21.10.10
Daniel Sottomaior: "Ateísmo e cidadania"
O seguinte artigo, de Daniel Sottomaior, presidente da Atea (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos), cujo endereço eletrônico é http://www.atea.org.br/, foi publicado na Folha de São Paulo na quarta-feira, 19 de outubro.
20 de outubro de 2010
Ateísmo e cidadania
DANIEL SOTTOMAIOR
No Brasil atual, é inimaginável um senador da República dizer que "tem pena" de judeus.
Ou um apresentador de TV afirmar repetidas vezes que certo criminoso "só pode ser negro". Ou um candidato à Presidência afirmar que o judaísmo tem criado problemas no Brasil e no mundo e que é bom que o próximo mandatário supremo não seja judeu.
Ou um vilão de novela ser gay e atribuir sua maldade à própria homossexualidade.
No entanto, esse é o país em que vivem cerca de 4 milhões de ateus -número aproximado, já que o IBGE nos nega essa informação, a despeito do art. 5º da Constituição: "Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica".
Todos esses casos são reais, referindo-se na verdade a ateus, mas ninguém foi destituído, despedido ou processado pelo Ministério Público. Por que será?
A Folha dá enorme passo na direção certa ao abrir espaço a esta resposta ao artigo "Dilma e a fé Cristã", de Frei Betto ("Tendências/Debates", 10/10). Nele, o dominicano afirmou: "Nossos torturadores, sim, praticavam o ateísmo militante ao profanar, com violência, os templos vivos de Deus: as vítimas levadas ao pau de arara, ao choque elétrico, ao afogamento e à morte".
Não há como salvar essa lógica.
Trata-se de expressão clara de preconceito. Se a frase é inaceitável referindo-se a judaísmo ou negritude, então o mesmo deve valer para o ateísmo. E o contexto não poderia ser pior: o mote do artigo é salvar a candidata de "acusações" de ateísmo, ao invés de mostrar que ateísmo não é matéria de acusação em sociedade não discriminadora.
Identificar grupos de pessoas a deficiência física, estética, mental, moral ou até teológica sempre foi a racionalização do discriminador.
A maldade dos ateus é mais uma dessas lendas preconceituosas, reafirmada "ad nauseam" pela sacrossanta Bíblia Sagrada e por quase todos os seus cristianíssimos seguidores, apesar de desautorizada por todos os dados disponíveis.
A Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea) vem congregando descrentes em todos os quadrantes do país, esclarecendo a sociedade, defendendo os ateus da posição inferior que nos querem impingir, lutando por um Estado verdadeiramente laico e levando aos tribunais as pessoas e instituições que insistem no contrário.
Isso, sim, é ateísmo militante.
Ironicamente, bulas papais como "Ad extirpanda" e "Dum diversas" deixam claro que o cristianismo militante inclui tortura e escravização de descrentes. Não consta que tenham sido revogadas.
O grande manual de tortura de todos os tempos, "Malleus Maleficarum", foi escrito também por dominicanos, e serviu de guia, durante séculos, para a violência católica contra infiéis.
No caso a que Frei Betto se refere, os papéis também estão invertidos: combater o ateísmo era uma das justificativas para a ditadura, sintomaticamente inaugurada com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade.
É o teísmo militante, naquela época como hoje, alimentando-se do preconceito escancarado contra ateus, sequestrando e engravidando a política, em nome dos bons tempos, para nela conceber seus frutos. Vejam só no que deu.
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11 comentários:
Hei
Mundo tenso,
a
Romper
Tecer
No agora
Uma nova aurora
Longe da podridão
Astúcias do coração
Sem coação
Castigo ou perdão.
Bom artigo, excelente resposta. Gostei de ler.
Portugal é oficialmente um país laico - mas onde a igreja católica detém privilégios.No entanto, o catolicismo ou não nunca foram, até aqui, usados como argumento eleitoral.E são poucos os ateus (eu sou-o) que se identificam como tal - preferem dizer-se agnósticos - o que não é a mesma coisa, claro. Mas tolero perfeitamente que os outros não pensem como eu. Não gosto mesmo nada é de fundamentalisnos, venham de onde vier.
Nisso estou com Voltaire. E gosto muito do menino Jesus de Alberto Caeiro...
Olá Antônio,
O Daniel tem razão quanto aos preconceitos praticados contra os ateus. No entanto, eu tenho minhas dúvidas - e críticas- a esta associação de ateus e agnósticos. Penso que indivíduos bem resolvidos intelecutalmente não necessitam de tal expediente para seu ateísmo u agnosticismo.
O comentário de Frei Betto foi, de fato, ridículo.
Mas todos estamos sujeitos a sermos ridículos.
Espero que ele perceba o erro e aprenda.
;)
Abraço!
O texto veio bem a calhar. A inserção das questões religiosas no debate político ocupa espaço de outras mais relevantes para o país, como, por exemplo, o combate à miséria, ao analfabetismo funcional e a corrupção generalizada nas várias esferas do poder. Os ateus devem ser respeitados e não massacrados. Fiquei indignado com o apresentador Datena quando associou criminosos aos ateus. Uma sandice. O Brasil é um país laico e plural e, portanto, deve ser estimulada a tolerância entre os vários grupos.
Um grande abraço, Antônio.
David C. Baracho
A questão maior é a candidata querer se passar por religiosa, se na verdade não é.
Esconder a fé ou a falta de fé para angariar uns míseros votinhos não depõe a favor da biografia de ninguém.
Esse texto vem de encontro ao que tenho observado no mais diversos campos de atuação do brasileiro comum. Por exemplo, será que não tem algum jogador de futebol por aí que possa se confessar ao menos cético? Parece-me que não, tanto que o grupo (dos evangélicos, no caso) já domina diversas agremiações, impondo seu discurso em concentrações (vimos os casos recentes dos meninos do Santos e da tchurma dunguiana durante a última Copa) e nas entrevistas rudimentares que dão nas coletivas, à beira dos campos e nas mesas-redondas.
E mais: quando veremos (se veremos) um cético numa novela global?
Aliás, uso este espaço para fazer uma digressão: não estaríamos caminhando para o fundamentalismo neopentecostal? Temos muitas situações que indicam que um caminho está sendo paulatinamente aberto nesse sentido...
Mas por que o espanto ante a frase do Frei Beto?
Afinal, ele come, bebe, dorme, veste e vive às custas do Divino Spritu Sanctus! rs
Muitos que se declaram ateus brigaram com alguma igreja e rezam escondidos na hora do aperto. O comentário do Frei Betto foi procedente porque o diabo é a ausência de Deus e a ditadura militar era exatamente isto, bem como a vida é uma dádiva divina, representada nos corpos torturados. Não devemos confundir também anticlericalismo e laicidade com ateísmo.
Silvio,
o diabo existe e está presente exatamente para quem acredita em Deus, não para os ateus. A ditadura -- logo a tortura -- teve como uma de suas principais motivações livrar o Brasil do comunismo ateu.
Cada um ver o que quer, mas geralmente todo governo ou candidato que se intitula defensor da moral e dos bons costumes é o mais endemoniado, mais imundo, mais assassino. Deus nos livre das religiões.
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