O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 24 de janeiro de 2009.
O fenômeno Barack Obama
NEM OS representantes da direita cínica nem os da esquerda dogmática conseguem esconder seu rancor contra a alegria com que tanta gente saudou a posse de Barack Obama. Tanto uns quanto os outros debocham da "ingenuidade" dos que pensam que, com o novo presidente, alguma coisa possa melhorar nos Estados Unidos ou em qualquer outra parte do mundo. Segundo eles, nada pode mudar senão para pior.
Acontece que as pessoas que conheço e que ficaram admiradas e alegres com a eleição e a posse de Obama estão longe de ser tão ingênuas quanto eles supõem. Elas não acreditam em milagres ou messias ou "grandes timoneiros"; são conscientes de que o presidente dos Estados Unidos não pode fazer tudo o que quer; percebem que Obama ainda não se provou como administrador; sabem que vivemos um momento de crise econômica mundial sem precedentes; entendem a gravidade das guerras no Oriente Médio e no Afeganistão; compreendem que vivemos um momento instável de imprevisíveis transformações nas correlações internacionais de forças econômicas, políticas e militares etc. etc.
Apesar disso, os que celebram a posse de Obama -entre os quais me incluo- acreditam que já há bastante razão para fazê-lo. Em primeiro lugar, é extraordinário que um homem negro, filho de imigrante, com um nome de origem árabe, tenha sido eleito presidente dos Estados Unidos. Em segundo lugar, é maravilhoso que tal homem deva sua eleição, em grande parte, à superioridade do seu brilho, do seu carisma, das suas ideias. Em terceiro lugar, é esplêndido que, ao eleger Obama, os eleitores americanos tenham claramente repudiado o governo mais vil de que se tem memória nos Estados Unidos, que foi o da extrema direita do Partido Republicano, na figura lamentável de George W. Bush. Em resposta aos que afirmam que nada poderá mudar no novo governo, pode-se dizer que esses três fatos já representam uma imensa mudança.
Mas há mais. Curiosamente, sob influência de comentaristas das grandes redes de televisão norte-americanas, muitos afirmam que Obama nada disse de novo no seu discurso de posse. Isso é uma falsidade. De modo educado, porém firme, ele deixou bem claras as suas diferenças em relação ao antecessor. Entre outras coisas, falou de restaurar ao devido lugar a ciência (que foi vilipendiada, como se sabe, pelo apoio ideológico e material dado por Bush à charlatanice do "design inteligente"); declarou ser falsa a oposição entre os princípios e a segurança (quando Bush, em nome desta, sacrificou aqueles); ressaltou a necessidade de abandonar dois dogmas: o primeiro, quanto ao tamanho do Estado (que o governo Bush pretendeu tornar mínimo no que diz respeito à segurança social, mas não no que diz respeito às forças de repressão e guerra); e o segundo, quanto ao papel do mercado (que o governo Bush quis maximizar por meio, entre outras coisas, de uma desregulamentação cujas consequências se manifestam na atual crise econômica); observou, contra o fanatismo religioso (que Bush sempre cortejou), que o povo dos EUA não se compõe apenas de crentes, mas também de incréus; e afirmou, contra os conservadores, que "o mundo mudou e nós devemos mudar com ele".
As ideias de que o mundo mudou – que o próprio Obama não só afirma mas encarna – e de que devemos mudar com ele são, no fundo, as que mais irritam tanto os direitistas cínicos quanto os esquerdistas dogmáticos. Outra ideia que lhes é inaceitável -e que constitui o próprio teor do discurso de posse- é a de que a sociedade aberta é melhor do que a fechada.
Quanto à direita, ninguém ignora que ela se define exatamente em oposição às ideias de mudança para melhor e de sociedade aberta. Já para a esquerda dogmática, a situação é um pouquinho mais complexa. O que ela é incapaz de admitir é que possa haver qualquer melhora real no mundo antes da superação do capitalismo, isto é, antes da "Revolução". Sendo assim, dado que qualquer mudança real no mundo existente – principalmente nos Estados Unidos, que são o ápice do capitalismo – desmentiria suas teses, não lhe resta senão crer que toda mudança e todo projeto de mudança que se apresente como tal seja um mero engodo. Assim lhe parece ser também a sociedade aberta, que ela descarta como "democracia burguesa".
A meu ver, o que não consegue mudar, o que é esclerosado, são ideologias como essas. As coisas reais mudam o tempo todo, ora para pior, ora para melhor e, embora não possamos saber o que acontecerá daqui para frente, a verdade é que, no momento em que escrevo, o fenômeno Obama já representa uma mudança real para melhor.
25.1.09
O fenômeno Barack Obama
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16 comentários:
Cicero,
Maravilhoso e lindo é o seu ensaio, abrindo caminhos, mostrando luzes, despertando esperanças e positividade... tudo pra cima! Parabéns!
Abraço forte!
Adriano Nunes.
Caro Cicero,
No momento em q acabo de ler esse artigo, a minha grande dificuldade é encontrar palavras para elogiá-lo. Acompanhei por uns dias um blogueiro da direita cínica - que se recusa, cinicamente, a publicar meus comentários contrários à sua visão paranoica das coisas, nada obstante defina-se como "liberal" -e sei o quanto essa gente é "religiosa", esclerosada, limitada, tacanha, cansativa.
Que prazer, então, ler o seu artigo, Cicero! Vc agrupa todos os argumentos e desfere um golpe certeiro no cinismo da direita e no dogmatismo da esquerda.
Parabéns!
Sempre grato,
Aetano
Para um amigo:
"...Catulo está, portanto, fora da cidade,
Graças aos deuses! E eis, querida, o meu conselho:
Escolhe, para amante, quem quer que te agrade,
Salvo um poeta, pois ninguém é tão pentelho."
Trecho do poema "De uma carta de Lésbia", de Dorothy Parker. Tradução de Nelson Ascher.
O cair da noite
traz o devir de tua ausência
lembrança de presença
catarse triste
Dor no peito esta
não há um fio de luz na casa
as ondas do mar quebram-se por si sós
independem de nós
através de brumas e espumas
e ausências.
cicero mandei um poema de minha autoria a vc... gosto muito da coisa enigmatica dos seus poemas, do que as palavras pretenderiam mas parecem já não ser mais aquilo.
tem um lance erótico nessa oscilacao dos significados que é incrivel.
...bem, eu tenho 22 anos, moro na ilha de florianopolis, e espero que goste do poema! até.
Agradeço as palavras generosas de Adriano, Aetano e Victor. E pelo poema que Aetano cita, e que mais tarde postarei inteiro aqui. E pelo poema do Victor.
Abraços
excelente artigo!
abraço,
luiz
Oi Cicero,
Muito bom o artigo, esse momento é realmente maravilhoso. Melhor mesmo do que a posse de Obama seria se pudéssemos acrescentar a isto a posse de Gabeira no Rio, que significaria muita coisa legal (e olha que foi quase). De qualquer maneira, acho que este seja de fato um momento de alegria e de esperança para o mundo.
Grande abraço,
Carlos Eduardo
Cicero,
ótimo domingo!
"SEM VÉUS" (Para Aetano e Bia e todas as suas luzes)
Agora se rasga o véu
Das Musas e ganha voz,
Dentro de cada um de nós,
A vida que emudeceu,
Essa que se foi de vez,
Sem nem vestígios lançar
Aos reveses e, quiçá,
Sem revelar a sua tez.
Um poema se faz de luz
Apenas. Nasce do Sol
Que só há no coração
Das palavras, mas produz,
Em todos, um arrebol,
Sem precisar de razão.
Abraço forte!
Adriano Nunes.
A flexa certeira do poeta filosofa e festeja o devir.
Com antolhos tristes, imbecis vociferam seus racismos e radicalismos.
Que enorme diferença entre um e outros.
Parabéns por ser o um.
Antônio Cícero, parabéns por colocar o artigo aqui.Você disse realmente o que devia ser dito.
O mundo lhe reverencia com esperança.
Barack Hussein Obama, Presidente eleito e empossado em 20 de Janeiro de 2009 nos Estados Unidos da América alimenta a esperança de milhões e milhões de pessoas para transformar o mundo.
A sua capacidade de liderança e o seu carisma político justificam as expectativas dos norte-americanos que viveram nos últimos oito anos uma desencontrada administração pública agravada pela vontade de guerrear de um presidente imprudente e incompetente que levou a maior potência econômica do mundo ao caos financeiro e antipatia social.
Essa triste realidade transferida ao Presidente Obama será um desafio demorado e difícil de ser vencido.
Sabemos que hoje, os Estados Unidos da América é a locomotiva que impulsiona o mundo, e por isso como vagões desse trem, precisamos estar certos que seremos levados ao nosso destino.
Todavia precisamos estar preparados para entender que Barack Obama é um homem como qualquer outro ser humano dotado de virtudes e defeitos.
Penso que os erros cometidos pelo povo americano em eleger o ex-presidente George Bush foi suficientemente doloroso e devastador, mas foi também um ensinamento para destronar um homem que só fez desgastar a imagem de um país democrata. O orgulho, a vaidade, a incapacidade e o medo de Bush fizeram dos Estados Unidos um país temido, mas não respeitado pela força bélica. As guerras do Iraque e da República Islâmica do Afeganistão foram cruéis e insanas. Os prejuízos intangíveis levaram a economia americana ao fundo do poço. É verdade que Bush não foi o único a errar. Erraram com ele o Congresso americano e o povo.
Nesse momento histórico e importante, precisamos estar unidos na mesma esperança do povo americano, mas cientes que Barack Obama não é um Super-herói ou um mágico que fará todas as mudanças que transformarão o mundo. Em menos de 24h de eleito ele tomou atitutes de ação.OBAMA! Que Deus lhe dê saúde para governar, humildade para liderar e inteligência suficiente para encontrar o verdadeiro caminho da paz! O povo americano consertou mais que um erro de séculos." Ingenuidade " são aqueles que debocham dos outros sem ver que o deboche é de si mesmo , eles acham que nada pode mudar senão para pior porque não tem crença que eles mudem quiçá qualquer pessoa, qualquer coisa.E de forma desapercebida o Brasil mundialmente se encontram em vantagem aos países ditos " mais evoluídos " , já que só os " espertos que não acreditam em melhoras senão para pior " aproveitam a crise para se dar muito bem , por isso tantas demissões ; um proveito para demitir e contratar por menos.Já os que vivem na " ingenuidade " consegue ver a pulo , e crescimento que o Brasil teve e ainda terá no cenário mundial.
Boa Semana para todos ! WELPE
Belíssima sua postagem, penso da mesma forma que você...
Muito bom o seu blog, descobri através do site da Marina, sempre que posso, venho aqui fazer uma visita e gosto muito do que leio, parabéns moço!
Narayana
lindo, cicero! adorei tudo!
o sentimento pela eleição do obama me parece bastante com o que tomou muitos cariocas com a quase eleição do gabeira. eu sabia que ele não poderia tanto quanto eu gostaria, mas, se eleito, aos meus olhos, a mudança já seria imensa. porque gabeira representa forças bem distintas das que vejo em terras fluminenses.
como sempre, tudo lindo, tudo correto, com os pingos nos seus devidos 'is'.
beijo grande, coisa rica!
obrigado, cícero, por esse texto! falou o que eu gostaria de expressar.
abraço.
Amigo, foi a mais lúcida análise que li sobre esse fato extraordinário que foi a eleição de Obama. Sempre é um prazer imenso te ler.
Há braços!
Caro Antonio,
Gostei bastante do seu texto. De fato, vejo muitas pessoas sensatas comemorando a vitória de Obama, e eu mesmo a comemoro. Há também os insensatos - a minoria - que o vê como messias, como também houve os que viam Bush como uma espécie de messias do conservadorismo. Creio que um líder deveria ser julgado pela qualidade dos melhores argumentos ao seu favor, e não dos piores.
Tenho, contudo, uma certa discordância no trecho em que você se refere ao governo Bush como um que entregou ao mercado um poder grande demais. Não me parece que seja exatamente isso.
Quando se fala em "mercado" costuma-se entender "livre mercado". Bush e outros da Direita implementaram diversas medidas repressoras que não se poderiam ser identificadas com um livre mercado. Entre outras temos restrições maiores aos direitos econômicos dos imigrantes, restrições - travestidas de proteção à propriedade intelectual - à troca de idéias e desenvolvimento técnico, e, principalmente, inúmeras medidas para proteger e subsidiar grandes corporações. Muitas das desregulamentações ditas "neo-liberais" também são intervenções disfarçadas, retiram proteções aos indivíduos para conceder proteções maiores às empresas - e não a todas igualmente. E não nos esqueçamos da enormidade da indústria militar fomentada pelo estado, com as proporções monstruosas que assumiu nos últimos anos.
Por outro lado, a crise econômica sem precedentes em que nos encontramos deve-se sim em grande parte à desregulamentação exagerada. Mas quando o Estado se abstem de cumprir sua obrigação mais básica no que concerne à economia - coibir a fraude - não está entregando poder ao Mercado, mas sim retirando poder dele para dá-lo ao Crime. A pior forma de intervenção do Estado na economia é dar a um grupo de pessoas e empresas o direito de negociar títulos falsos, no caso, garantias falsas.
Tenho esperança de que Obama possa ser o defensor do mercado que Bush não foi, um defensor focado nas liberdades econômicas do indíviduo antes daquelas das grandes corporações.
No mais, só tenho que parabenizá-lo pelo artigo. Nunca sei de que gosto mais - se dos poemas que você escreve ou escolhe, se dos artigos sobre política e filosofia.
grande abraço,
Lucas
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