14.6.12

Ferreira Gullar: "Uma aranha"




Uma aranha

ela surgiu não sei de onde
     quando abri o Dicionário de Filosofia
     de José Ferrater Mora
     no verbete Descartes, René;) mi-
núscula
     com suas muitas perninhas
     quase invisíveis
cruzou a página 1305 como se flutuasse
     (uma esfera de ar
     viva)
e foi postar-se no alto
no limite entre o texto e a margem branca
enquanto eu
                   fascinado
                   indagava:

como pode residir
                   insuspeitado
nestas encardidas páginas
– em minha casa, afinal de contas –
um tal ser
               mínimo mas vivo
               consciente de si
                                        (e como eu
                                        parte do século XXI)
e que agora parece observar-me
              tão espantado quanto estou
              com este nosso inesperado encontro?



FERREIRA GULLAR. Em alguma parte alguma. Lisboa: Babel, 2010.

3 comentários:

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,

Que poema lindo!



Abraço forte,
Adriano Nunes

Ricardo disse...

Caro Cícero, Gullar diz que o que move sua poesia é o espanto. Pois bem. No livro Em alguma parte alguma esse espanto é, de modo evidente, pelo cosmos e sua vastidão. Entretanto, Gullar se assombra também com miudezas, com uma aranha. "Uma aranha" que é, aliás, o melhor poema do livro. Curioso que os poemas em que ele evoca o universo não tenham a grandeza daquele, ou seja, é intrigante que ele se espante mais com uma aranha do que com uma galáxia. Um abraço!!

Antonio Cicero disse...

Caro Ricardo,

Ocorre que o espantoso ou admirável não se encontra apenas na imensidão, na vastidão do universo. É consensual que o cosmos seja espantoso. Por isso, o espantar-se com o cosmos tornou-se convencional. Ninguém se espanta com o fato de que alguém se espante com o cosmos. Mas o espantoso ou admirável pode encontrar-se onde menos se espera: e é tanto mais espantoso por isso mesmo.

Abraço