9.8.09

Domingos Carvalho da Silva: "Poema terciário"





Poema terciário

          a João Cabral de Melo Neto

Cavalos já foram pombos
de asas de nuvem. Um rio
banhava o rosto da aurora.
Cavalos já foram pombos
na madrugada do outrora.
Onde há florestas havia
golfos oblongos por onde
tranqüilos peixes corriam.
Uma lua alvissareira
passava a noite. E deixava
reticências de cometa
vagalumeando na relva
das margens, até à aurora
da Idade de Ouro do outrora,
quando cavalos alados
tinham estrelas nas crinas
alvas como asas de pombo.
O Verbo não existia.
Deus era incriado ainda.
Só as esponjas dormitavam
trespassadas por espadas
de água metálica, impoluta.
E as gaivotas planejavam
etapas estratosféricas
próximo as praias ibéricas.
E as montanhas desabavam
em estertores terciários,
em agonias de estrondo,
nas manhãs de sol atlântico,
quando cortavam as nuvens
– alvos garbosos eqüinos –
esquadrões marciais de pombos.
Teu cabelo era ainda musgo.
Teus olhos o corpo frio
de uma ostra semiviva.
E tua alma sempre-viva
Sobrenadava o oceano
qual uma estrela perdida.
Teu coração era concha
fechada e sem pulsação.
E teu gesto – que é teu riso –
era urn mineral estático
ainda não escavado
pelo mar duro e fleumático.
Cavalos já foram pombos.
E a prata que anda na garra
dos felinos, reluzia
em vibrações uterinas
no ventre da terra fria,
quando o dia era só aurora
e Deus sequer existia,
na madrugada do outrora.



CARVALHO DA SILVA, Domingos. "Poema terciário". In: BANDEIRA, Manuel (org). "Antologia". In: Apresentação da poesia brasileira. São Paulo: Cosacnaify, 2009.

5 comentários:

EDSON DA BAHIA disse...

Cícero, a sensação que tenho ao terminar de ler este lindo poema é a de vivenciar um oriki do Orixá Nanã.
Que feiticeiro este CARVALHO E SILVA!
Avante, guerreiro!

ADRIANO NUNES disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
paulinho disse...

LINDÍSSIMO, cicero!!

o poema me transporta para eras em que a nossa existência era um pulsar latente entre coisas já existentes, porém existentes quando o verbo não existia, quando deus era incriado, isto é, em era terciária, em era mais remota que o próprio padre eterno.

ADOREI!

beijo, meu lindo!

Fernando Campanella disse...

Li 'Poema terciário' umas duas vezes e confesso que me perdi. Hoje , em nova leitura, fiquei impressionado: o poema é um monumento. O verbo incriado, o corpo era um musgo, o amor já nos ensaiava. Muito bonito. Aproveito para enviar um poema meu, veja se gosta:

CÂNTICOS

Certos cantares são quase eternos,
nascem de outros que sabem a outros
que beberam às fontes,
aos fundamentos do ar.

Certas canções, as trazemos do berço
ou de antes dos salmos,
as entoamos de cor,
anônimas, acéfalas,
um só coraçõe pulsante
de lágrimas e pétalas.

Priscos diamantes -
cantigas, idílios ou cânticos -
certos cantares seriam eternos
(os anjos não considerados)
não fosse o princípio,
e desde o princípio
é a glória do verbo:
amar.
(Fernando Campanella)

Antonio Cicero disse...

É bonito, Fernando. Parabéns.

Abraço