22.4.12

Carlos Drummond de Andrade: "Não se mate"




Não se mate

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam, .
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.




ANDRADE, Carlos Drummond de. "Brejo das almas". In:_____. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

10 comentários:

Alcione disse...

Bardo

Lambe os
Lábios de
Leite
Ser sereia
Deleite
Morno
Cardo
De um
Bardo

Anônimo disse...

Drummond é de uma honestidade e de uma lucidez inigualável. Em cada fase de sua obra, ele se mostra por inteiro. Não se esconde, mas também não se vangloria, e, se humilhando, como Álvaro de Campos também o fez, nós o exaltaremos sempre.

Chaostrophobia disse...

Não consigo ler esse poema sem me lembrar deste do Álvaro de Campos,


Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo polícromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...

[os versos maiores ficaram cortados]

Robson Ribeiro disse...

"(...)o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será."

Simples e sábias palavras do nosso querido poeta Drummond.

Um abraço, Cicero!

João Renato disse...

Gosto muito deste poema pelo que ele transmite da confusão mental do apaixonado.
Admiro também Drummond ter usado nele palavras comuns, porém qualquer uma dessas orações poderia ser exaustivamente comentada, tão complexas e repletas de jogos que são.

ADRIANO NUNES disse...

Um poema para alegrar o dia:


"estar na alegria imerso" - Para Antonio Cicero

às vezes, o dia é só
sol e a rotina de ser
outro dia, por nos ser-
vir de sonho, desse nó

que é a vida, soma so-
ler/te de tudo por ver.
e temos que até rever-
ter-nos do infinito pó.

às vezes, o dia é verso,
esse estratégico estrondo
em que o coração escondo.

às vezes, é o sol se pondo,
doutra ilusão, reverso,
estar na alegria imerso!



Adriano Nunes

Anônimo disse...

DRUMMOND HUMILHADO

ao menino de itabira
ao poeta que se humilha
ao homem que veste o traje de gala
para a festa que acabou
a ti que expõe tuas fragilidades
a carne exposta sobre o poema
a vertigem da modernidade
o homem etiquetado e nu
abandonado por deus
incapaz de ser deus
incapaz de ser e de estar no mundo
o josé
o carlos
o gauche
entre a pedra e o bonde
entre a flor e a náusea
entre o povo e o eu
ao poeta rebelado
tal qual o anjo decaído
tal qual um errante
tal qual um dante
neste mundo mundo vasto mundo
mas que só no mundo das palavras
o seu falo e a sua fala se revelam
no amor natural
na viola de bolso
nos contos e crônicas
***********************************
ao poeta de 7 faces :
meu primeiro mestre de poesia
meu primeiro mestre de vida
tu que se humilhou perante seus contemporâneos
e por seu povo e por todos será sempre exaltado
tu que era grandioso e se apequenou
diante do sentimento do mundo
aceitai minha humilde homenagem
carlos drummond de andrade
aceitai meu verso torto


rodrigo tomé

Jaguariaíva, 23 de Abril de 2012

Antonio Cicero disse...

Obrigado por me ter dedicado esse belo poema, Adriano!

Unknown disse...

Que lindo, não conhecia esse poema.

João disse...

Ele faz a trsiteza valer a pena.