29.10.21

Eugénio de Andrade: "Improviso na madrugada"

 



Improviso na madrugada



Húmido de beijos e de lágrimas,

ardor da terra com saber a mar,

o teu corpo perdia-se no meu.


(Vontade de ser barco ou de cantar.)






ANDRADE, Eugénio de. "Improviso na madrugada". In:_____ Primeiros poemas, As mãos e os frutos, Os amantes sem dinheiro. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2006. 

26.10.21

Konstantinos Kaváfis: "Iwnikon" / "Iônica"

 



Iônica


Esmigalhamos – em verdade – suas estátuas,

os expulsamos – em verdade – dos santuários,

porém dos deuses – nem por isso – pereceram.

Eles, os deuses, Terra Iônica, ainda te adoram,

no íntimo, sua psiquê ainda te rememora.

Quando a manhã de agosto sobre ti alvora,

a vida deles deixa, na atmosfera, um sopro,

e uma figura etérea, um exsurgir de efebo,

como se evanescente no seu passo leve,

vela obre ti, no alto da colina, às vezes.





Iwnikon


Γιατί τα σπάσαμε τ’ αγάλματά των

γιατί τους διώξαμεν απ’ τους ναούς των,

διόλου δεν πέθαναν γι’ αυτό οι θεοί.

Ω γη της Ιωνίας, σένα αγαπούν ακόμη,

σένα η ψυχές των ενθυμούνται ακόμη.

Σαν ξημερώνει επάνω σου πρωί αυγουστιάτικο

την ατμοσφαίρα σου περνά σφρίγος απ’ την ζωή των·

και κάποτ’ αιθερία εφηβική μορφή,

αόριστη, με διάβα γρήγορο,

επάνω από τους λόφους σου περνά.





CAVÁFIS, Constantinos. "Iwnikon" / "Iônica". In: Konstantinos Haroldo Kaváfis de Campos. Poemas de Konstantinos Kaváfis; trad. de Haroldo de Campos. São Paulo: Cosac Naify, 2012.



22.10.21

Antonio Cicero: "Definição ostensiva"

 



Definição ostensiva


Cerúleo:

o céu

o mar

os olhos dos alemães

os cabelos dos indianos

a noite

a morte





CICERO, Antonio. "Cerúleo". In:_____ Definição ostensiva. In: Porventura.   Rio de Janeiro: Record, 2012.



20.10.21

Jaime Gil de Biedma: "Volver" / "Voltar"

 



                Voltar



Minha lembrança eram imagens,

no instante, de ti:

essa expressão e um matiz

dos olhos, um pouco suave


na inflexão de tua voz,

e teus bocejos furtivos

de lebréu que dormiu mal

toda a noite em meu quarto.


Voltar, passados os anos,

rumo à felicidade

—para ver-se e recordar

que estou também mudado.





               Volver



Mi recuerdo eran imágenes,

en el instante, de ti:

esa expresión y un matiz

de los ojos, algo suave

 

en la inflexión de la voz,

y tus bostezos furtivos

de lebrel que ha maldormido

la noche en mi habitación.

 

Volver, pasados los años,

hacia la felicidad

—para verse y recordar

que yo también he cambiado.









BIEDMA, Jaime Gil de. "Volver" / "Voltar". In:_____ Antologia poética. Org. e trad. por José Bento. Lisboa: Cotovia, 2003.

17.10.21

Pedro Tamen: "Não me deste o retrato"

 



Não me deste o retrato

do que hoje ou ontem se passou.

Não sei a cor, as dimensões,

as palavras exactas.

Não tenho apontados no diário

os factos com cê pronunciado,

as caras das pessoas,

donde vinham. Se estava

chuva ou sol, ou ventania.

A História de Cantù.



Ter o que foi, em mim,

é ter esquecido.






TAMEN,  Pedro. "Não me deste o retrato". In:_____ Memória indescritível. Lisboa: Gótica, 2000.

15.10.21

Pietro Arentino: "Questo è un libro d'altro que sonetti" / "Mais que sonetos este livro aninha": trad. José Paulo Paes

 



I


Mais que sonetos este livro aninha,

Mais que éclogas, capítulos, canções.

Tu, Bembo ou Sannazaro, aqui não pões

Nem líquidos cristais e nem florinhas.


Marignan madrigais não escrevinha

Aqui, onde há caralhos sem bridões,

Que em cu ou cona lépidos dispõem-se

Como confeitos dentro da caixinha.


Gente aqui há que fode e que é fodida,

De conas e caralhos há caudal

E pelo cu muita alma já perdida.


Fode-se aqui com graça sem igual,

Alhures nunca assaz reproduzida

Por toda a jerarquia putanal.


                          Enfim loucura tal

Que até dá nojo essa iguaria toda,

E Deus perdoe a quem no cu não foda.





I


Questo è un libro d’altro che sonetti,

Di capitoli, d’egloghe o canzone,

Qui il Sannazaro o il Bembo non compone

Nè liquidi cristalli, nè fioretti.


Qui il Marignan non v’ha madrigaletti,

Ma vi son cazzi senza discrizione

E v’è la potta e ‘ l cul, che li ripone

Appunto come in scatole confetti.


Vi son genti fottenti e fottute

E di potte e di cazzi notomie

E ne’ culi molt’anime perdute.


Qui vi si fotte in più leggiadre vie,

Ch’in alcun loco si sien mai vedute

Infra le puttanesche gerarchie;


                       In fin sono pazzie

A farsi schifo di si buon bocconi

E chi non fotte in cul, Dio gliel perdoni.







ARENTINO, Pietro. "Questo è un libro d'altro que sonetti" / "Mais que sonetos este livro aninha". In:_____ Sonetos luxuriosos.  Org. e trad. de José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Record, 1981.



12.10.21

Jorge de Lima: "Solilóquio sem fim e rio revolto"

 



Solilóquio sem fim e rio revolto


Solilóquio sem fim e rio revolto

mas em voz alta, e sempre os lábios duros

ruminando as palavras, e escutando

o que é consciência, lógica ou absurdo.


A memória em vigília alcança o solto

perpassar de episódios, uns futuros

e outros passados, vagos, ondulando

num implacável estribilho surdo.


E tudo num refrão atormentado:

memória, raciocínio, descalabro...

Há também a janela da amplidão;


e depois da janela esse esperado

postigo, esse último portão que eu abro

para a fuga completa da razão.





LIMA, Jorge de. "Solilóquio sem fim e rio revolto". In: Antologia poética. Org. por Paulo Mendes Campos. Rio de Janeiro: Joséo Olympiio, 1978.

7.10.21

Jacques Prévert: "La brouette ou les grandes inventions" / "O carrinho de mão ou as grandes invenções": trad. por Silviano Santiago

 



O carrinho de mão ou as grndes invenções


O pavão abre o leque

o acaso faz o resto

Deus toma assento

e o homem empurra.






La brouette ou les grandes inventions


Le paon fait la roue

le hasard fait le reste

Dieu s'assoit dedans

et l'homme le pousse.





PRÉVERT, Jacques. "La brouette ou les grandes inventions" / "O carrinho de mão ou as grandes invenções". In:_____ Poemas. Org. e trad. por Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

4.10.21

Fernando Assis Pacheco. "Tentas, de longe"

 



Tentas, de longe



Tentas, de longe, dizer que estás aqui.

Com peso triste caminha na rua o Outono.

O meu coração debruça-se à janela

a ver pessoas e carros, e as folhas caindo.


Mastigo esta solidão

como quando era pequeno e jantava

diante dos pais zangados:

devagar, ausente.







PACHECO, Fernando Assis. "Tentas, de longe". In:_____. Cuidar dos vivos. Coimbra: Ed. do Autor, 1963.