30.8.13
Rogério Batalha: "a passeata"
a passeata
entre olhos observo a passeata
(enquanto a pedra estilhaça)
(enquanto -em forma de navio-
uma sabiá apita e canta)
e a flâmula embaçada bica e balança
como uma batata que se assa
sob os lençóis da cama
pois, assim, a noite caía,
(sobre as minhas líquidas pupilas)
que, indagavam, diante da maresia:
um esqueleto se fuzila?
BATALHA, Rogério. "a passeata". Disponível no site Rogério Batalha, em http://rogeriobatalha.webmium.com/poemas, acessado em 30/08/2013.
Labels:
Poema,
Rogério Batalha
28.8.13
Ferreira Gullar: "A cabra"
A CABRA
Cabra de Picasso, lição de metamorfose:
de como um cesto vira barriga
duas cabaças viram úberes
cepos de parreira viram chifres
argila e ferro viram pernas e pés
folhas de palmeira viram pelos
lata dobrada vira sexo
um pedaço de cano vira ânus
de cabra
de como lixo vira bicho
Cabra de Picasso: arremedo de cabra
que nos mostra a cabra
cabra mais que cabra
cabeçuda apojada prenha
mais cabra que todas
as cabras
arcaica arquetípica
terrestre terrena
artefato sem artificio:
— de esqueleto à mostra
GULLAR, Ferreira. Relâmpagos [dizer o ver]. São Paulo: Coscnaify, 2003.
Pablo Picasso: La Chèvre (Musée Picasso, Paris)
Labels:
Ferreira Gullar,
Pablo Picasso
26.8.13
Nelson Ascher: trompas
trompas
Se tua língua
linda, de longa
lábia, se aninha
em cada lábio
lábil da minha
trompa de Eustáquio
e langue-lenga,
a minha língua
logo se vinga,
lambe o batom
sabor de ópio
de tuas trom-
pás de Falópio
e por lá míngua..
ASCHER, Nelson. ponta da língua. São Paulo: Edição do autor, 1983.
Labels:
Nelson Ascher,
Poema
24.8.13
Waly Salomão: "Amante da algazarra"
Amante da algazarra
Não sou eu quem dá coices ferradurados no ar.
É esta estranha criatura que fez de mim seu encosto.
É ela !!!
Todo mundo sabe, sou uma lisa flor de pessoa,
Sem espinho de roseira nem áspera lixa de folha de figueira.
Esta amante da balbúrdia cavalga encostada ao meu sóbrio ombro
Vixe!!!
Enquanto caminho a pé, pedestre -- peregrino atônito até a morte.
Sem motivo nenhum de pranto ou angústia rouca ou desalento:
Não sou eu quem dá coices ferradurados no ar.
É esta estranha criatura que fez de mim seu encosto
E se apossou do estojo de minha figura e dela expeliu o estofo.
Quem corre desabrida
Sem ceder a concha do ouvido
A ninguém que dela discorde
É esta
Selvagem sombra acavalada que faz versos como quem morde.
SALOMÃO, Waly. O mel do melhor. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
Labels:
Poema,
Waly Salomão
23.8.13
Curso "A arte do poeta", no POP
| |
|
Labels:
Antonio Cicero,
Curso,
Poesia
20.8.13
Ivan Junqueira: "Últimas palavras"
Últimas palavras
Eis enfim o que expressa
a boca que se fecha:
uma praga, uma prece,
algo de ermo e secreto,
o asco aos vermes do verbo.
JUNQUEIRA, Ivan. "A sagração dos ossos". In:_____. Poemas reunidos. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1999.
Labels:
Ivan Junqueira,
Poema
17.8.13
Alex Varella: "Nosso mito"
Nosso mito
O mundo estava às escuras.
Tudo era regido então pelo breu da Grande Indistinção.
O dia em que acendeu a luz da Poesia
tudo ficou tão claro,
ainda mais indistinto.
Passou a ser regido então
pela luz da Grande Indistinção.
Poesia é a arte de alcançar de novo a indistinção.
De alcançar a indistinção pela luz,
não pelo breu.
VARELLA, Alex. céu em cima / mar em baixo. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012.
Labels:
Alex Varella,
Poema
15.8.13
Salvatore Quasimodo: "Già la pioggia è con noi" / "Já está conosco a chuva": trad. Geraldo Holanda Cavalcanti
Já está conosco a chuva
Já está conosco a chuva,
sacode o ar silencioso.
As andorinhas riscam as águas paradas
junto às lagoas lombardas,
voam como gaivotas catando peixes;
o feno cheira além do espaço das hortas.
Ainda um ano queimado,
sem um lamento, sem um grito
que inesperadamente vença um dia.
Già la pioggia è con noi
Già la pioggia è con noi,
scuote l’aria silenziosa.
Le rondini sfiorano le acque spente
presso i laghetti lombardi,
volano come gabbiani sui piccoli pesci;
il fieno odora oltre i recinti degli orti.
Ancora un anno è bruciato,
senza un lamento, senza un grido
levato a vincere d’improvviso un giorno.
QUASIMODO, Salvatore. Poesias. Edição bilingue. Seleção, tradução e notas de Geraldo Holanda Cavalcanti. Rio de Janeiro: Record, 1999.
14.8.13
Hans Magnus Enzensberger: "Nänie auf den Apfel" / "Nênia à maçã": trad. de Markus J. Weininger e Rosvitha Friesen Blume
Nênia à maçã
Aqui estava a maçã
Aqui ficava a mesa
Isto era a casa
Isto era a cidade
Aqui jaz o país
Essa maçã ali
é a terra
um belo astro
onde havia maçãs
e comedores de maçãs.
Nänie auf den Apfel
Hier lag der Apfel
Hier stand der Tisch
Das war das Haus
Das war die Stadt
Her ruht das Land.
Dieser Apfel dort
ist die Erde
ein schönes Gestirn
auf dem es Äpfel gab
und Esser von Äpfeln.
ENZENSBERGER, Hans Magnus. "Nänie auf de Apfel". In: BLUME, Rosvitha Friesen e WEININGUER, Markus J. (orgs.). Seis déecadas de poesia alemã. Do pós-guerra ao início do século XX. Antologia bilingue. Florianópolis: Editora UFSC, 2012.
11.8.13
Frederico Barbosa: "Aula de clareza"
Aula de clareza
Late um cachorro esquisito
na porta da sala de aula
enquanto falam do filho
e da mãe de certa senhora
que acontece ter escrito,
com a máquina nos joelhos,
vinte livros contorcidos
contra o tédio do segredo.
Voltas em torno do tema,
dá a voz da professora:
"capacidade de vida,
revelação interior..."
Sentido só no latido,
seco e rouco, de mendigo,
do cachorro trovador.
BARBOSA, Frederico. Na lata: poesia reunida 1978-2013. São Paulo: Iluminuras, 2013.
Labels:
Frederico Barbosa,
Poema
10.8.13
Entrevista a Nahima Maciel, do Correio Brasiliense
Na ocasião em que recebi o Prêmio ABL de Poesia, dei a Nahima Maciel a seguinte entrevista, publicada no dia 21 de julho, no Correio Brasiliense:
- Pode falar um pouco
sobre o Porventura? Como nasceu o livro? Que temas te inquietavam na hora
em que escreveu os versos? Foram escritos de uma vez ou são poemas de vários
períodos diferentes?
São poemas escritos
ao longo de mais ou menos uma década. Ao final de 2011 – precisamente ao
terminar de escrever um poema chamado “Nihil”, achei que, excluindo vários
poemas, escrevendo alguns outros, modificando terceiros e organizando-os numa
certa sequência, eu teria um livro de poesia pronto. E comecei a trabalhar nesse
sentido. Os temas são variados, mas talvez o tempo, a efemeridade da vida e a
própria poesia sejam os mais frequentes.
- O que o prêmio
significa para você? E a ABL?
A ABL é composta por
um grupo de notáveis que inclui vários poetas, escritores, críticos, pensadores,
artistas que admiro muito. Que tal grupo me tenha conferido esse prêmio
representa um reconhecimento do valor da minha poesia que me deixa muito feliz.
- Houve uma época em
que a filosofia se antepôs à poesia na tua vida. E hoje, qual o espaço da
filosofia?
Na verdade, acho que
a filosofia nunca propriamente se antepôs à poesia, na minha vida. O que
acontece é que, quando decido escrever um texto filosófico, faço-o para
intervir, isto é, para tomar posição, para tomar partido, em discussões sobre
questões fundamentais que dizem respeito ao sentido do conhecimento, do ser, da
vida, dos valores éticos e estéticos etc. Em última análise, quando escrevo um
texto filosófico, faço-o porque suponho ter algo a dizer que possa fazer alguma
diferença: algo que possa mudar para melhor o modo de as pessoas pensarem ou
agirem em relação a alguma coisa. E tenho a pretensão de que tal mudança possa
ser, de algum modo, importante: de que, ainda que numa escala ínfima, ela possa
tornar o mundo melhor. Logo, sinto certa urgência, e mesmo certa obrigação ética
de escrevê-lo.
Já a maravilha da
poesia consiste justamente em nos dar acesso a outra temporalidade, que nada tem
a ver com essa temporalidade prática, política, utilitária, instrumental a que,
em última análise, a filosofia está ligada. Por isso, não sinto a mesma urgência
em escrever poemas. Quem começa a fazer um poema tem que se deixar levar pelo
tempo que ele exija. Ele pode ficar pronto em pouco tempo, mas pode demorar
dias, semanas, meses, anos. E pode jamais ficar pronto ou ficar bom. E o poema é
bom quando vale por si. Ora, nada me dá tanta satisfação quanto fazer algo que
penso valer por si.
- Li em uma entrevista
que é difícil para você escrever poesia. Por que?
Não é tanto que seja
difícil: é que não basta que eu queira escrever um poema, para que o faça. É
preciso que ele aconteça em mim, ou através de mim, por razões que não dependem
exclusivamente da minha vontade, e cuja natureza precisa ignoro.
- O que acha dessa
jovem poesia que tem despontado principalmente no Rio de Janeiro?
Gosto de vários
jovens poetas. É sempre chato citar nomes, porque a gente acaba esquecendo, às
vezes, do(s) mais importante(s). Mas gosto, por exemplo, de Omar Salomão, de
Fabrício Corsaletti, de Bruna Beber...
- A variedade formal
nos poemas é algo que te move? Como ela acontece? Você acha que
Porventura tem mais dessa variedade do que A cidade e os livros?
Que diferenças você vê em relação aos teus últimos dois livros?
Ela simplesmente
acontece. Às vezes, um primeiro verso me sugere uma métrica. Às vezes, a forma
vai se impondo, não sei dizer por que. Acho que, de fato, A cidade e os
livros é dotado de maior unidade formal do que os demais. Mas não sei
explicar a razão disso.
- Qual o espaço da
ideia e qual o espaço do cotidiano no teu processo poético?
Isso muda de poema
para poema. Tudo o que a gente sabe, toda nossa experiência, toda nossa
filosofia, toda nossa fantasia, toda nossa cultura, tudo é capaz de entrar num
poema. O poema é feito com todas as nossas faculdades: intelecto, intuição,
razão, sensibilidade, sensualidade, humor, memória etc. E a importância de cada
um desses fatores varia de poema para poema. Não há fórmula
pronta.
- A poesia e a música
acontecem de forma diferente na tua cabeça? Como?
Sim. É que não sou
músico. Não toco nenhum instrumento, nem sei cantar. Só faço a letra. E faço a
letra depois de ouvir a música com a qual ela vai se casar. Por isso, para mim,
a diferença entre a letra e o poema é que o fim deste está em si próprio,
enquanto que o fim da letra é a canção que vai resultar do casamento dela com a
música.
- E a poesia no Brasil,
você acha que ela está em alta? Que as editoras estão publicando mais? Ou
não?
Tomara que sim. O
sucesso do esplêndido livro “Toda poesia”, de Leminski, faz pensar que sim. Mas
uma vez ouvi o próprio Leminski dizer, numa palestra, que o fato de que livro de
poesia não venda é uma coisa boa, e não ruim. Por que? Porque – dizia ele – isso
significa que não se faz poesia por dinheiro, mas somente por amor. Concordo com
isso.
Labels:
ABL,
Música,
Nahima Maciel,
Poesia
8.8.13
William Carlos Williams: "Dance russe" / "Dança russa": trad. Adriano Nunes
"Dança russa"
Se quando minha esposa está dormin
do e o bebê e Kathleen
estão dormin
do e o sol é um disco vistoso
no nevoeiro sedoso
sobre árvores reluzentes, -
se eu em meu quarto ao norte
danço nu, grotescamente
Ao meu espelho de frente
sobre a cabeça a camisa agitando
E pra mim mesmo suave cantando:
"Eu sou solitário, solitário,
eu nasci pra ser solitário,
melhor assim eu sou!"
Se eu admiro minha face, meus braços,
meus ombros, nádegas, flancos,
contra as cerradas amarelas vidraças, -
Quem poderá dizer que eu não sou
o alegre gênio do meu lar?
Danse Russe
If when my wife is sleeping
and the baby and Kathleen
are sleeping
and the sun is a flame-white disc
in silken mists
above shining trees,-
if I in my north room
dance naked, grotesquely
before my mirror
waving my shirt round my head
and singing softly to myself:
"I am lonely, lonely,
I was born to be lonely,
I am best so!"
If I admire my arms, my face,
my shoulders, flanks, buttocks
against the yellow drawn shades,-
Who shall say I am not
the happy genius of my household?
WILLIAMS, William Carlos. The collected poems of William Carlos Williams. Org. por A. Walton Litz e Christopher MacGowan. New York: New Directions, 1986.
Tradução por Adriano Nunes in blog QUEFAÇOCOMOQUENÃOFAÇO. URL: http://astripasdoverso.blogspot.com.br/. 04/08/2013.
6.8.13
Sophia de Mello Breyner Andresen: "Soneto de Eurydice"
Soneto de Eurydice
Eurydice perdida que no cheiro
E nas vozes do mar procura Orpheu:
Ausência que povoa terra e céu
E cobre de silêncio o mundo inteiro.
Assim bebi manhãs de nevoeiro
E deixei de estar viva e de ser eu
Em procura de um rosto que era o meu
O meu rosto secreto e verdadeiro.
Porém nem nas marés, nem na miragem
Eu te encontrei. Erguia-se somente
O rosto liso e puro da paisagem.
E devagar tornei-me transparente
Como morte nascida à tua imagem
E no mundo perdida esterilmente.
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. In: BERARDINELLI, Cleonice (org.). Sonetos portugueses de Camões a Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.
5.8.13
Bruna Beber: "fds"
fds
jane quero uma surpresa
estou triste mereço
você me esperando
em Copacabana
dura e descalça
rindo da minha cara
dizendo pensou
que eu não viria
BEBER, Bruna. "fds". Rapapés e apupos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.
Labels:
Bruna Beber,
Poema
3.8.13
Torquato Neto: "Cogito"
Cógito
eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível
eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim.
NETO, Torquato. "Cogito". In: JUDICE, Ruth. Um passeio pela história da poesia. São Paulo: Crayon, 2008.
Labels:
Poema,
Ruth Judice,
Torquato Neto
1.8.13
Manuel A. Domingos: "Mapa"
Agradeço a Arthur Nogueira por me ter enviado o seguinte belo poema do poeta português Manuel Domingos, que eu não conhecia:
DOMINGOS, Manuel A. Mapa. Torres Vedras: Livrododia, 2008.
Londres
nunca cheguei a escrever um
poema sobre
a cidade ser à noite um carrossel
de luzes. nem outro sobre
a fotografia onde fiquei com ar
envergonhado. ou sobre o frio e
o passeio por Hyde Park, onde
pássaros vieram comer às tuas mãos
e eu deixei fugir alguns versos
só para te poder fotografar. ou sobre
a casa estilo vitoriano, que prometeu
ocultar todas as palavras que dissemos
um ao outro, quando ao deitar
nos encolhíamos debaixo de
vários cobertores e mesmo assim
tínhamos frio. ou o definitivo,
aquele que falaria sobre Greenwich
e o meridiano que me ensinou a importância
do tempo que sempre falta, principalmente
quando numa das pontes quis dizer amo-te,
mas havia um autocarro para
apanhar. e era já o último.
a cidade ser à noite um carrossel
de luzes. nem outro sobre
a fotografia onde fiquei com ar
envergonhado. ou sobre o frio e
o passeio por Hyde Park, onde
pássaros vieram comer às tuas mãos
e eu deixei fugir alguns versos
só para te poder fotografar. ou sobre
a casa estilo vitoriano, que prometeu
ocultar todas as palavras que dissemos
um ao outro, quando ao deitar
nos encolhíamos debaixo de
vários cobertores e mesmo assim
tínhamos frio. ou o definitivo,
aquele que falaria sobre Greenwich
e o meridiano que me ensinou a importância
do tempo que sempre falta, principalmente
quando numa das pontes quis dizer amo-te,
mas havia um autocarro para
apanhar. e era já o último.
DOMINGOS, Manuel A. Mapa. Torres Vedras: Livrododia, 2008.
Labels:
Arthur Nogueira,
Manuel Domingos,
Poema
Assinar:
Postagens (Atom)