O mesmo poema de Hölderlin, com uma pequena alteração na sua tradução, sugerida pelo Paulo de Toledo:
Outrora e agora
De manhã era feliz, quando jovem,
E à noite chorava; já hoje, mais velho,
Começo meu dia em dúvida, porém
Seu fim é para mim sagrado e sereno.
29.10.07
28.10.07
Hölderlin: Outrora e agora
Outrora e agora
Quando jovem, de manhã era feliz
E à noite chorava; já hoje, mais velho,
Começo meu dia em dúvida, porém
Seu fim é para mim sagrado e sereno.
Ehmals und jetzt
In jüngern Tagen war ich des Morgens froh,
Des Abends weint’ich; jetzt, da ich älter bin,
Beginn ich zweifelnd meinen Tag, doch
Heilig und heiter ist mir sein Ende.
De: HÖLDERLIN, Friedrich. “Gedichte”. In: Sämtliche Werke und Briefe. Vol. 1. München: Carl Hanser, 1970. P.221.
Quando jovem, de manhã era feliz
E à noite chorava; já hoje, mais velho,
Começo meu dia em dúvida, porém
Seu fim é para mim sagrado e sereno.
Ehmals und jetzt
In jüngern Tagen war ich des Morgens froh,
Des Abends weint’ich; jetzt, da ich älter bin,
Beginn ich zweifelnd meinen Tag, doch
Heilig und heiter ist mir sein Ende.
De: HÖLDERLIN, Friedrich. “Gedichte”. In: Sämtliche Werke und Briefe. Vol. 1. München: Carl Hanser, 1970. P.221.
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Poema
25.10.07
Nênia
NÊNIA
A morte nada foi para ele, pois enquanto vivia não havia a morte e, agora que há, ele já não vive. Não temer a morte tornava-lhe a vida mais leve e o poupava de desejar a imortalidade em vão. Sua vida era infinita, não porque se estendesse indefinidamente no tempo mas porque, como um campo visual, não tinha limite. Tal qual outras coisas preciosas, ela não se media pela extensão mas pela intensidade. Louvemos e contemos no número dos felizes os que bem empregaram o parco tempo que a sorte lhes emprestou. Bom não é viver, mas viver bem. Ele viu a luz do dia, teve amigos, trabalhou, amou e floresceu. Às vezes anuviava-se o seu brilho. Às vezes era radiante. Quem pergunta quanto tempo viveu? Viveu e ilumina nossa memória.
De: CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p.57.
A morte nada foi para ele, pois enquanto vivia não havia a morte e, agora que há, ele já não vive. Não temer a morte tornava-lhe a vida mais leve e o poupava de desejar a imortalidade em vão. Sua vida era infinita, não porque se estendesse indefinidamente no tempo mas porque, como um campo visual, não tinha limite. Tal qual outras coisas preciosas, ela não se media pela extensão mas pela intensidade. Louvemos e contemos no número dos felizes os que bem empregaram o parco tempo que a sorte lhes emprestou. Bom não é viver, mas viver bem. Ele viu a luz do dia, teve amigos, trabalhou, amou e floresceu. Às vezes anuviava-se o seu brilho. Às vezes era radiante. Quem pergunta quanto tempo viveu? Viveu e ilumina nossa memória.
De: CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p.57.
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Poema
24.10.07
Mark Twain: sobre a morte
Uma declaração de Mark Twain, citada por Dawkins na mesma página em que cita o pensamento de Russell que postei ontem:
Não temo a morte. Já fui morto por bilhões e bilhões de anos, antes de nascer, e isso não me causou o menor incômodo.
Citada por DAWKINS, R. The God delusion. Boston: Houghton Mifflin Company, 2006, p.354.
Não temo a morte. Já fui morto por bilhões e bilhões de anos, antes de nascer, e isso não me causou o menor incômodo.
Citada por DAWKINS, R. The God delusion. Boston: Houghton Mifflin Company, 2006, p.354.
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Morte
Bertrand Russell: de No que acredito
Bertrand Russell, trecho de “No que acredito”:
Acredito que ao morrer apodrecerei e nada do meu eu sobreviverá. Não sou jovem e amo a vida. Mas desdenho tremer de terror à idéia do aniquilamento. A felicidade não se torna menos verdadeira por ter que chegar ao fim, e o pensamento e o amor não perdem o seu valor por não durarem para sempre. Muitos homens já se portaram orgulhosamente no cadafalso; certamente o mesmo orgulho deveria nos ensinar a pensar verdadeiramente sobre o posto do homem no mundo. Mesmo se inicialmente as janelas abertas da ciência fazem-nos tremer após o quente aconchego dos mitos antropomórficos tradicionais, no final o ar fresco revigora, e os grandes espaços têm o seu próprio esplendor.
Citado por DAWKINS, R. The God delusion. Boston: Houghton Mifflin Company, 2006, p.354.
Acredito que ao morrer apodrecerei e nada do meu eu sobreviverá. Não sou jovem e amo a vida. Mas desdenho tremer de terror à idéia do aniquilamento. A felicidade não se torna menos verdadeira por ter que chegar ao fim, e o pensamento e o amor não perdem o seu valor por não durarem para sempre. Muitos homens já se portaram orgulhosamente no cadafalso; certamente o mesmo orgulho deveria nos ensinar a pensar verdadeiramente sobre o posto do homem no mundo. Mesmo se inicialmente as janelas abertas da ciência fazem-nos tremer após o quente aconchego dos mitos antropomórficos tradicionais, no final o ar fresco revigora, e os grandes espaços têm o seu próprio esplendor.
Citado por DAWKINS, R. The God delusion. Boston: Houghton Mifflin Company, 2006, p.354.
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21.10.07
Sobre "Deus, um delírio"
O seguinte artigo foi publicado sábado, 20 de outubro, na minha coluna da Ilustrada da Folha de São Paulo:
Sobre "Deus, um Delírio"
NA COLUNA passada, fiquei de comentar o livro de Richard Dawkins "Deus, um Delírio". Afirmei então que o considerava um livro desigual, mas que merecia ser lido. Trata-se de uma obra ambiciosa, pois pretende demonstrar, para um público culto, porém leigo, não apenas que a probabilidade de que Deus não exista é infinitamente maior do que a probabilidade de que exista, mas que o ateísmo é uma posição eticamente superior ao teísmo.
Segue-se que uma sociedade democrática composta de indivíduos que, em sua maioria, conseguissem dispensar a religião -ou, pelo menos, torná-la assunto puramente privado- teria grande probabilidade de ser melhor e mais feliz do que as sociedades em que isso não havia ocorrido.
Tal convicção explica por que "Deus um Delírio" não tem apenas um objetivo teórico, mas também -e sobretudo- prático. Não se trata, para o seu autor, meramente de interpretar, mas também de transformar o mundo. Daí o seu caráter militante.
Muito esquematicamente, pode-se dizer que o esforço de Dawkins se encaminha por três vertentes diferentes, porém interligadas: a do esclarecimento de determinados conceitos, a da crítica ao teísmo e a da defesa do ateísmo.
No que diz respeito ao primeiro ponto -ao qual, dadas as limitações espaciais, terei que me limitar, ao menos no presente artigo-, Dawkins faz algumas distinções como, por exemplo, entre deísmo, panteísmo e teísmo, entre as diferentes modalidades de agnosticismo etc. O sentido dessas distinções elementares não é meramente didático, mas polêmico.
Explico. Creio não ter sido o único adolescente que, ao manifestar certas dúvidas, ouvia dos adultos reprimendas como: "Quem é você para duvidar da existência de Deus, quando os maiores gênios da humanidade, como Einstein, acreditam nela?".
Pois bem, as distinções feitas por Dawkins se dirigem contra esse tipo de argumento. É que grande parte dos pensadores citados como crentes em Deus são, na verdade, deístas ou panteístas; e nem estes nem aqueles acreditam num Deus pessoal, tal qual o das religiões abraâmicas, que são o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Para a maior parte dos deístas, "Deus" é o nome do princípio e causa do universo, no qual, porém, uma vez criado, jamais interfere. Sendo assim, o Deus dos deístas não produz milagres nem se interessa pelos homens.
Pode haver algo mais distante do Deus do Velho ou do Novo Testamento? Sim: o Deus dos panteístas, que se identifica com o próprio universo, a natureza ou as leis da natureza. Tal é o Deus de Einstein, que, neste ponto, se identifica, segundo ele mesmo, com Spinoza.
A rigor, pode-se, portanto, dizer que o descobridor da teoria da relatividade se encontra muito mais próximo do ateísmo do que do Deus de Abraão. "Não creio num Deus pessoal", afirmou ele certa vez, "e jamais neguei isso: sempre o exprimi com clareza".
Como, então, forjou-se o mito da religiosidade de Einstein? Entre as razões para se pensar que ele acreditava em Deus está, sem dúvida, o seu uso metafórico -por puro charme- dessa palavra. Algumas das suas mais famosas declarações são "Deus não joga dados", que, como diz Dawkins, pode ser interpretada como "o acaso não se encontra no cerne das coisas", ou a pergunta retórica "Deus tinha escolha, ao criar o universo?", que se pode entender como "o universo poderia ter começado de outro modo?"
Porém, mais importante é que, como Dawkins observa, com razão, é comum entre os cientistas e racionalistas uma reação quase mística -mas que nada tem de sobrenatural- à natureza e ao universo. "Se há algo em mim que pode ser considerado religioso", disse Einstein, "é a admiração incontida pela estrutura do mundo, na medida em que a ciência é capaz de revelá-la".
O fato de que há, no fundo, uma incompatibilidade entre essa atitude e a religião é expresso pela perplexidade que o astrônomo Carl Sagan, citado por Dawkins, exprime ao se perguntar: "Como é possível que nenhuma grande religião tenha olhado para a ciência e concluído: "Isto é melhor do que pensávamos! O universo é muito maior do que nossos profetas haviam dito, mais grandioso, mais sutil, mais elegante'?".
Confesso sentir um espanto semelhante ao de Sagan. Ademais, parece-me que, para cada ser humano, o mais grandioso é ter a consciência de tal grandiosidade, de tal maravilha e de tal mistério.
Sobre "Deus, um Delírio"
NA COLUNA passada, fiquei de comentar o livro de Richard Dawkins "Deus, um Delírio". Afirmei então que o considerava um livro desigual, mas que merecia ser lido. Trata-se de uma obra ambiciosa, pois pretende demonstrar, para um público culto, porém leigo, não apenas que a probabilidade de que Deus não exista é infinitamente maior do que a probabilidade de que exista, mas que o ateísmo é uma posição eticamente superior ao teísmo.
Segue-se que uma sociedade democrática composta de indivíduos que, em sua maioria, conseguissem dispensar a religião -ou, pelo menos, torná-la assunto puramente privado- teria grande probabilidade de ser melhor e mais feliz do que as sociedades em que isso não havia ocorrido.
Tal convicção explica por que "Deus um Delírio" não tem apenas um objetivo teórico, mas também -e sobretudo- prático. Não se trata, para o seu autor, meramente de interpretar, mas também de transformar o mundo. Daí o seu caráter militante.
Muito esquematicamente, pode-se dizer que o esforço de Dawkins se encaminha por três vertentes diferentes, porém interligadas: a do esclarecimento de determinados conceitos, a da crítica ao teísmo e a da defesa do ateísmo.
No que diz respeito ao primeiro ponto -ao qual, dadas as limitações espaciais, terei que me limitar, ao menos no presente artigo-, Dawkins faz algumas distinções como, por exemplo, entre deísmo, panteísmo e teísmo, entre as diferentes modalidades de agnosticismo etc. O sentido dessas distinções elementares não é meramente didático, mas polêmico.
Explico. Creio não ter sido o único adolescente que, ao manifestar certas dúvidas, ouvia dos adultos reprimendas como: "Quem é você para duvidar da existência de Deus, quando os maiores gênios da humanidade, como Einstein, acreditam nela?".
Pois bem, as distinções feitas por Dawkins se dirigem contra esse tipo de argumento. É que grande parte dos pensadores citados como crentes em Deus são, na verdade, deístas ou panteístas; e nem estes nem aqueles acreditam num Deus pessoal, tal qual o das religiões abraâmicas, que são o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Para a maior parte dos deístas, "Deus" é o nome do princípio e causa do universo, no qual, porém, uma vez criado, jamais interfere. Sendo assim, o Deus dos deístas não produz milagres nem se interessa pelos homens.
Pode haver algo mais distante do Deus do Velho ou do Novo Testamento? Sim: o Deus dos panteístas, que se identifica com o próprio universo, a natureza ou as leis da natureza. Tal é o Deus de Einstein, que, neste ponto, se identifica, segundo ele mesmo, com Spinoza.
A rigor, pode-se, portanto, dizer que o descobridor da teoria da relatividade se encontra muito mais próximo do ateísmo do que do Deus de Abraão. "Não creio num Deus pessoal", afirmou ele certa vez, "e jamais neguei isso: sempre o exprimi com clareza".
Como, então, forjou-se o mito da religiosidade de Einstein? Entre as razões para se pensar que ele acreditava em Deus está, sem dúvida, o seu uso metafórico -por puro charme- dessa palavra. Algumas das suas mais famosas declarações são "Deus não joga dados", que, como diz Dawkins, pode ser interpretada como "o acaso não se encontra no cerne das coisas", ou a pergunta retórica "Deus tinha escolha, ao criar o universo?", que se pode entender como "o universo poderia ter começado de outro modo?"
Porém, mais importante é que, como Dawkins observa, com razão, é comum entre os cientistas e racionalistas uma reação quase mística -mas que nada tem de sobrenatural- à natureza e ao universo. "Se há algo em mim que pode ser considerado religioso", disse Einstein, "é a admiração incontida pela estrutura do mundo, na medida em que a ciência é capaz de revelá-la".
O fato de que há, no fundo, uma incompatibilidade entre essa atitude e a religião é expresso pela perplexidade que o astrônomo Carl Sagan, citado por Dawkins, exprime ao se perguntar: "Como é possível que nenhuma grande religião tenha olhado para a ciência e concluído: "Isto é melhor do que pensávamos! O universo é muito maior do que nossos profetas haviam dito, mais grandioso, mais sutil, mais elegante'?".
Confesso sentir um espanto semelhante ao de Sagan. Ademais, parece-me que, para cada ser humano, o mais grandioso é ter a consciência de tal grandiosidade, de tal maravilha e de tal mistério.
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18.10.07
Oswald de Andrade: Relógio
Relógio
As coisas são
As coisas vêm
As coisas vão
As coisas
Vão e vêm
Não em vão
As horas
Vão e vêm
Não em vão
As coisas são
As coisas vêm
As coisas vão
As coisas
Vão e vêm
Não em vão
As horas
Vão e vêm
Não em vão
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Poema
16.10.07
Fernando Pinto do Amaral: "Arte poética"
Do poeta português Fernando Pinto do Amaral, a bela “Arte poética”:
Arte Poética
Palavras,
só palavras, nada mais
que a vã matéria, o seu sentido
eco de muitos ecos, repetido
reflexo de poderes tão irreais
como essas emoções graças às quais
terei de vez em quando pretendido
dizer um só segredo a um só ouvido
ciente de que nunca são iguais
os segredos e ouvidos que procuro
às cegas neste mar sempre obscuro
onde a voz deságua como um rio
sem nascente nem foz - apenas uma
incerta confidência que se esfuma
e só foi minha enquanto me fugiu.
Arte Poética
Palavras,
só palavras, nada mais
que a vã matéria, o seu sentido
eco de muitos ecos, repetido
reflexo de poderes tão irreais
como essas emoções graças às quais
terei de vez em quando pretendido
dizer um só segredo a um só ouvido
ciente de que nunca são iguais
os segredos e ouvidos que procuro
às cegas neste mar sempre obscuro
onde a voz deságua como um rio
sem nascente nem foz - apenas uma
incerta confidência que se esfuma
e só foi minha enquanto me fugiu.
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Poema
10.10.07
Francisco Bosco: O indireto afetivo na linguagem do carioca
O seguinte ensaio é uma das muitas pérolas do maravilhoso livro do Francisco Bosco, Banalogias:
O Indireto Afetivo na Linguagem do Carioca
No Rio de Janeiro contemporâneo há uma figura lingüístico-afetiva que pontua as relações sociais entre cariocas, ou entre um carioca e um estrangeiro. Trata-se – e todo carioca ou qualquer pessoa que já esteve no Rio o reconhecerá – do famigerado
diálogo:
— Rapaz, há quanto tempo!
— Pois é, que bom te ver!
— Poxa, a gente tinha que se falar mais!
— É mesmo, vou te ligar.
— Mas liga mesmo, pra gente se ver, botar o papo em dia.
— Não, pode deixar, vou ligar com certeza.
— Beleza, então. Adorei te ver!
— Eu também, te ligo então. Um grande abraço!
Isso ou variações.
Pois para muitos cariocas, que já estão mais do que familiarizados com o diálogo, e talvez sobretudo para os não-cariocas, que constataram perplexos o encaminhamento futuro dessas promessas, essa figura lingüística acaba por se configurar como uma situação de constrangimento. Afinal, todos sabemos que não haverá telefonema algum. Todos, literalmente, a começar pelos próprios personagens da conversa. E a fórmula do constrangimento, já se disse, é precisamente esta: todos sabem que todos sabem e entretanto ninguém o pode admitir. Curiosas sutilezas sociais. O que impede que se desencubra o não-dito do diálogo é que esse não-dito é sentido como uma mentira: não haverá telefonema, um não ligará para o outro, e vice-versa. Assim, o não-dito é mantido e desenvolvido, cria-se uma conversa sustentando a sua tensão. Está configurada a situação constrangedora.
Mas o que faz com que a situação seja por muitos experimentada como constrangedora é justamente o entendimento desse não-dito, dessa promessa que sabemos sem fundos ("te ligo, com certeza"), como sendo uma mentira. Fulano disse que ia ligar, mas não ligou: mentira, portanto. Pior: fulano assegurou que ia ligar, enfatizou, sublinhou a promessa com todas as inflexões e entonações da convicção. Mentira ainda mais grave, gravíssima.
Entretanto, tudo muda se pensarmos o recalcado do diálogo, o não-dito, não como uma mentira, mas como um modo indireto da verdade. Assim, o horizonte em que a promessa passa a ser verdadeira não é mais a sua efetivação posterior, mas o que, dentro dela, vibra afetivamente: "te ligo" passa a significar "gosto de você", "vou ligar com certeza" traduz-se por "gosto muito de você", e assim por diante, a intensidade afetiva aumentando à proporção das entonações e expressões de segurança. Fernando Pessoa dizia que "a linguagem pode mentir, mas a voz não". Ora, nesse fragmento de carioquês a verdade está na voz, no afeto que nela pulsa e se manifesta explicitamente. Mas, cabe então a pergunta: por que engajar esse afeto em uma promessa sem fundos, que se sabe não será cumprida? Por que comprometer sua verdade associando-o a uma efetivação que não ocorrerá?
A origem dessa curiosa figura sócio-lingüístico-afetiva é uma outra figura: uma sutil transformação da amizade que costuma se dar numa das curvas impostas pelo tempo a determinadas relações. Essa transformação ocorre quando uma amizade intensa passa de um estado de intimidade diariamente atualizada – conversas freqüentes, presença física constante, confissões, vidas em permanente comunicação – para um estado de amizade em que a distância se interpõe e dispersa as trajetórias dos amigos, porém algo da intimidade da outra configuração resiste a essa nova forma e se mantém intenso, incólume à distância. Esse "algo da intimidade" se transforma em um afeto constante que, adormecido e escondido pela distância, emerge efusivamente na presença do amigo. Afeto a distância. Quase-intimidade que se evidencia, para deleite dos amigos, a cada vez que o acaso propicia um encontro. Mas, em geral, os movimentos divergentes das trajetórias de vida são irreversíveis, na medida em que atingem o processo de subjetivação de cada um dos amigos: estes já não são mais os mesmos, pensam e sentem de forma diferente, são outros, não podem ter a cumplicidade que tinham antes, não da mesma forma. O que resiste, o afeto, é resultado de uma intimidade de tal modo condensada que, por excesso, atingiu como que uma existência própria, interpessoal, portanto imune às mudanças de vida dos amigos.
Perde-se a intimidade, já não se sabe tão bem da vida do outro, mas fica, incorruptível, o afeto, que vem à tona nos encontros fortuitos. Pois, justamente, é essa consciência (que pode ser apenas intuída, porém claramente) da perda irreversível da intimidade, da impossível recuperação da amizade, que virá a produzir o diálogo de que estamos tratando. O afeto é verdadeiro, é uma positividade, mas há em sua formação uma perda, uma impossibilidade: a da intimidade perdida. Isto é, telefonar seria um erro, seria apostar na improvável recuperação do estado antigo da amizade. Doravante a amizade é isso: o afeto efusivo, a alegria dos encontros fortuitos – que entretanto tenderia a perder a efusão se se tentasse um movimento restaurador. O recalcado do diálogo, o não-dito, se forma nesse ponto: é que seria duro demais trazer à tona o núcleo de perda e de impossibilidade que se encontra na formação de um afeto tão positivo, tão efusivamente manifestado. Opta-se por escondê-lo, e para tanto faz-se necessário mascará-lo com a promessa da restauração: "Vou te ligar." Quanto maior a consciência ou a intuição — da impossibilidade, e de quanta perda ela encerra, maior a necessidade de mascaramento: "Vou te ligar, com certeza."
Assim, curiosamente, quanto maior a mentira, maior a verdade. A verdade do afeto não se subordina à efetivação da promessa, mas se manifesta, de forma indireta, através do prometido: "Vou te ligar, com certeza" significa apenas "Gosto muito de você". O não cumprimento da promessa significa a consciência (mesmo que intuitiva) da impossibilidade de restauração da amizade, e o recalcado do diálogo é o mascaramento protetor de um afeto delicado. Pois a verdade nua e crua, desprotegida, poderia ser muito... constrangedora: "Rapaz, há quanto tempo! Veja, gosto de você, fomos muito íntimos, mas hoje somos bem diferentes, não acredito que possamos retomar a antiga cumplicidade, por isso vamos apenas gozar desse momento de alegria fortuita, sem fazer promessas que não poderemos cumprir." Logo o constrangimento também surge de um excesso de dizer, e não apenas de um não-dito gritante. Na verdade, nosso famigerado diálogo carioca só se torna constrangedor se sua verdade nuclear – o afeto incorruptível – não for forte o suficiente para sustentar, à base de cumplicidade, a tensão do mascaramento. Quando o mascaramento é bem-feito, o diálogo transcorre sob intensa e efêmera efusão afetiva – e somente na despedida passa por nós a brisa de uma melancolia.
De: BOSCO, Francisco. Banalogias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
O Indireto Afetivo na Linguagem do Carioca
No Rio de Janeiro contemporâneo há uma figura lingüístico-afetiva que pontua as relações sociais entre cariocas, ou entre um carioca e um estrangeiro. Trata-se – e todo carioca ou qualquer pessoa que já esteve no Rio o reconhecerá – do famigerado
diálogo:
— Rapaz, há quanto tempo!
— Pois é, que bom te ver!
— Poxa, a gente tinha que se falar mais!
— É mesmo, vou te ligar.
— Mas liga mesmo, pra gente se ver, botar o papo em dia.
— Não, pode deixar, vou ligar com certeza.
— Beleza, então. Adorei te ver!
— Eu também, te ligo então. Um grande abraço!
Isso ou variações.
Pois para muitos cariocas, que já estão mais do que familiarizados com o diálogo, e talvez sobretudo para os não-cariocas, que constataram perplexos o encaminhamento futuro dessas promessas, essa figura lingüística acaba por se configurar como uma situação de constrangimento. Afinal, todos sabemos que não haverá telefonema algum. Todos, literalmente, a começar pelos próprios personagens da conversa. E a fórmula do constrangimento, já se disse, é precisamente esta: todos sabem que todos sabem e entretanto ninguém o pode admitir. Curiosas sutilezas sociais. O que impede que se desencubra o não-dito do diálogo é que esse não-dito é sentido como uma mentira: não haverá telefonema, um não ligará para o outro, e vice-versa. Assim, o não-dito é mantido e desenvolvido, cria-se uma conversa sustentando a sua tensão. Está configurada a situação constrangedora.
Mas o que faz com que a situação seja por muitos experimentada como constrangedora é justamente o entendimento desse não-dito, dessa promessa que sabemos sem fundos ("te ligo, com certeza"), como sendo uma mentira. Fulano disse que ia ligar, mas não ligou: mentira, portanto. Pior: fulano assegurou que ia ligar, enfatizou, sublinhou a promessa com todas as inflexões e entonações da convicção. Mentira ainda mais grave, gravíssima.
Entretanto, tudo muda se pensarmos o recalcado do diálogo, o não-dito, não como uma mentira, mas como um modo indireto da verdade. Assim, o horizonte em que a promessa passa a ser verdadeira não é mais a sua efetivação posterior, mas o que, dentro dela, vibra afetivamente: "te ligo" passa a significar "gosto de você", "vou ligar com certeza" traduz-se por "gosto muito de você", e assim por diante, a intensidade afetiva aumentando à proporção das entonações e expressões de segurança. Fernando Pessoa dizia que "a linguagem pode mentir, mas a voz não". Ora, nesse fragmento de carioquês a verdade está na voz, no afeto que nela pulsa e se manifesta explicitamente. Mas, cabe então a pergunta: por que engajar esse afeto em uma promessa sem fundos, que se sabe não será cumprida? Por que comprometer sua verdade associando-o a uma efetivação que não ocorrerá?
A origem dessa curiosa figura sócio-lingüístico-afetiva é uma outra figura: uma sutil transformação da amizade que costuma se dar numa das curvas impostas pelo tempo a determinadas relações. Essa transformação ocorre quando uma amizade intensa passa de um estado de intimidade diariamente atualizada – conversas freqüentes, presença física constante, confissões, vidas em permanente comunicação – para um estado de amizade em que a distância se interpõe e dispersa as trajetórias dos amigos, porém algo da intimidade da outra configuração resiste a essa nova forma e se mantém intenso, incólume à distância. Esse "algo da intimidade" se transforma em um afeto constante que, adormecido e escondido pela distância, emerge efusivamente na presença do amigo. Afeto a distância. Quase-intimidade que se evidencia, para deleite dos amigos, a cada vez que o acaso propicia um encontro. Mas, em geral, os movimentos divergentes das trajetórias de vida são irreversíveis, na medida em que atingem o processo de subjetivação de cada um dos amigos: estes já não são mais os mesmos, pensam e sentem de forma diferente, são outros, não podem ter a cumplicidade que tinham antes, não da mesma forma. O que resiste, o afeto, é resultado de uma intimidade de tal modo condensada que, por excesso, atingiu como que uma existência própria, interpessoal, portanto imune às mudanças de vida dos amigos.
Perde-se a intimidade, já não se sabe tão bem da vida do outro, mas fica, incorruptível, o afeto, que vem à tona nos encontros fortuitos. Pois, justamente, é essa consciência (que pode ser apenas intuída, porém claramente) da perda irreversível da intimidade, da impossível recuperação da amizade, que virá a produzir o diálogo de que estamos tratando. O afeto é verdadeiro, é uma positividade, mas há em sua formação uma perda, uma impossibilidade: a da intimidade perdida. Isto é, telefonar seria um erro, seria apostar na improvável recuperação do estado antigo da amizade. Doravante a amizade é isso: o afeto efusivo, a alegria dos encontros fortuitos – que entretanto tenderia a perder a efusão se se tentasse um movimento restaurador. O recalcado do diálogo, o não-dito, se forma nesse ponto: é que seria duro demais trazer à tona o núcleo de perda e de impossibilidade que se encontra na formação de um afeto tão positivo, tão efusivamente manifestado. Opta-se por escondê-lo, e para tanto faz-se necessário mascará-lo com a promessa da restauração: "Vou te ligar." Quanto maior a consciência ou a intuição — da impossibilidade, e de quanta perda ela encerra, maior a necessidade de mascaramento: "Vou te ligar, com certeza."
Assim, curiosamente, quanto maior a mentira, maior a verdade. A verdade do afeto não se subordina à efetivação da promessa, mas se manifesta, de forma indireta, através do prometido: "Vou te ligar, com certeza" significa apenas "Gosto muito de você". O não cumprimento da promessa significa a consciência (mesmo que intuitiva) da impossibilidade de restauração da amizade, e o recalcado do diálogo é o mascaramento protetor de um afeto delicado. Pois a verdade nua e crua, desprotegida, poderia ser muito... constrangedora: "Rapaz, há quanto tempo! Veja, gosto de você, fomos muito íntimos, mas hoje somos bem diferentes, não acredito que possamos retomar a antiga cumplicidade, por isso vamos apenas gozar desse momento de alegria fortuita, sem fazer promessas que não poderemos cumprir." Logo o constrangimento também surge de um excesso de dizer, e não apenas de um não-dito gritante. Na verdade, nosso famigerado diálogo carioca só se torna constrangedor se sua verdade nuclear – o afeto incorruptível – não for forte o suficiente para sustentar, à base de cumplicidade, a tensão do mascaramento. Quando o mascaramento é bem-feito, o diálogo transcorre sob intensa e efêmera efusão afetiva – e somente na despedida passa por nós a brisa de uma melancolia.
De: BOSCO, Francisco. Banalogias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
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Francisco Bosco,
Rio de Janeiro
7.10.07
A crítica e a religião
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 6 de Outubro de 2007:
A crítica e a religião
RECENTEMENTE, FORAM publicados vários livros que contestam a religião e mesmo a crença na existência de Deus. Creio que o de Richard Dawkins ("Deus, um Delírio"; Cia. das Letras, 2007; 528 pág., R$ 54) é, até agora, o mais conhecido e discutido, pelo menos no Brasil. Confesso que, inicialmente, não me senti muito animado a lê-lo. É que, tendo conferido algumas recensões de "Deus, um Delírio", eu havia ficado com a impressão de que o forte desse livro era tentar dar uma explicação darwinista das religiões e da crença na existência de Deus.
Ora, embora eu tenha uma admiração imensa pela teoria científica da evolução das espécies, sempre considerei excessivamente grosseiras todas as tentativas que até hoje conheci de exportá-la para o campo da sociedade humana.
Entretanto, alguns excelentes artigos, dentre os quais um do próprio Dawkins e outro do Marcelo Coelho (ambos na Ilustrada de 25/08), acabaram por atiçar a minha curiosidade a tal ponto que, na semana passada, decidi ler "Deus, um Delírio". Resultado: cheguei à conclusão de que se trata, em suma, de um livro desigual, mas que certamente merece ser lido.
Deixarei para comentar o livro do Dawkins outro dia, pois hoje quero tocar em algumas questões incidentais. Há quem se surpreenda com o fato de que, aparentemente, foram editados mais livros anti-religiosos na primeira década do século 21 do que nas últimas cinco décadas do século 20. Só dos livros traduzidos para o português, lembro-me, além do de Dawkins, do de Michel Onfray ("Tratado de Ateologia"; Martins Fontes, 2006), do de Daniel Dennet ("Quebrando o Encanto"; Globo, 2006), e do de Christopher Hitchens ("Deus Não É Grande"; Ediouro, 2007).
A que se deve esse fenômeno editorial? Em grande parte, sem dúvida, à percepção do risco que correm os direitos humanos em toda parte do mundo – ou melhor, à percepção do risco que corre o próprio mundo –, tanto em conseqüência dos atentados terroristas perpetrados por extremistas religiosos muçulmanos quanto em conseqüência do aumento da influência dos extremistas religiosos cristãos sobre a política interna e externa norte-americana.
Mas a questão realmente interessante talvez seja outra: por que é que, ao contrário do que ocorreu nos séculos 18 e 19, é difícil lembrar algum livro desse tipo que se tenha destacado, no século 20, na Europa ou nos Estados Unidos? Houve, sem dúvida, inúmeros ateus e agnósticos entre os cientistas, filósofos, escritores e artistas da época, mas, com a exceção de Bertrand Russell, não me ocorre nenhum pensador importante que tenha escrito específica e explicitamente contra a religião.
Será talvez que se haja pensado, como Marx, que a crítica da religião já se tivesse completado? A melhor descrição que conheço do estado de espírito em que, no que toca a religião, a maior parte dos intelectuais se encontrava no final do século 20 é a que o filósofo norte-americano John Searle fez, no seu admirável livro "Mind, Language and Society", de 1998.
Para ele, o mundo moderno simplesmente se desmistificara. Um exemplo dessa desmistificação é, segundo ele, a história de são Miniato, em honra ao qual ergue-se a igreja de San Miniato, em Florença. São Miniato foi um mártir cristão. Tendo sido condenado à morte, ele sobreviveu ao ataque de leões na arena, mas acabou sendo decapitado. Levantou-se então, pôs a cabeça debaixo do braço, saiu da arena, atravessou o rio e saiu da cidade. Em seguida, subiu até o topo do morro ao sul do Arno, e lá se sentou. Nesse lugar foi construída a sua igreja.
Segundo Searle, hoje os guias da cidade têm até vergonha de contar essa história. "O que interessa", diz, "não é o fato de que a consideramos falsa, mas o fato de que não a levamos a sério nem mesmo como uma possibilidade".
"Hoje em dia", observava Searle, "até evocar a questão da existência de Deus é considerado de mau gosto. Os assuntos religiosos são como os que dizem respeito às preferências sexuais de cada qual: não devem ser discutidos em público, e mesmo as questões abstratas só são discutidas por chatos".
Searle escreveu o texto há menos de dez anos; no entanto, ele já parece pertencer a outra época. Em 2007, é evidente que, longe de se limitarem à esfera privada, algumas religiões alimentam o sonho teocrático de privatizar o espaço público e policiar o privado. Assim, é importante que se escrevam e discutam livros como o de Dawkins.
A crítica e a religião
RECENTEMENTE, FORAM publicados vários livros que contestam a religião e mesmo a crença na existência de Deus. Creio que o de Richard Dawkins ("Deus, um Delírio"; Cia. das Letras, 2007; 528 pág., R$ 54) é, até agora, o mais conhecido e discutido, pelo menos no Brasil. Confesso que, inicialmente, não me senti muito animado a lê-lo. É que, tendo conferido algumas recensões de "Deus, um Delírio", eu havia ficado com a impressão de que o forte desse livro era tentar dar uma explicação darwinista das religiões e da crença na existência de Deus.
Ora, embora eu tenha uma admiração imensa pela teoria científica da evolução das espécies, sempre considerei excessivamente grosseiras todas as tentativas que até hoje conheci de exportá-la para o campo da sociedade humana.
Entretanto, alguns excelentes artigos, dentre os quais um do próprio Dawkins e outro do Marcelo Coelho (ambos na Ilustrada de 25/08), acabaram por atiçar a minha curiosidade a tal ponto que, na semana passada, decidi ler "Deus, um Delírio". Resultado: cheguei à conclusão de que se trata, em suma, de um livro desigual, mas que certamente merece ser lido.
Deixarei para comentar o livro do Dawkins outro dia, pois hoje quero tocar em algumas questões incidentais. Há quem se surpreenda com o fato de que, aparentemente, foram editados mais livros anti-religiosos na primeira década do século 21 do que nas últimas cinco décadas do século 20. Só dos livros traduzidos para o português, lembro-me, além do de Dawkins, do de Michel Onfray ("Tratado de Ateologia"; Martins Fontes, 2006), do de Daniel Dennet ("Quebrando o Encanto"; Globo, 2006), e do de Christopher Hitchens ("Deus Não É Grande"; Ediouro, 2007).
A que se deve esse fenômeno editorial? Em grande parte, sem dúvida, à percepção do risco que correm os direitos humanos em toda parte do mundo – ou melhor, à percepção do risco que corre o próprio mundo –, tanto em conseqüência dos atentados terroristas perpetrados por extremistas religiosos muçulmanos quanto em conseqüência do aumento da influência dos extremistas religiosos cristãos sobre a política interna e externa norte-americana.
Mas a questão realmente interessante talvez seja outra: por que é que, ao contrário do que ocorreu nos séculos 18 e 19, é difícil lembrar algum livro desse tipo que se tenha destacado, no século 20, na Europa ou nos Estados Unidos? Houve, sem dúvida, inúmeros ateus e agnósticos entre os cientistas, filósofos, escritores e artistas da época, mas, com a exceção de Bertrand Russell, não me ocorre nenhum pensador importante que tenha escrito específica e explicitamente contra a religião.
Será talvez que se haja pensado, como Marx, que a crítica da religião já se tivesse completado? A melhor descrição que conheço do estado de espírito em que, no que toca a religião, a maior parte dos intelectuais se encontrava no final do século 20 é a que o filósofo norte-americano John Searle fez, no seu admirável livro "Mind, Language and Society", de 1998.
Para ele, o mundo moderno simplesmente se desmistificara. Um exemplo dessa desmistificação é, segundo ele, a história de são Miniato, em honra ao qual ergue-se a igreja de San Miniato, em Florença. São Miniato foi um mártir cristão. Tendo sido condenado à morte, ele sobreviveu ao ataque de leões na arena, mas acabou sendo decapitado. Levantou-se então, pôs a cabeça debaixo do braço, saiu da arena, atravessou o rio e saiu da cidade. Em seguida, subiu até o topo do morro ao sul do Arno, e lá se sentou. Nesse lugar foi construída a sua igreja.
Segundo Searle, hoje os guias da cidade têm até vergonha de contar essa história. "O que interessa", diz, "não é o fato de que a consideramos falsa, mas o fato de que não a levamos a sério nem mesmo como uma possibilidade".
"Hoje em dia", observava Searle, "até evocar a questão da existência de Deus é considerado de mau gosto. Os assuntos religiosos são como os que dizem respeito às preferências sexuais de cada qual: não devem ser discutidos em público, e mesmo as questões abstratas só são discutidas por chatos".
Searle escreveu o texto há menos de dez anos; no entanto, ele já parece pertencer a outra época. Em 2007, é evidente que, longe de se limitarem à esfera privada, algumas religiões alimentam o sonho teocrático de privatizar o espaço público e policiar o privado. Assim, é importante que se escrevam e discutam livros como o de Dawkins.
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4.10.07
Hudson Carvalho: "Tropa de Elite"
Um artigo do jornalista Hudson Carvalho, especialmente para o nosso blog:
“Tropa de Elite”
Assisti a “Tropa de Elite” atendendo a convite generoso da secretária estadual de Cultura, Adriana Rattes, na abertura do Festival de Cinema do Rio. No caso, esse inusitado preâmbulo faz-se necessário para me isentar da suspeição de ter visto o filme nos escaninhos da abjeta pirataria. Feita a ressalva, ao filme, pois.
Há várias maneiras de se ver “Tropa de Elite”. Como não sou crítico de cinema, de nada, nem de ninguém, interessam-me mais os aspectos políticos e o ambiente sociológico de segurança e de violência que o filme reflete do que propriamente a obra.
Como filme, “Tropa de Elite” não é nenhuma Brastemp. Nos mesmos moldes, por exemplo, cinematograficamente falando, “Cidade de Deus” é bem melhor, mais consistente e criativo. Mostra melhor o que revela.
Já “Tropa de Elite”, em minha desqualificada visão cinematográfica, perde-se em subtramas pouco densas, ora para enfatizar o infernal embrutecimento do personagem principal mesmo em domínio doméstico, ora para generalizar a podridão que retrata. Na ânsia de culpar igualmente a sociedade perfumada, o aparato policial, os políticos sem escrúpulo e a bandidagem ensandecida, “Tropa de Elite” abusa de soluções generalistas e simplistas. Se fosse um filme americano sobre a SWAT, provavelmente seria depreciado.
Não li o livro “Elite da Tropa” que originou o filme. Disse-me, porém, o ex-capitão do BOPE, Rodrigo Pimentel, co-autor do livro e do roteiro do filme, que ambos são bem diferentes. Considerando-se, entretanto, que livro e filme, embora fantasiosos, tenham um grande embasamento na realidade, podemos observar a situação espelhada como gravíssima e preocupante. Não por apresentar uma novidade; mas, sim, pela dimensão.
Sobre a superfície do universo criminal há farto material ficcional e respaldo cotidiano nas ruas e na mídia. Já as mazelas da polícia, mesmo que também ricamente documentada, não deixam de causar perplexidade no filme. O que tem de mais virtuoso em “Tropa de Elite” é a crua exposição das entranhas de um importante corpo de segurança.
A rigor, lato sensu, a polícia se divide entre corruptos, ladrões, assassinos, torturadores etc. Ou seja, não há mocinhos, não há agentes públicos agindo dentro da lei. No filme, os supostos mocinhos são os policiais boçais que torturam e matam, em contraponto aos policiais que se corrompem, roubam e achacam uma sociedade conivente com o tráfico de drogas, mas que espia sua culpa social, caricaturalmente, com florais assistencialistas.
É certo que tanto na sociedade quanto nos engenhos policiais há gente de outra estirpe. Não há como deixar de imaginar, entretanto, que o quadro real policialesco seja assemelhado ao narrado no filme. Ou pior. Se assim consideramos e se assim é, será que temos soluções realísticas para os problemas? Ou a sociedade e os poderes públicos perderam definitivamente as condições de cuidar dessa moléstia?
O mérito de “Tropa de Elite” não é provar que o cinema nacional evoluiu e há muito equacionou a qualidade de som dos seus filmes. O mérito de “Tropa de Elite” é ensejar uma discussão sobre a natureza das nossas polícias e os papéis que elas têm que cumprir e sob que regras. E isso não pode mais tardar.
Hudson Carvalho
“Tropa de Elite”
Assisti a “Tropa de Elite” atendendo a convite generoso da secretária estadual de Cultura, Adriana Rattes, na abertura do Festival de Cinema do Rio. No caso, esse inusitado preâmbulo faz-se necessário para me isentar da suspeição de ter visto o filme nos escaninhos da abjeta pirataria. Feita a ressalva, ao filme, pois.
Há várias maneiras de se ver “Tropa de Elite”. Como não sou crítico de cinema, de nada, nem de ninguém, interessam-me mais os aspectos políticos e o ambiente sociológico de segurança e de violência que o filme reflete do que propriamente a obra.
Como filme, “Tropa de Elite” não é nenhuma Brastemp. Nos mesmos moldes, por exemplo, cinematograficamente falando, “Cidade de Deus” é bem melhor, mais consistente e criativo. Mostra melhor o que revela.
Já “Tropa de Elite”, em minha desqualificada visão cinematográfica, perde-se em subtramas pouco densas, ora para enfatizar o infernal embrutecimento do personagem principal mesmo em domínio doméstico, ora para generalizar a podridão que retrata. Na ânsia de culpar igualmente a sociedade perfumada, o aparato policial, os políticos sem escrúpulo e a bandidagem ensandecida, “Tropa de Elite” abusa de soluções generalistas e simplistas. Se fosse um filme americano sobre a SWAT, provavelmente seria depreciado.
Não li o livro “Elite da Tropa” que originou o filme. Disse-me, porém, o ex-capitão do BOPE, Rodrigo Pimentel, co-autor do livro e do roteiro do filme, que ambos são bem diferentes. Considerando-se, entretanto, que livro e filme, embora fantasiosos, tenham um grande embasamento na realidade, podemos observar a situação espelhada como gravíssima e preocupante. Não por apresentar uma novidade; mas, sim, pela dimensão.
Sobre a superfície do universo criminal há farto material ficcional e respaldo cotidiano nas ruas e na mídia. Já as mazelas da polícia, mesmo que também ricamente documentada, não deixam de causar perplexidade no filme. O que tem de mais virtuoso em “Tropa de Elite” é a crua exposição das entranhas de um importante corpo de segurança.
A rigor, lato sensu, a polícia se divide entre corruptos, ladrões, assassinos, torturadores etc. Ou seja, não há mocinhos, não há agentes públicos agindo dentro da lei. No filme, os supostos mocinhos são os policiais boçais que torturam e matam, em contraponto aos policiais que se corrompem, roubam e achacam uma sociedade conivente com o tráfico de drogas, mas que espia sua culpa social, caricaturalmente, com florais assistencialistas.
É certo que tanto na sociedade quanto nos engenhos policiais há gente de outra estirpe. Não há como deixar de imaginar, entretanto, que o quadro real policialesco seja assemelhado ao narrado no filme. Ou pior. Se assim consideramos e se assim é, será que temos soluções realísticas para os problemas? Ou a sociedade e os poderes públicos perderam definitivamente as condições de cuidar dessa moléstia?
O mérito de “Tropa de Elite” não é provar que o cinema nacional evoluiu e há muito equacionou a qualidade de som dos seus filmes. O mérito de “Tropa de Elite” é ensejar uma discussão sobre a natureza das nossas polícias e os papéis que elas têm que cumprir e sob que regras. E isso não pode mais tardar.
Hudson Carvalho
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