15.11.09

A tuberculose do faraó




O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 14 de novembro de 2009:


A tuberculose do faraó


POR OCASIÃO da morte de Lévi-Strauss, o antropólogo francês Philippe Descola, interrogado sobre "quem seriam os gênios de hoje", citou, em primeiro lugar, Bruno Latour. Mal pude crer que estava lendo aquilo. A primeira coisa que me vem à mente, sempre que leio ou ouço o nome de Latour, é o título do excelente livro de Alan Sokal e Jean Bricmont, "Imposturas Intelectuais".

E, embora ele tenha merecido todo um capítulo nessa obra, esse título me vem à cabeça por outra razão: é que, anos atrás, caiu-me nas mãos um exemplar de um dos mais ridículos livros que já li: o "Jamais Fomos Modernos (Ensaio de Antropologia Simétrica)", de Latour, do qual me poupo -e ao leitor- de falar.

Estaria Descola sendo sarcástico? Não. Ele pretendia estar sério. Isso me pareceu lamentável, tratando-se do diretor do Laboratório de Antropologia Social do Collège de France. Entretanto, lembrei-me de duas teses de Latour que, de tão grotescas, chegam até a ser engraçadas. Uma é sobre os dinossauros; a outra, sobre Ramsés 2º. O leitor talvez já as conheça, pois não são novas. Mas, na dúvida, vou contar ao menos a que fala de Ramsés 2º.

Antes, observo que Latour é frequentemente classificado de "construtivista -ou melhor, construcionista- social". Isso não é surpreendente, já que seu livro "Vida de Laboratório", de 1979, escrito em parceria com o sociólogo inglês Steve Woolgar, tem como subtítulo "A Construção Social dos Fatos Científicos". Em 1986, porém, o subtítulo foi removido e Latour passou a recusar essa classificação.

Contudo, sua recusa diz mais respeito ao adjetivo "social" do que ao substantivo "construção", pois ele continua acreditando que os fatos científicos são construídos. Para o idealista Latour, em última análise, a natureza e a realidade são aquilo que cientistas decidem que sejam, e não algo que preexista à investigação científica.

Mas vamos à história. Em 1976, a múmia de Ramsés 2º, acometida por fungos e mofo, foi enviada à França para ser tratada. As fotos de sua chegada foram publicadas pela revista "Paris-Match", com a legenda: "Nossos cientistas socorrem Ramsés 2º, que adoeceu 3.000 anos após sua morte".

Ao ler essa legenda, Latour precipitadamente pensou que ela se referia a outro fato: o de que os cientistas, tendo examinado os restos mortais do faraó, haviam anunciado a descoberta de que ele morrera de tuberculose. "Profundo filósofo", escreveu então, "aquele que redigiu essa legenda admirável". Por que "profundo filósofo"?

Porque, ao contrário dos seres humanos que se guiam pelo bom senso, o autor dessa legenda teria "compreendido" que Ramsés 2º não poderia, no ano 1213 a.C., ter morrido de um bacilo que foi descoberto por Robert Koch somente em 1882...

Para o bom senso "grosseiro", é claro que o bacilo já existia muitíssimo antes de Koch o descobrir. Já para o "sutil" Latour, "antes de Koch, o bacilo não tem existência real. [...] Os pesquisadores não se contentam com "des-cobrir': eles produzem, fabricam, constroem". Assim, o bacilo da tuberculose foi "construído" na época moderna.

Mas, então, como é que ele pode ter causado a morte do faraó, em 1213 a.C.? "Afirmar, sem outras formalidades, que o faraó morreu de tuberculose", diz Latour, "significa cometer o pecado cardeal do historiador, o do anacronismo". Se fosse assim, seria anacronismo afirmar, "sem outras formalidades", que a lei da relatividade tivesse vigência antes de Einstein a demonstrar; ou que a lei da evolução das espécies vigorasse antes de ser enunciada por Darwin.

E quais são as "outras formalidades"? Suponho que consistam em fazer a ressalva de que, para nós, que vivemos depois de 1976, o faraó morreu de tuberculose, mas não para quem viveu antes de 1976. Ora, se isso quer dizer simplesmente que antes de 1976 não sabíamos que o faraó em 1213 a.C. morreu de tuberculose, então é uma verdade: mas não passa precisamente da verdade trivial que o bom senso já conhecia, de modo que, nesse caso, Latour nada diz de novo.

Se, por outro lado, quer dizer que, antes de 1976, o faraó, em 1213 a.C., não morrera de tuberculose, então é um disparate: é "nonsense", e é sem dúvida o que ele pensa, ao afirmar que, "antes de Koch, o bacilo não tem existência real".

Mas devemos reconhecer ao menos um mérito ao artigo de Latour sobre Ramsés 2º: ele inadvertidamente efetua uma redução ao absurdo não só das suas próprias teses mas de todo o construcionismo contemporâneo.

10 comentários:

Marcus Fabiano disse...

Prezado Antonio,

A filosofia francesa contemporânea apresenta três tristes correntes: (1) o decadentismo melancólico, influenciado pelas asneiras do pior Nietzsche e pelo aproveitamento tático de Heidegger; (2) o charlatanismo das epistemologias proféticas, dirigido para leigos e organizado como um bingo de milho sorteado de um saco de metáforas; e, mais recentemente, (3) a sociomancia pós-moderna, que fundindo o decadentismo ao charlatanismo, exerce uma espécie de preguiça cética irresponsável ao duvidar da especialização do mundo científico e propor a sua substituição pela platitute de um senso comum desconfiado do poder. Creio que a divisão do trabalho intelectual tornou o gênio obsoleto. O preço disso é a miopia disciplinar que aí está. E isso é um problema sério. Mas o mais triste mesmo é ver, como e com você, tanto desperdício de inteligências com os disparates. Palavra de um assíduo nos seminários de Derrida, Descola, e outros mais...
Parabéns pelo artigo.

Um abraço,
Marcus Fabiano

Antonio Cicero disse...

Obrigado, Marcus.
Pelo que tenho lido, o seu diagnóstico da filosofia francesa contemporânea está certo.
Abraço

Anônimo disse...

Cicero,

geniaaaal! estou farta de me rir. aliás já desconfiava que são os cientistas que inventam tudo - pela minha parte percebi agora que trabalhei anos com moscas da fruta imaginárias...

agora, por favor, conta a história dos dinossauros!

abraço,
F.

Orlando Tambosi disse...

Você fez bem em chamar Latour de idealista. Todo "construcionista", social ou não, não passa de idealista.
As ciências sociais e humanas estão infestadas por esse tipo de pensamento.

Marcus Fabiano disse...

Antonio,

Desculpe usar esse post como uma espécie de e-mail. Apenas para convidá-lo a dar uma espiada em um ensaio improvisado que andei escrevendo sobre a obra de Hélio Oiticica e o helicóptero abatido. Coloquei-o aqui http://marcusfabiano.blogspot.com/

um abraço,

MF

André disse...

Graças aos céus, alguém que coloca o "grande", o "magnífico" Latour onde ele merece...

Bianca Vilhena disse...

Acho que tudo isso deu pano pra manga, já que senti-me inclinada para fazer um comentário do comentário (de Marcus Flavio). Primeiro de tudo, acredito que a Filosofia seja sim um saco de metáforas, e este é o seu barato. O que não acho proveitoso é arrazar com as propostas filosóficas que são apenas mais uma para sucitar e empolgar o dialógo. Além do mais, dar carterada de assíduo aqui ou ali não garante nada ("Você sabe com quem está falando?" Damatta).

Antonio Cicero disse...

Bianca,

Com certeza você está se referindo ao Marcus Fabiano. Acho que você está equivocada. Primeiro, não vi o Marcus dar “carteirada” nenhuma. Se você acha o contrário, dê um exemplo.

Segundo, sua afirmação de que a filosofia seja um saco de metáforas destrói a si própria. Isso porque falar de filosofia já é filosofar ou pretender filosofar. Logo, ou você (a) pretende, embora metaforicamente, dizer uma verdade filosófica, quando diz que a filosofia é um saco de metáforas, ou (b) não pretende estar a dizer verdade filosófica nenhuma. Se (a) você pretende dizer uma verdade filosófica, então é falso que a filosofia seja um saco de metáforas, pois um saco de metáforas não pretende dizer verdade nenhuma; se (b), você não pretende estar a dizer verdade filosófica nenhuma, então o que você está dizendo simplesmente não diz nada sobre a filosofia, logo, não diz nada, e dá no mesmo que dizer que a filosofia não é um saco de metáforas.

Bianca Vilhena disse...

Antonio Cicero,

Partindo do pressuposto de que há sempre uma troca impossível entre um sistema filósofico de mundo e o próprio mundo, uma equivalência apenas comparativa, metáforica, penso que cada sistema filosófico possa ser considerado uma metáfora dentro do todo da Filosofia. Como um jogo de escalas.

Outra coisa, não consigo acreditar num idealismo total por parte do Bruno Latour, pois todo idealismo que se pode considerar um sistema filosófico percebe a necessidade de voltar-se também para fora, para o mundo exterior.

Quanto à carteirada, não vejo outra função em se dizer, no contexto em que foi dito, que se frequenta seminários de filosofia. Não consigo vislumbrar o encaixe desta assertiva dentro do encadeamento argumentativo que Marcus Fabiano apresenta. Me parece tão somente uma demonstração de autoridade que pouco tem a ver com o conteúdo em questão, com o diálogo.

Antonio Cicero disse...

Bianca: pondo suas afirmações em itálico, comento uma por uma.

Partindo do pressuposto de que há sempre uma troca impossível entre um sistema filósofico de mundo e o próprio mundo, uma equivalência apenas comparativa, metáforica, penso que cada sistema filosófico possa ser considerado uma metáfora dentro do todo da Filosofia. Como um jogo de escalas.

Bianca, não é possível, pelas suas palavras, saber quais são os pressupostos de que você parte. Como é que eu poderia aceitá-los?
Veja: o que é uma “troca” ou uma “equivalência” entre um sistema filosófico de mundo e o próprio mundo? Não só nenhum conhecimento “equivale” àquilo de que é conhecimento, mas não conheço ninguém – muito menos um filósofo – que suponha que o conhecimento equivalha àquilo de que é conhecimento. Por exemplo, eu digo que conheço minha mãe. Mas desde quando esse conhecimento pretende equivaler a ela? Se equivalesse, não faria diferença que ela existisse ou não: bastaria conhecê-la. Não só não há “equivalência comparativa” entre o mundo e um sistema filosófico, mas ninguém nunca pensou que houvesse tal equivalência.

Ademais, o que é “o todo da filosofia”? Para você ele também seria uma metáfora?
E o que é um “jogo de escalas”?
Desculpe, mas acho que sou ignorante demais para poder discutir com você.

Outra coisa, não consigo acreditar num idealismo total por parte do Bruno Latour, pois todo idealismo que se pode considerar um sistema filosófico percebe a necessidade de voltar-se também para fora, para o mundo exterior.

Aparentemente isso quer dizer que você não acredita que ninguém possa ser idealista. Você acha que não existe idealismo? É verdade que hoje em dia os idealistas não se consideram idealistas, e que o próprio Bruno Latour não se considera idealista. Contudo, não o julgo pelo que ele pensa sobre si mesmo, mas pelas consequências das suas afirmações filosóficas.

Quanto à carteirada, não vejo outra função em se dizer, no contexto em que foi dito, que se frequenta seminários de filosofia. Não consigo vislumbrar o encaixe desta assertiva dentro do encadeamento argumentativo que Marcus Fabiano apresenta. Me parece tão somente uma demonstração de autoridade que pouco tem a ver com o conteúdo em questão, com o diálogo.

Aqui não concordo. Considero relevante saber se uma pessoa que está atacando a filosofia contemporânea tem intimidade com ela ou não. E é provável que quem tenha feito seminários com Derrida e Descola tenha alguma intimidade com a filosofia francesa.