28.3.11

Caetano Veloso: "Bethânia"




O seguinte artigo de Caetano Veloso, com o qual concordo inteiramente, foi publicado ontem em sua coluna do jornal O Globo.


Caetano Veloso
Bethânia

Não concebo por que o cara que aparece no YouTube ameaçando explodir o Ministério da Cultura com dinamite não é punido. O que há afinal? Será que consideram a corja que se "expressa" na internet uma tribo indígena? Inimputável? E cadê a Abin, a PF, o MP? O MinC não é protegido contra ameaças? Podem dizer que espero punição porque o idiota xinga minha irmã. Pode ser. Mas o que me move é da natureza do que me fez reagir à ridícula campanha contra Chico ter ganho o prêmio de Livro do Ano. Aliás, a "Veja" (não, Reinaldo, não danço com você nem morta!) aderiu ao linchamento de Bethânia com a mesma gana. E olha que o André Petry, quando tentou me convencer a dar uma entrevista às páginas amarelas da revista marrom, me assegurou que os então novos diretores da publicação tinham decidido que esta não faria mais "jornalismo com o fígado" (era essa a autoimagem de seus colegas lá dentro). Exigi responder por escrito e com direito a rever o texto final. Petry aceitou (e me disse que seus novos chefes tinham aceito). Terminei não dando entrevista nenhuma, pois a revista (achando um modo de me dizer um "não" que Petry não me dissera - e mostrando que queria continuar a "fazer jornalismo com o fígado") logo publicou ofensa contra Zé Miguel, usando palavras minhas.

A histeria contra Chico me levou a ler o romance de Edney Silvestre (que teria sido injustiçado pela premiação de "Leite derramado"). Silvestre é simpático, mas, sinceramente, o livro não tem condições sequer de se comparar a qualquer dos romances de Chico: vi o quão suspeita era a gritaria, até nesse pormenor. Igualmente suspeito é o modo como "Folha", "Veja" e uma horda de internautas fingem ver o caso do blog de Bethânia. O que me vem à mente, em ambas as situações, é a desaforada frase obra-prima de Nietzsche: "É preciso defender os fortes contra os fracos." Bethânia e Chico não foram alvejados por sua inépcia, mas por sua capacidade criativa.

A "Folha" disparou, maliciosamente, o caso. E o tratou com mais malícia do que se esperaria de um jornal que - embora seu dono e editor tenha dito à revista "Imprensa", faz décadas, que seu modelo era a "Veja" - se vende como isento e aberto ao debate em nome do esclarecimento geral. A "Veja" logo pôs que Bethânia tinha ganho R$ 1,3 milhão quando sabe-se que a equipe que a aconselhou a estender à internet o trabalho que vem fazendo apenas conseguiu aprovação do MinC para tentar captar, tendo esse valor como teto. Os editores da revista e do jornal sabem que estão enganando os leitores. E estimulando os internautas a darem vazão à mescla de rancor, ignorância e vontade de aparecer que domina grande parte dos que vivem grudados à rede. Rede, aliás, que Bethânia mal conhece, não tendo o hábito de navegar na web, nem sequer sentindo-se atraída por ela.

Os planos de Bethânia incluíam chegar a escolas públicas e dizer poemas em favelas e periferias das cidades brasileiras. Aceitou o convite feito por Hermano como uma ampliação desse trabalho. De repente vemos o Ricardo Noblat correr em auxílio de Mônica Bergamo, sua íntima parceira extracurricular de longa data. Também tenho fígado. Certos jornalistas precisam sentir na pele os danos que causam com suas leviandades. Toda a grita veio com o corinho que repete o epíteto "máfia do dendê", expressão cunhada por um tal Tognolli, que escreveu o livro de Lobão, pois este é incapaz de redigir (não é todo cantor de rádio que escreve um "Verdade tropical"). Pensam o quê? Que eu vou ser discreto e sóbrio? Não. Comigo não, violão.

Se pensavam que eu ia calar sobre isso, se enganaram redondamente. Nunca pedi nada a ninguém. Como disse Dona Ivone Lara (em canção feita para Bethânia e seus irmãos baianos): "Foram me chamar, eu estou aqui, o que é que há?"

O projeto que envolve o nome de Bethânia (que consistiria numa série de 365 filmes curtos com ela declamando muito do que há de bom na poesia de língua portuguesa, dirigidos por Andrucha Waddington), recebeu permissão para captar menos do que os futuros projetos de Marisa Monte, Zizi Possi, Erasmo Carlos ou Maria Rita. Isso para só falar de nomes conhecidos. Há muitos que desconheço e que podem captar altíssimo. O filho do Noblat, da banda Trampa, conseguiu R$ 954 mil. No audiovisual há muitos outros que foram liberados para captar mais. Aqui o link: http://www.cultura. gov. br/site/wp-content/up loads/2011/02/Resultado-CNIC-184%C2%AA.pdf . Por que escolher Bethânia para bode expiatório? Por que, dentre todos os nossos colegas (autorizados ou não a captar o que quer que seja), ninguém levanta a voz para defendê-la veementemente? Não há coragem? Não há capacidade de indignação? Será que no Brasil só há arremedo de indignação udenista? Maria Bethânia tem sido honrada em sua vida pública. Não há nada que justifique a apressada acusação de interesses escusos lançada contra ela. Só o misto de ressentimento, demagogia e racismo contra baianos (medo da Bahia?) explica a afoiteza. Houve o artigo claro de Hermano Vianna aqui neste espaço. Houve a reportagem equilibrada de Mauro Ventura. Todos sabem que Bethânia não levou R$ 1,3 milhão. Todos sabem que ela tampouco tem a função de propor reformas à Lei Rouanet. A discussão necessária sobre esse assunto deve seguir. Para isso, é preciso começar por não querer destruir, como o Brasil ainda está viciado em fazer, os criadores que mais contribuem para o seu crescimento. Se pensavam que eu ia calar sobre isso, se enganaram redondamente. Nunca pedi nada a ninguém. Como disse Dona Ivone Lara (em canção feita para Bethânia e seus irmãos baianos): "Foram me chamar, eu estou aqui, o que é que há?"

18 comentários:

Alcione disse...

Uma opinião

Quando li a idéia do blog "O mundo precisa de poesia" achei lindo e já fiquei esperando e curtindo antecipadamente as delícias que viriam, afinal, a voz de Bethânia dizendo versos, poemas, é muito!; daí vieram esses comentários sem propósito, sem noção, pô, caras mais nóia, quebrando o clima, chatinhos, mas, "espinho não machuca a flor"...; e acho que o preconceito não é contra baiano e sim contra o que tem luz, medo de que uma certa cultura, da sua influência, organizada, medo do sucesso que pode fazer e faz e das idéias subjacentes.

Robson Ribeiro disse...

Cicero, Caetano foi muito feliz em seu texto.

Se as pessoas tivessem essa vontade de criticar as artimanhas dos políticos, por exemplo, o nosso país estaria muito melhor.

Eu fiquei muito contente quando soube do projeto. A divulgação da poesia é sempre algo a ser comemorado, ainda mais quando envolve alguém como Maria Bethânia.

Todo debate é saudável, desde que esteja pautado no respeito e na ordem. Bethânia não merece ser atacada dessa maneira.

Letícia disse...

Está fantástico. Também concordo inteiramente. Foi a melhor leitura do domingo de manhã.

Um beijo!

MariMari Tiscate disse...

Quando soube da confusão sem sentido formada em torno de uma idéia tão boa, pensei imediatamente: Bethânia merece, com sua história musical nesse país, ter todo o crédito que precise para realizar seus vigorosos e lindos sonhos. Sou muito grata à sua voz, força e delicadeza, para entrar nessa onda "marrom".
Cante, declame e voe, Bethânia, muito mais ainda e por todo o tempo que puder. Em nosso benefício e pelo futuro da sensibilidade humana!
Abraços

Arthur Nogueira disse...

Cicero,

Caetano tem razão quando diz que não há nada que justifique a acusação de interesses escusos lançada contra Bethânia. Acredito também que o mundo precisa de poesia. Não me amarra dinheiro não, mas a cultura.

beijo.

Armario Vivo disse...

Caro Cícero,

Entendo perfeitamente os motivos que levaram o Caetano a lançar-se em defesa de sua irmã, em sua coluna nO Globo. Assim como ele, sou admiradora de Bethânia e acho injusta e equivocada a polêmica gerada em torno de seu projeto poético virtual. Acho a iniciativa louvável. Tive o privilégio de assistir, ao vivo, à Bethânia recitando poesias, e fico imaginando o quanto isso não será potente para aproximar outras tantas milhões de pessoas dessa expressão artística. Repito, portanto, acho o projeto incrível.
A questão para mim, no entanto, não é essa. O erro, ao meu ver, consiste em deslocar todo o debate que deveria haver em torno das políticas culturais para a figura pessoal de Bethânia. E é, nesse ponto que, de forma colateral, tem igualmente pecado os defensores de Bethânia. Empenham-se em defendê-la (até aí, tudo bem, concordo e assino em baixo), mas se esquecem de levantar a questão de que a revolta gerada em torno de sua figura é, sim, sintoma de uma política cultural equivocada. Política essa que o Governo brasileiro sustenta há anos, ao lavar as mãos e deixar os investimentos referentes ao setor da Cultura a cargo dos interesses de grandes empresas.
Talvez o que tenha gerado tanta revolta na opinião pública é que, dessa vez, por ser Bethânia uma figura ultra-popular, o esquema que beneficia sempre os mesmos Barretos, Lavignes, Dillers, Camurattis etc etc, tenha se tornado mais palpável para quem não acompanha, de perto, as manobras do poder.
Eu admiro o trabalho de Bethânia e a defendo. Mas não podemos deixar de ressaltar que não é ela o X da questão.

Grande abraço e deixo aqui o link do site da minha editora, voltada para a publicação de novos autores.

http://www.oitoemeio.com.br/

Talvez os leitores do seu blog se interessem. Com admiração, sempre,

Flávia

Flavia Fama disse...

Todo mundo conhece o primoroso trabalho da Betania. Ela não faria um vídeo caseiro para botar na Internet. Ela é empenhada e perfeccionista. Seu projeto dará emprego a pessoas que trabalham com a qualidade que ela anseia. Todo trabalho precisa ser remunerado, é muito justo que o MinC permita um grande montante para uma superprodução de 356 filmes. Também não entendi tamanho alarde. De qualquer forma, desejo que esse projeto vá adiante e nos presenteie com a poesia que é tão necessária nessa época de pequenas mesquinharias.

rodrigo madeira disse...

a bahia é linda. caetano é lindo, maria bethânia, cantando e recitando poesia, é linda. mas, histeria à parte, acho que o caso é sim passível de críticas. a meu ver, o grande problema é o valor de sua própria remuneração (e não importa se é o teto): R$ 600 mil reais em dinheiro público. não creio, sinceramente, que seja má-fé; talvez em algum ponto pessoas muito bem remuneradas percam a noção... o valor, parece, foi cortado pela metade pelo minc – o que tbm mostra que, para os próprios funcionários do ministério, o valor pedido era um despropósito. ainda assim, o valor é altíssimo. bethânia se tornaria o artista (não-poeta, diga-se) mais bem remunerado da história da poesia em língua portuguesa (à parte prêmios literários). fernando pessoa, que a cantora recita de maneira comovente, não amealhou em vida este valor.
a lei rouanet tem problemas seriíssimos, ela precisa ser reformulada. há os outros exemplos citados por caetano, artistas consagrados que não precisam desse tipo de recurso; mas não acho que 2, 3 ou 5 erros viram um acerto. entendo a raiva de caetano. os ataques tendem a ser brutalmente pessoais. mas discordo, no contexto, da afirmação emprestada a nietzsche: assim como os fortes e amados não devem ser combatidos por serem fortes, também não devem ser defendidos simplesmente por serem fortes e amados.

(a obra que chico buarque constrói desde os anos 60 é bem maior do que o jabuti. por questão de critério e coerência, no entanto, “leite derramado” não podia ter ganho o prêmio de livro do ano. não é uma questão de gosto pessoal.)

abraço,
rodrigo.

ipaco disse...

Caetano está certíssimo, sobretudo na sua crítica a um certo tipo de imprensa e a certos arautos de um cinismo conservador com voz nos jornais e revistas.

léo disse...

A Bethânia tem uma maneira de dizer a língua portuguesa e um gosto certeiro para a literatura. Vai ser muito bonito e perdurará por muito tempo sua voz encantando a poesia. Esta história não deve lançar por terra projeto tão bacana. Das cantoras, Bethânia é aquela com maior trânsito pela nossa língua. Um trânsito que não pode ser desviado por acidentes deste tipo.

MariMari Tiscate disse...

Trecho do comentário de Rodrigo Madeira:

"por questão de critério e coerência, no entanto, 'leite derramado' não podia ter ganho o prêmio de livro do ano."

????????????????????????????????????

Critério e coerência?
Ahn?

Leo Gonçalves disse...

Cícero,

Eu estava com expectativas quanto ao texto do Caetano. Estou ficando de saco cheio da rebeldia irrefletida da internet.

Estão todos dispostos a chegar com cinco pés e mãos batendo quando alguém grita "lincha!", mesmo se não souberem se a pessoa em questão é culpada mesmo.

Caetano tem meu total apoio.

rodrigo madeira disse...

marielza,
porque na categoria romance do mesmo prêmio, "leite derramado" ficou em terceiro lugar. tradicionalmente, o jabuti dá o título de "livro do ano" ao vencedor de uma das categorias.

é como o caso da bethânia: está dentro da lei, mas não é "legal". embora o regulamento do jabuti não impeça este tipo de incongruência, fica estranho. é a segunda vez que o chico tem esta "sorte" (da outra, bernardo carvalho, autor de "mongólia", havia ganho o melhor romance).
agora: o chico não tem nada com isso. como diz o pleonasmo, a decisão é de quem decide.

José Maria Alves Nunes disse...

A cada dia que passa. A cada atitude. Cada passo do Caetano. Aumenta minha admiração.
Tivéssemos nós esses olhos de lince. Ficássemos atentos aos desmandos políticos e, guardássemos na memória as lições,certamente, ao menos votar, por exemplo, a gente aprenderia.
Pura dor de cotovelos. Francamente!
Viva Caetano!
Viva a arte, a poesia!
Viva a Bahia, minha terra, linda!

Anônimo disse...

Concordo com Caetano que escreveu um texto limpo e esclarecedor. Sim, nem todo mundo consegue escrever "Verdade Tropical". E "Comigo não, violão"...que barato. Adoro essa frase.

Bruno disse...

Oi, Antonio, tudo bem? Gosto muito da sua obra e sempre leio seu blog. Volta e meia, clico em alguma tag para ler os posts mais antigos sobre determinado assunto. Hoje caí neste e me lembrei de uma dúvida que tenho e você talvez possa ajudar a esclarecer.

Na música "Maria Bethânia", Caetano diz no refrão: "Better, better, beta, beta, Bethânia". Nessa espécie de metamorfose entre "better" e "Bethânia", ele usa o "beta". Pelo que li, a letra grega que tem este nome vem do fenício (beth, bet, vet), que significa "casa". Você acha que isso é uma coincidência ou, como Bethânia estava no Brasil e o disco tem esse contexto do exílio, que inclusive está na própria letra da canção, ele usou esse recurso intencionalmente?

Abraço.

Antonio Cicero disse...

Caro Bruno,

Curioso: para mim, "beta" vinha do hebráico "bêth".

De todo modo, quando lemos um grande e culto poeta como Caetano, devemos estar abertos para todas as interpretações. Se a palavra "beta" tiver vindo de uma palavra fenícia para "casa", é possível que ele a tenha empregado com também esse sentido. E, mesmo que não tenha tido essa intenção, temos direito de agregar esse sentido a essa letra.

Abraço

Bruno disse...

Caro Antonio, muito obrigado pela resposta.
Fui ver sobre a questão do fenício, o que li foi exatamente isto: "Like the names of most other Greek letters, the name of beta was adopted from the acrophonic name of the corresponding letter in Phoenician, which was the common Semitic word *bayt ('house')."

Foi o que encontrei ao tentar verificar se o "beta" era só uma questão sonora ou tinha algum outro sentido. Porém, isto foi o que achei na Wikipedia, então não sei o quão confiável é, se isto procede. De qualquer forma, você tem razão sobre termos o direito de agregar esse possível sentido à letra.

Abraço.