7.3.10
Mind the gap
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 6 de março:
Mind the gap
NO METRÔ do Rio de Janeiro, quando o trem se aproxima de uma estação, ouve-se uma voz a anunciá-la, dizendo, por exemplo: "Próxima estação: Botafogo". De um tempo para cá, começaram a anunciar a próxima estação também em inglês, como: "Next station: Botafogo". Em português, às vezes dão outras informações, como "estação de transferência para a Gávea" etc. Em inglês, porém, só dizem o nome da estação. Por isso, recentemente fiquei surpreso quando, tendo ouvido a advertência "cuidado com o vão entre o trem e a plataforma", ouvi, em seguida: "Mind the gap".
Isso me transportou para muitos anos atrás, quando eu morava em Londres. Lembro-me de que me divertia ao ouvir essa mesma sentença em algumas estações do metrô. É que "mind the gap" quer dizer, literalmente, "atenção ao vão", "cuidado com o vão" ou "cuidado com a lacuna", e tudo isso já era sugestivo. Ademais, a palavra "mind" pode ser também usada como substantivo, significando "mente". A expressão "mind the gap" pode, portanto, ser ouvida mais ou menos como "a mente, o vão" ou “a mente, a lacuna”. E eu "viajava" um pouco com essa ambigüidade.
Naturalmente, não fui o único a perceber a graça de "mind the gap". Há pouco tempo, tomei conhecimento de que existem ao menos um filme, uma produtora de cinema, uma companhia de teatro e um romance chamados "Mind the Gap", todos inspirados na frase dita no metrô de Londres.
De todo modo, o prazer que eu sentia com a ambiguidade da sentença "mind the gap" dita no metrô era de natureza estética. Eu apreendia essa sentença à maneira de um "ready made" poético. Como se sabe, o conceito de "ready made", cunhado pelo artista plástico Marcel Duchamp, designa um objeto já existente que, deslocado do seu contexto e colocado numa exposição ou num museu, pede para ser apreciado esteticamente. É o caso do urinol que Duchamp submeteu a uma exposição.
Na verdade, a intenção do gesto de Duchamp havia sido mais a de contestar a instituição da arte do que a de revelar a possibilidade de que qualquer coisa, mesmo a mais improvável, pudesse ser objeto de fruição estética: de que esta residisse mais na atitude estética do receptor do que na própria coisa. No entanto, creio que foi desse modo que a maior parte dos artistas e críticos sempre a entenderam.
Mais próxima de celebrar a atitude estética parece-me ser a peça musical de John Cage "4'33"". Descrevo-a para o leitor que não a conheça. Trata-se de uma composição de três movimentos, composta para qualquer instrumento ou combinação de instrumentos. Os músicos entram, mas não tocam música nos instrumentos que seguram ou ante os quais se sentam. O primeiro movimento dura trinta segundos, o segundo, dois minutos e vinte e três segundos, e o terceiro, um minuto e quarenta segundos. O que os ouvintes realmente ouvem é o “silêncio” que, na verdade, consiste no som ambiente: a tosse de alguém, o ranger de uma poltrona, a respiração do ouvinte ao lado, o som distante de um avião que passa. Trata-se, portanto, de aprender a captar esteticamente, como se fosse música, o que chamamos de “silêncio” ou de “ruído”.
O fato é que assim como, nas artes plásticas, o "ready made" levou muitos artistas e críticos de arte a considerarem obsoleta a arte de pintar ou esculpir, na poesia ele levou muitos poetas e críticos literários a considerarem obsoleta a arte de fazer poemas. Entende-se: se é possível encontrar prazer estético num texto recortado do jornal, num trecho de diálogo de uma novela mexicana, numa sentença grafitada, numa frase ouvida ao léu ou na advertência do metrô, quem precisa da arte da poesia, de poemas ou de poetas?
A melhor resposta a uma pergunta dessas seria, evidentemente: "Ninguém". Não é preciso arte ou poesia. "Toda arte é perfeitamente inútil", como diz Oscar Wilde. E: "A única desculpa para fazer uma coisa inútil é admirá-la intensamente".
Mas a verdade é que, embora a celebração da atitude estética tenha sido extremamente importante, é evidente que seria uma tolice inferir que, em consequência dela, a arte se tenha tornado obsoleta. Do fato de ser possível obter prazer estético de diversas fontes não decorre que se trate do mesmo prazer, seja quantitativa, seja qualitativamente. Do fato de que se possa obter prazer estético tanto da sentença ouvida no metrô de Londres quanto do poema "Numa estação de metrô", de Ezra Pound, não decorre que ambos tenham o mesmo valor. Pensar o contrário equivaleria a supor que, do fato de que os seres humanos são capazes de se deleitar com o farfalhar das copas das árvores ao vento, de habitar cavernas e de comer frutas silvestres, devamos jogar fora a música, a arquitetura e a culinária.
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22 comentários:
Belo texto, poeta.
Gosto muito dessa relação entre os elementos subjetivos e as máquinas (metrô) nas conexões estéticas que vc traça.
Abraço
Cicero,
Muito bom! Acho que o conceito deles um tanto contraditório. Por quê? Porque mesmo a apreciação de algo exterior à Arte precisa de Arte. Ou é possível apreciar algo sem Arte pelo simples uso dos sentidos fisiologicamente? Porque mesmo a visualização do urinol por mim seria diferente da visualização por outrem - como no caso da leitura de um poema. Apreciar é uma forma de Arte.
A inutilidade da Arte reside na sua ampla utilidade. O infinito à vista.
rande abraço,
Adriano Nunes.
Mente, vão, indefinição dos quereres [ser] humanos... :)
Prezado Cícero,
Uma divagação e um adendo.
Divagação: você já deve ter visto/lido/ouvido quem, em nome da possibilidade de experiência estética aquém ou além da arte institucionalizada, pretende desautorizar a estética como área do saber. Dizem que, se podemos ter experiências de cunho estético em qualquer ocasião, a estética não tem um objeto de estudo definido. Veja só: em um único gesto, solapam tanto a estética quanto a arte! Como se a disseminada ocorrência de um fenômeno servisse não para fomentar seu estudo, mas, antes, para miná-lo! Como se a tentativa de (re)produzir e de potencializar um fenômeno, em tese, fortuito e de delicadíssimo manejo não fosse digna de reflexão!
Adendo: há, também, um poema de Marcos Siscar intitulado “Mind the gap”. Você conhece? Aí vai:
“Mind the gap”
o trem vai sair e nós sempre em atraso
carregando roupas demais pegando
carona no ato (pela janela do quarto
vê-se um riacho manso escorrendo arte)
enquanto em vão procuramos ofélia
ficamos parados diante do lapso talvez
incapazes do próximo passo nos avisa
o trem que o próximo passo é o salto
SISCAR, Marcos. Mind the gap. In: ______. Metade da arte [1991-2002). São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 74.
É isso.
Grande abraço,
Marcio Renato.
Caro Marcio Renato,
obrigado pelo comentário e por ter postado o poema do Siscar. Não o conhecia.
Abraço
Parabéns pelo texto. Li originalmete na Folha e agora vim pra cá para saboreá-lo novamente. Seus "acontecimentos" já são favoritos. Abraços, Ana Plácido
Caro Cícero,
Como conceito, eu acho a idéia do ready-made interessante.
Mas será que após a execução dos 4'33" do John Cage a platéia bate palmas ou compra o CD ?
Abraço,
JR.
Olá Cicero,
o seu texto me cativou, lembrei justamente de um poema que fiz pensando nisso, enquanto estava no metro do rio, ano passado:
"Observe atentamente o espaço entre o trem e a plataforma."
Observe atentamente o espaço entre o trem e a plataforma.
Observe atentamente o espaço entre o que vem e o que vai embora.
Observe atentamente o espaço entre o trem de dentro e o trem de fora.
Observe atentamente o espaço entre o sem e o que tem de sobra.
Observe atentamente o espaço entre o zen e o que a cidade torna.
Observe atentamente o espaço entre a poesia e o chão.
Observe atentamente
o espaço entre
o espaço entre
o espaço
entre
Observe atentamente
o observe atentamente
atento
espaço
vão
Caro Taiyo,
adorei seu poema. E ele repete mais precisamente a fase que se ouve no metrô ("observe atentamente o espaço entre o trem e a plataforma"), que, por não lembrar bem, apenas parafraseei, ao escrever o artigo.
Abraço
Muito Bom!
Cícero, acompanho seu trabalho há tempos.
O debate na Travessa foi muito bacana.
Quero convidá-lo para visitar e conhecer o Projeto 365 canções:
http://www.365cancoes.blogspot.com/
Abraço
esse papo do urinol não me assanha, leiam de Ortega Y Gasset "a desumanização da arte"
Muito bom o texto do Cicero e o poema do Taiyo.
Grande abraço a todos!
Marcone,
leia o que escrevi sobre "La deshumanización del arte" em "Finalidades sem fim".
Abraço
Mas aí o "jogar fora" vira performance contemporânea. O niilismo vira estética subjetivista.
...
Eu me recordo de uma experiência de metrô. Os adesivos das portas.
DEIXE AS PORTAS LIVRES PARA EMBARQUE E DESEMBARQUE.
...abra a sua mente para novas interpretações e saia de si mesmo...
Também tinha um adesivo:
Ao desembarcar observe o vão
Entre o trem e a plataforma.
Este último não pedia atenção, era mais uma recomendação, meio que uma profecia, revelação. OBSERVE O VÃO..
Abraço em silêncio
Caro Cicero,
Também gostei muito do poema de Taiyo! Parabéns !
Grande abraço,
Adriano Nunes.
"atente para o buraco", "não se esqueça do furo" - "buraco" ou "furo" que é a morada do desejo inconsciente e, pois, do sujeito.
Sinceramente acredito que essas "viagens" nossas de cada dia ajudam (e muito) a valer a pena...
Sobre o 4'33", John Cage, lembrei do documantário "Carta Sonora" http://www.tvbrasil.org.br/doctv4/?p=578 que fala justamente desse som "inaudível" da cidade. No caso, São Paulo.
Sons que percebemos melhor quando estramos distraídos... ou será que estaríamos aí mais atentos?
Abraços
Cicero,
Que alegria vir aqui em seu blog! Descobri-o hoje e fiquei encantado com tanta coisa maravilhosa já postada! Deixo um poema meu (se for possível) e se der, passa lá no meu..é novo mas pretendo seguir adiante.
"Mudança"
Muda o vento.............A todo tempo
Muda o tempo............A todo vento
Muda o olhar...............Como o aroma
Como sinto...................Ainda quero
Como quero..................Ainda sonho
Como ser.......................'Inda tento
Pela forma....................Que mais quero
Pelo cheiro....................Que só sinto
Pelo corpo......................Que era o seu.
um abraço,
Mateus.
Na era da reprodutibilidade técnica das obras de arte o “Mind de Gap” já aparece estampado em camisetas, pelo menos desde 1995, quando morei por lá. Já o seu comentário final me lembrou uma matéria de jornal que lí, já não sei mais onde, mostrando um renomado chefe de cozinha pego em flagrante comendo no Mac Donalds com a família. Me parece que os críticos e artistas que adotaram esta postura depreciativa com relação às formas tradicionais de expressão artística agiram na contramão do que de melhor a atitude de Duchamp nos trouxe, que foi a ampliação das nossas possibilidades de expressão estética.
Caro Prolecronos,
eu morei em Londres até 1972.
A que atitude depreciativa você está se referindo?
Abraço
Caro Antonio,
A atitude depreciativa a que me referi está relacionada à reação dos seguidores da corrente "ready made", quando estes consideram que a pintura, a escultura ou a poesia são formas de expressão obsoletas. Quanto ao comentário sobre o "mind de gap", eu não quis enfatizar o caráter cronológico do acontecimento mas apenas ampliar o conjunto dos exemplos.
Abraço
Caro Prolecronos,
concordo com você. Aliás, eu percebi que você estava se referindo a isso logo depois que postei minhas perguntas, ao reler meu próprio artigo. É que, logo que li seu comentário, achei que você havia considerado depreciativo o tom do artigo, o que não teria correspondido à minha intenção.
Quanto ao ano em que morei em Londres, foi só uma informação suplementar.
Abraço
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