17.6.12

Antonio Cicero: entrevista a Diego Viana




A seguir publico na íntegra a entrevista que concedi a Diego Viana e que foi publicada parcialmente no jornal Valor Econômico, em 11 do corrente:


Sua participação na Flip deste ano será dedicada aos 110 anos de Drummond. Gostaria de poder adiantar um pouco do que será discutido. O que há para dizer de Drummond, hoje, que vá além de tudo que já se disse?

Sempre haverá o que dizer sobre a poesia de Drummond porque Drummond escreveu vários grandes poemas. Ora, um único grande poema já é capaz de evocar tantas coisas, de aludir a tantas coisas, de admitir tantos níveis de tantas interpretações, que nada do que se disser sobre ele será capaz de esgotá-lo.

Logo nos primeiros capítulos, o sr. aponta uma característica comum da filosofia e da poesia, que as deixa, ambas, algo deslocadas hoje: a exigência de dedicação e tempo. Até que ponto a correria contemporânea pode comprometer não apenas a recepção, mas a própria atividade da poesia e da filosofia?

De fato, a temporalidade cotidiana, utilitária e instrumental dos nossos dias não favorece o cultivo nem da poesia nem da filosofia. Trata-se de uma temporalidade inteiramente submetida ao utilidade, à instrumentalidade, ao princípio do desempenho. Contudo, é a filosofia que nos permite criticar a exclusividade da vigência desse mesmo princípio, e é a poesia escrita que nos dá acesso a outro modo de apreensão do ser, a outra temporalidade, não submetida ao princípio do desempenho. É por serem empreendimentos extremos do pensamento que a poesia e a filosofia são tanto indispensáveis quanto impopulares, pelo menos hoje e no futuro previsível.

A liberdade dos poetas, conquistada a duras penas, em relação às formas (inclusive a liberdade de adotar uma forma clássica) é, não raro, criticada como esteticamente permissiva demais. Assim como ocorre com a maior parte da arte contemporânea, a poesia enfrenta um saudosismo segundo o qual “quando tudo se pode fazer, nada se faz de verdade”. Como o sr. encara essa antiga objeção à poesia e à arte contemporâneas?

Encaro-a como inaceitável, pois regressiva. As vanguardas nos ensinaram que não é possível estabelecer limites a priori para a liberdade poética. A poesia não se encontra prêt-à-porter em nenhuma forma dada. O domínio de nenhuma técnica particular garante a qualidade de um poema. Quase todos os poemas escritos em versos livres são ruins; mas também quase todos os poemas escritos em versos metrificados são ruins. É que, em matéria de poesia, só o excelente é bom. E não há regras para a produção ou a avaliação de poesia excelente. É preciso julgar caso a caso. Como já dizia Montaigne, “a poesia boa, excessiva, divina está acima das regras e da razão”.

Já em 2007, o sr. publicou um artigo em que argumentava pela manutenção da fronteira clara entre poesia e filosofia. Há quanto tempo a questão dessa fronteira o motiva? Nos cinco anos de intervalo entre o artigo e o livro, a que acréscimos sua reflexão o levou?

Quando escrevi o artigo, já pensava a maior parte das coisas que agora desenvolvo no livro. No espaço limitado de um artigo de jornal, porém, era limitado o que eu podia dizer. Por isso, quando o Evando Nascimento, que dirige o selo “Coleção Contemporânea” da Civilização Brasileira, convidou-me para escrever um volume sobre poesia e filosofia, aproveitei essa ocasião.

Para alguém que trabalha com a mesma desenvoltura na erudição da filosofia e na música popular, como se dá a relação entre o erudito e o popular? Durante décadas, foi uma relação de desconfiança mútua, não raro até de desprezo.

É verdade. No entanto, há muita coisa vulgar no terreno “erudito” e muita coisa fina no terreno “popular”. De novo, também aqui é preciso julgar caso a caso. Antigamente eu considerava que o desprezo pelo jazz que um pensador como Adorno ostentava não passasse de uma mistura de ignorância e preconceito; hoje em dia, porém, depois de ler o artigo de 1933 em que Adorno, sendo judeu e marxista, apela ao governo nazista pela proibição do jazz, considero esse “desprezo” como simplesmente patológico.

Além da vontade em borrar a fronteira entre poesia e filosofia, me parece que uma das tarefas a que se entregou a filosofia no século XX, ou, pelo menos, a filosofia chamada continental (particularmente a francesa), foi justamente derreter fronteiras em geral, entre práticas, teorias, doutrinas. Se aceitarmos essa perspectiva, poderíamos dizer que erguer-se contra a dissolução da fronteira entre poesia e filosofia se inscreve numa disputa mais ampla, erguendo-se contra a dissolução de fronteiras em geral?

Não, pois creio que algumas fronteiras eram meramente convencionais, de modo que teriam, mais cedo ou mais tarde, que ser relativizadas ou suprimidas. Refiro-me, em particular, às fronteiras entre as diferentes artes. Mas, como tento mostrar no meu livro, a fronteira entre arte e filosofia não pode ser suprimida sem prejuízo para ambas. Creio que o mesmo vale para as fronteiras entre arte e ciência, por um lado, e ciência e filosofia, por outro.

Até que ponto a motivação para questionar o vínculo entre poesia e filosofia está ligada a sua própria prática dupla, de poeta e filósofo? Pergunto isso porque poderíamos acrescentar aí uma questão, para além daquela do poema como objeto, sobre o sujeito do fazer poético e o sujeito do pensamento filosófico: como é a coabitação entre esses esforços dentro de uma mesma consciência, no caso, a sua? Ou seja: dialogam? São permeáveis um ao outro? Entram em conflito?

Costumo dizer que, em mim, quando chega o filósofo, o poeta vai embora; e que, enquanto o filósofo está presente, o poeta nem sequer aparece. Sei que isso parece um tanto esquizofrênico, mas é assim.

A mesma questão, de maneira mais direta e simples: em sua poesia, não há também filosofia e, em sua filosofia, poesia?

Em minha poesia pode estar presente tudo o que sei e tudo o que vivo, inclusive a filosofia. Contudo, o que sei de filosofia não está mais presente na minha poesia do que o que sei de história, sociologia, urbanismo, pintura, romance etc.; nem mais presente nela do que a minha memória, o meu senso de humor, a minha emoção, as minhas sensações etc. É o livre jogo das diferentes faculdades que produz o poema. Embora também na filosofia tudo possa ser levado em conta, o que nela domina é a razão. Mas o que faço questão de mostrar no livro é que são inteiramente diferentes os fatores que nos fazem dar valor a um poema, por um lado, e os que nos fazem dar valor a uma obra filosófica, por outro.

Simplifiquei a pergunta anterior para poder introduzir a questão de filósofos que escreveram poesia (não simplesmente verso) mesmo quando filosofavam: sejam Heráclito, Parmênides e Empédocles, seja Lucrécio, seja Nietzsche. Neles, o trabalho poético prejudica ou amplifica o trabalho filosófico?

Tanto os poetas quanto os filósofos são pensadores. Ocorre porém que os pensamentos destes são de natureza inteiramente diferente dos pensamentos daqueles. Digo sempre que os filósofos pensam SOBRE o mundo. É como se estivessem do lado de fora, ou acima do mundo, para pensar sobre ele. O mundo é o objeto sobre o qual eles pensam. Já os poetas pensam O mundo. Eles estão imersos no mundo que pensam. Não há nem a mediação preposicional -- ou linguística --, nem mediação nenhuma entre eles e o mundo que pensam. Eles não se diferenciam do mundo, que se lhes apresenta tanto como objeto quanto como sujeito. Quanto aos filósofos que você menciona: Heráclito, que se saiba, não escreveu propriamente poemas, mas aforismos; Parmênides e Empédocles escreveram em versos, mas como Aristóteles observava, referindo-se a eles, fazer versos não é ainda fazer poesia. Já Lucrécio, embora fosse certamente um grande poeta, não se declarava filósofo, mas apenas divulgador da obra do filósofo Epicuro. É verdade que Nietzsche escreveu alguns poemas, mas a maior e melhor parte de sua obra não é propriamente composta de poemas, mas de textos literários bastante sui generis.

Outro tema que aparece no livro e no artigo é o da intuição, na filosofia, e da inspiração, na poesia. Considerando que ambos os termos remetem à noção de um germe criativo, a desenvolver pela reflexão ou pela sensibilidade, de que maneira eles se diferenciam? Podemos dissociá-los radicalmente?

Em certo sentido sim, pois ambos provêm do acaso e do inconsciente, mas eu diria que a intuição filosófica se aproxima de uma espécie de curto-circuito conceitual ou intelectual, enquanto a inspiração do poeta envolve todas as suas faculdades.

Pierre Vidal-Nacquet e Jean-Pierre Vernant retraçam a passagem da Grécia clássica à Grécia socrática, discutindo, entre outras coisas, a evolução das formas de registro da história e do pensamento; um dos elementos dessa transformação está na gramatização da língua, com a separação das frases etc., e a transição do verso para a prosa na história, na filosofia, no teatro. Assim, a poesia poderia ser associada a uma “mentalidade trágica”, enquanto a prosa se associaria a um racionalismo então nascente. Agora, à pergunta: levando adiante essa leitura, a distinção rigorosa entre filosofia e poesia não seria a expressão desse racionalismo, o que faria da tentativa de ir além dessa distinção um esforço de superá-lo? Ou seja: definir essa fronteira comum não consiste, também, em definir as fronteiras da filosofia como um todo?

A gramatização da língua grega se deu em primeiro lugar ao serem escritos os poemas orais de Homero. Ou seja, ela se deu antes da produção de qualquer texto em prosa. Acho errado considerar a poesia lírica como expressão de uma “mentalidade trágica”. Quanto à distinção entre poesia e filosofia, ela não é, a meu ver, a expressão de nenhum racionalismo, mas sim uma expressão da atividade da própria razão. E não vejo como seria possível à razão superar a si própria.

Se um poema, como um quadro de Rembrandt, é uma obra que suscita “o livre jogo da imaginação e do entendimento”, ele não é, porém, um objeto da natureza, como a paisagem e a flor. Existe aí um ato dotado de finalidade estética, ao qual o leitor ou espectador será confrontado, ainda que de maneira exclusivamente estética; é, ao menos, um ato que se insere na realidade e a condensa no objeto da criação: o poema, o quadro. Ora, esse confronto com um objeto que penetra na realidade de maneira até então desconhecida não poderia ser um embrião ou um estopim de filosofia? O mesmo não poderia se dar no propósito de criação de um poema?


Sim. Um ramo da filosofia, a estética, reflete exatamente SOBRE a arte, a poesia, a criação. Mas seria absurdo confundir a estética filosófica com a arte, a poesia ou a criação.

4 comentários:

léo disse...

PRESERVAÇÃO DA ESPÉCIE

Tigre,meu cachorro,morreu hoje.
Estava velho e doente.
Precisava de bengala.
Só que cachorros não usam bengalas.
Por isso,nunca se viu o Tigre de bengala.
Ultimamente,se arrastava triste pela casa.
Mas que bobagem.
Agora é tarde.
Agora o Tigre de bengala está extinto.

Nobile José disse...

ah! a vida...
às vezes muda
às vezes grita!

(Roberta Pires)

Robson Ribeiro disse...

Oi, Cicero.

Bela entrevista. Obrigado.

Publiquei, no meu blogue, umas palavras sobre o seu livro Poesia e Filosofia. Espero que não se incomode.

http://poesiaemblog.blogspot.com.br/2012/06/acabei-de-ler-um-maravilhoso-livro.html#links

Um abraço!

Antonio Cicero disse...

Caro Robson,

longe de me incomodar, fico muito contente. Muito obrigado!

Abraços