logo, universalmente – demonstrável, que (3) a única atitude racional é garantir condições para a maximização da liberdade de cada um, até o ponto em que seja compatível com a maximização da liberdade dos demais.

Isso significa lutar pela afirmação e implementação dos direitos humanos e, em conseqüência, contra, por exemplo, o racismo e o sexismo.

Quanto à sua tese, Erick, penso que, enquanto houver guerra, a luta por supremacia militar impulsionará a tecnologia sim.

Anônimo disse...

Cicero, obrigado pela resposta. Sim, concordo com todas as suas proposições. De fato o artigo do Pondé é mais do mesmo. O que achei interessante, no entanto, não foram as conclusões reacionárias, mas a premissa de que a violência não apenas impulsiona, mas constitui a condição necessária do avanço tecnológico. À princípio fez sentido para mim, mas depois pensei que o mercado também impulsiona a tecnologia, ou seja, num mundo ideal onde cessassem as guerras, creio que ainda haveria avanço tecnológico.

Abraço

Nobile José disse...

mas cícero, o desejo é uma força irracional, de modo que o controle racional sobre ele é precário, apesar de necessário à afirmação dos direitos humanos.

vejo essa ambivalência como uma marca da humano: temos condições racionais de lutar pelos itens 1, 2 e 3, sendo que a razão exige um esforço constante contra o irracional. isso não tem conserto, mas apenas um permanente estado de vigilância.

sobre a liberdade, e o princípio universal do direito dado por kant, acho-o primoroso à questões públicas e políticas, mas não acho que se aplique a questões afetivas.

pondé se embola nisso, ao levar o irracional para as questões públicas e políticas, mas na parte afetiva acho que ele acerta, inclusive na crítica ao feminismo, que leva indevidamente a política para a alcova.

uma coisa é defesa de direitos, outra é achar que as relações afetivas seriam racionais - elas são justamente o campo no qual podemos nos 'irracionalizar', e graças à modernidade, podemos escolher quem vamos espetar, invadir, enfim, amar.

escrevo isso após ver hanna arendt, e seu caso com heidgger; após ler guia politicamente incorreto da filosofia; e de cantarlar "me diz por onde vc me prende, por onde foge, e o que pretende de mim..."

abrçs.

ps: aetano, cd vc?