26.6.11

Ferreira Gullar: "Instituição e rebeldia"




O seguinte -- excelente -- artigo de Ferreira Gullar foi publicado na sua coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no domingo, 12 de junho.



Instituição e rebeldia

TODOS CONCORDAM que é muito difícil definir o que é arte. Não obstante, se refletimos sobre o que conhecemos e consideramos expressão artística, verificamos que, em que pese a enorme variedade de estilos e concepções, há ali um traço comum que nos permite englobá-la numa mesma definição: é arte. Houve épocas em que era quase impossível fazê-lo de modo amplo, uma vez que a conceituação estreita reduzia a expressão artística a princípios e normas, fora das quais a arte seria impossível.

Foi precisamente o abandono dessas regras que tornou possível a visão abrangente que caracterizou a crítica de arte do século 20, capaz de compreender as mais diversas manifestações artísticas, desde as pinturas parietais do paleolítico até a limpidez da estatuária grega, o delírio barroco e a poética revolucionária do cubismo, do expressionismo, do dadaísmo.

Um dos traços mais característicos dessa visão nova da arte era a valorização do fator expressivo e autônomo das formas em detrimento da representação do real: compreendeu-se que, mais que copiar a realidade, a arte a recria e a inventa.

Mas o impulso irreverente, que movia os artistas do começo do século 20, ultrapassou não apenas a concepção acadêmica como pôs em questão o próprio conceito de arte.

Quem levou essa atitude a seu ponto extremo foi Marcel Duchamp, ao afirmar: "Será arte tudo o que eu disser que é arte". Essa afirmação, tomada ao pé da letra, significa que nada é arte, ou seja, que o fazer artístico não tem qualquer sentido.

Mas nem ele próprio acreditava nisso, tanto que suas obras mais importantes -"O Grande Vidro" (1915-1923) e "Étant Donnés" (1946-1966)- demandaram-lhe muitos anos de trabalho e criatividade.

De qualquer modo, não foi esse lado de sua personalidade que influiu sobre futuras gerações de artísticas, e sim aquele outro lado, o da antiarte. De uma maneira ou de outra, o que se chama hoje de arte conceitual ou arte contemporânea parte do princípio duchampiano de que tudo é arte ou pode ser dado como tal. Noutras palavras, todos os valores -sejam teóricos, artesanais ou estéticos- que serviam para esse tipo de expressão tornaram-se dispensáveis.

Isso não é uma crítica, apenas uma constatação. Qualquer que seja a importância que se atribua a esta ou aquela obra dita "contemporânea" -casais nus no MoMA, por exemplo- não possui aquelas referidas qualidades que constituem as obras de arte: casais nus que se exponham num museu não foram feitos por nenhum artista nem por ninguém. São apenas algo que se mostra como uma expressão, um conceito, qualquer que seja ele -enfim uma "boa ideia". Em face dessa constatação é inevitável concluir que tais manifestações estão fora do campo da arte.

No entanto, esses casais nus foram mostrados no Museu de Arte Moderna de Nova York, um dos mais conceituados museus do mundo. Como se explica isso?

A primeira resposta que me ocorre é que, no campo das artes plásticas, o conceito de obra de arte, como produto do trabalho e fruto de uma linguagem elaborada pelo artista, já não vale.

Entre os que conceituam, gerem ou decidem sobre o que merece ou não ser exibido e destacado, o que vale é, em vez da obra, o questionamento do que se chama de arte e do próprio museu ou certames nacionais e internacionais, criados para expor obras de arte. Agora, esses espaços tornaram-se locais onde se "nega" a arte.

A palavra "nega" está aí entre aspas porque não é agora uma negação contestadora de fato. Já foi, quando Duchamp expôs o seu famoso urinol, intitulado "Fontaine". Agora, instituição e rebeldia se identificam e uma redime a outra. O museu, as bienais, são hoje locais onde a não arte -seja urinol ou casais nus- vira arte.

Trata-se, de fato, de um impasse: a rebeldia que necessita da instituição para ser rebelde é a negação da rebeldia. Não por acaso, o artista escolhido para representar o Brasil na Bienal de Veneza, este ano, se declara contra salões, premiações e a própria Bienal onde vai expor.

Claro, porque, se se mostrar contente de expor ali, deixará de ser rebelde e, como sua obra é a não obra, tudo o que lhe resta é o espaço institucional, onde ela é aceita como rebeldia. Fora de lá, não é.

13 comentários:

João Renato disse...

Cícero,
Sobre esse tema: "O que é e o que não é arte", podemos especular à vontade, mas a questão é tão vasta e infinita que dificilmente poderá ser colocada dentro de um conceito.
No máximo, eu digo: "eu gosto ou eu não gosto", e mesmo assim correndo o risco de mais tarde mudar de opinião.
Por enquanto, eu acho que toda arte destroi um conceito ou um padrão, porém apenas a simples destruição disso não me interessa como arte.
Ser uma intervenção chocante me parece pouco; um circo faz melhor.
Gullar é um dos intelectuais mais completos do país, e a sacação desse casamento entre instituição e rebeldia foi ótima.
JR.

Marcello Jardim disse...

Concordo com você,Cicero,o texto de Gullar é essencial.Me faz pensar como a questão da liberdade, como a própria liberdade(na arte e na vida), nada têm de fácil ou de facilidade.O que é ser livre?Qualquer resposta totalizante me pareceria superficial, e me faz lembrar William Blake dizendo da liberdade como a maior das meias-verdades.
Abraço.

há palavra disse...

Ferreira Gullar é um poeta genial, um teórico que contribuiu decisivamente para a emergência de movimentos que recriaram o panorama da arte brasileira, mas sua contribuição atual ao debate sobre a arte contemporânea peca pela repetição - de suas próprias idéias, sempre rep[r]isadas - ou pela reverberação, simplificada, de idéias como a que sustenta o eixo central de sua argumentaçoa no texto em questão: a de que a obra de arte contemporânea, justamente por se confundir com o mundo, necessita mais dos espaços institucionais para ser reconhecida - nos dois sentidos da palavra.

A questão que fica é: por quê concluir que essa condição é uma"fraqueza"?

De todo modo, é inegável que, pela sua dimensão pública, competência e sensibilidade, Ferreira Gullar tem lugar cativo em qualquer debate sobre arte no Brasil.

Abraços!

J Alexandre Sartorelli disse...

Quando a obra de arte é verdadeira enxergamos o mundo com outros olhos depois de ter contato com ela. Não precisamos de arte com bula.

Fernando Campanella disse...

Bom dia, Cícero.
Após ler o artigo do Gullar, fica-me uma indagação: que arte seria essa, a chamada contemporânea, conceitual, etc., que necessita de uma outra arte ( a fotografia, por exemplo) para se perpetuar? Arte que se constroi, e se desmancha, que atinge os quinze minutos de fama tão ao gosto dos tempos atuais, onde tudo que nasce já se descarta, na frenética busca do novo. Seria sintomática do vazio que nos 'preenche' enquanto nos devora? Por um outro lado, como expressão de épocas, de culturas, de 'modus-vivendis', essa antiarte não deixaria de ser uma arte também. Então realmente fica o impasse, resta-nos estarmos abertos para acompaharmos no que isso vai dar.
Forte abraço.

Gabriel F. disse...

Debater acerca do q é ou não é arte ou melhor, quais partes de uma galeria podem ser consideradas artísticas e quais não abre um debate inócuo e me faz lembrar até mesmo a poesia introdutória do Retrato de Dorian Gray.
A sanha artístico-anarquica pela produção do "novo" inevitavelmente nos conduz a um caos: tudo é ou tudo não é.
Prezado Cícero quando nos deparamos com um poema descritivo, sumo resultado de um impulso autobiográfico, uma crônica de linhas estreitas, ainda q não adentremos no debate é ou não é ou não é poesia(e q na minha opinião normalmente não o é) não se pode negar q sua qualidade é inferior, pela falta de uma elaboração ou de uma reflexão mais apurada ou por falta de intimidade com a língua.
Em simples linhas:
"There is no such thing as a moral or an immoral book. Books are well written, or badly written."
Assim,a questão fundamental, a meu ver, não reside na afirmação ou da negação da etiqueta "arte" ou "não arte", mas em uma crítica contundente a produção artística de elaboração rude e pouca qualidade técnica.

Agradeço poder participar(pela primeira vez).

Um abraço a todos,

Antonio Cicero disse...

Resposta a "há palavra":

Primeiro, acho que Gullar tem reiterado – mas ao mesmo tempo, depurado, suas ideias justamente porque a maior parte dos artistas e críticos, incapazes de argumentar contra ele, tem preferido ignorá-lo, simplesmente fingindo que o que ele diz é irrelevante ou reacionário.

Segundo, parece-me claro que a contradição – a inconsistência – que Gullar aponta representa uma inconsistência dos próprios empreendimentos conceituais que se consideram “antiarte” e contrários à instituição da arte. Historicamente, os museus, as galerias, as exposições etc. não criaram as obras de arte. Eles passaram a existir porque, independentemente deles, existiam obras de arte. De fato, uma obra de arte sempre pôde e continua a poder existir sem se encontrar em museu, galeria ou exposição.

Paradoxalmente, é precisamente a “antiarte” – isto é, o empreendimento inimigo de obras de arte, museus, galerias ou exposições – que não pode existir sem essas instituições. Objetivamente, portanto, é a antiarte (e não a arte) que tem um interesse vital em manter a instituição – as instituições – da arte. Seguem-se três possibilidades, ou três tipos de antiartistas:

1. Os que, fascinados pela aura ou pela moda da rebeldia, não percebam que se meteram num beco sem saída; logo, os ingênuos;

2. Os que percebam que se meteram num beco sem saída, mas, para aproveitar a aura e a moda da rebeldia, finjam não pecerbê-lo; logo, os aproveitadores;

3. Os que, sabe-se lá por que razão, tenham conscientemente optado por destruir tanto a arte quanto a própria antiarte, isto é, por empobrecer o mundo.


Abraços

Marcello Jardim disse...

Prezado Cicero, as considerações de Gullar tornam mais claras as formas pelas quais o que seja arte diferencia-se, destaca-se, não só como coisa acabada, mas como andamento de uma espécie de empreita rigorosíssima que deve exaurir todo aquele que a gesta e produz, talvez valha dizer que essa arte deve exceder o artista no que ele tiver de mais sensível, de mais habilidoso, de mais livre - mas liberdade aqui como fio de navalha, como coisa absolutamente necessária para que não haja o menor risco de sufocamento, mas também como coisa suficiente para que ele sinta que o passo em falso pode lançá-lo, a qualquer momento, numa zona de arbitrariedade indiferenciada e vulgar.
Abraço.

rodrigo madeira disse...

o gullar tem um termo ótimo para este tipo de "arte": "arte-caninha, uma boa ideia".

seu comentário, cicero, é lógico, límpido e certeiro. principalmente o trecho que diz: "historicamente, os museus, as galerias, as exposições etc. não criaram as obras de arte. Eles passaram a existir porque, independentemente deles, existiam obras de arte."

uma pena que não possamos mais ler seus artigos na folha de s. paulo.

há palavra disse...

Prezados,

as relações tensas e complexas entre arte e instituição não é um fenômeno que se inicia com a arte contemporânea nem um fato que se relaciona com o que se convencionou denominar de "antiarte". Sem essa percepção, tende-se a um olhar ingênuo [i.e., ahistórico ou mesmo anti-histórico] para a arte que se produz hoje.

Aos que se interessam, simultaneamente, pelo aprofundamento e pelo alargamento de horizontes relativamente ao tema, indico o trabalho que a pesquisadora e professora da UERJ Vera Beatriz Siqueira desenvolve acerca dos "mecanismos de juízo e legitimação que caracterizam o sistema de arte ... bem como as formas de contaminação entre a arte e a sua institucionalização", a partir da abordagem da obra e trajetória de três importantes artistas brasileiros: Iberê Camargo, Hélio Oiticica e Antonio Manuel.

Abraços, bons caminhos.

J Alexandre Sartorelli disse...

Gosto muito de ir em São Paulo no Itaú Cultural quando há mostra de artista jovens.
Muito é "déjà vu" mas sempre encontro algumas obras relevantes. Um perigo para o olho treinado é tornar-se um olho viciado, ficar olhando o mundo sempre do mesmo modo e não mais ser afetado pelo encanto da arte.
Interessante que em literatura se uma obra parece muito com a outra consideramos plágio. No caso da arte conceitual a impressão é o que o plágio é a arte...
No fundo o melhor crítico de arte é o tempo. Boa parte da produção do passado já caiu no esquecimento mas Turner, Arcimboldo, Caravaggio ainda não nos encantam.
Creio que a arte contemporânea tem um vigor enorme no uso de recursos tecnológicos para confundir, maravilhar e alterar nossa percepção. Muito além da retina...

Nobile José disse...

um poema do gullar q gosto muito:

TRADUZIR-SE

Ferreira Gullar

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
alomoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
_ que é uma questão
de vida ou morte _
será arte?

Anônimo disse...

Nunca havia lido uma opinião tão clara em relação ao que podemos chamar "antiarte". O trecho "Agora, esses espaços tornaram-se locais onde se "nega" a arte" é para mim a frase de maior luminosidade que expõe essa reflexão de Gullar. Lembrei da performance de Marina Abramovic no MoMA, sentada, parada e calada por horas e horas olhando frente a frente os visitantes do museu que faziam filas imensas...não sei o que concluir disso. Abramovic "nega" a arte?