8.11.09
A questão dos valores
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no dia 31 de outubro (sábado). Normalmente, eu o teria postado aqui no dia 1º de novembro, mas simplesmente me esqueci. Agradecendo a Flávio por me ter chamado atenção para esse esquecimento, posto-o hoje.
A questão dos valores
FALANDO DE obras literárias, a influente crítica norte-americana Barbara Herrnstein Smith afirma que "o valor de uma entidade para um sujeito individual, assim como o seu preço no mercado, é também o produto da dinâmica de um sistema econômico, especificamente da economia pessoal constituída pelas necessidades, pelos interesses e recursos – biológicos, psicológicos, materiais e empíricos – do sujeito".
Se fosse assim, dado que as necessidades, os interesses e os recursos dos indivíduos são bastante diversos, seria inadmissível afirmar simplesmente que uma obra fosse melhor e mais memorável do que outra. "Melhor e mais memorável para quem?", Herrnstein Smith perguntaria. "Com que direito considerar o poema "Os Lusíadas", digamos, melhor ou mais memorável que a canção "A Eguinha Pocotó", quando muita gente prefere esta?"
À pergunta sobre se não há juízos mais valiosos do que outros, ela responderia que também o valor do juízo ou da opinião de uma pessoa varia com as necessidades, os interesses e os recursos de cada uma das pessoas que o avaliam. "O valor -o "ser boa" ou "ser ruim'- de uma avaliação", diz ela, "como de qualquer outra coisa (inclusive qualquer outro tipo de enunciado), é ele próprio contingente, logo, não é uma questão de seu "valor-verdade" abstrato, mas da eficácia com que desempenha várias funções desejadas/desejáveis para as várias pessoas que em algum momento se envolvam concretamente com ele".
Aparentemente, Herrnstein Smith nem sequer se dá conta de que, ao dizer tais coisas, incorre em paradoxos que solapam suas próprias teses. Com efeito, aplicando-se o que ela diz a suas teses, deve-se dizer que elas não podem ter um valor-verdade "abstrato", isto é, não podem ser simplesmente verdadeiras. No máximo, têm alguma eficácia no desempenho de algumas funções desejadas/desejáveis para as várias pessoas que em algum momento se envolvam concretamente com elas.
O mais estranho é que essa atitude de desprezo em relação à verdade e a qualquer valor – atitude que poderia ao menos ter o efeito benigno de conduzi-la à humildade que lhe conviria – súbito converte-se, ao contrário, em petulância pseudocientificista e pseudodesmistificadora, às vezes bem grosseira.
Tentando, por exemplo, atacar a tese do caráter desinteressado do juízo estético, Herrnstein Smith afirma que "uma contabilidade estrita de qualquer uma dessas atividades aparentemente gratuitas levaria, mais cedo ou mais tarde, à sua utilidade biológica e/ou ao seu valor para a sobrevivência (e sem dúvida a algo muito parecido com "necessidades animais'). [...] Fazê-lo aparentemente produz um lucro a longo prazo, em termos de desenvolvimento cognitivo, flexibilidade comportamental e, portanto, preparo biológico, e nossa tendência geral a praticá-las é, muito provavelmente, produto de mecanismos evolutivos".
Ou seja, embora seus argumentos constituam uma malsucedida tentativa de solapar a possibilidade de qualquer conhecimento verdadeiro, Herrnstein Smith aceita piamente as teses vulgares do determinismo biologista mais rasteiro e questionável, apto a fazer qualquer marxista sério morrer de vergonha, e as toma por aríetes capazes de demolir a "Crítica do Juízo".
Pergunto-me que pertinaz preconceito positivista leva hoje tantos professores de literatura a preferir sempre dar a razão às mais rasas das "ciências cognitivas", psicologias, sociologias ou antropologias, contra a filosofia.
Ao leitor que -para falar como a própria Barbara Herrnstein Smith- queira investigar quais são os interesses capazes de conduzir alguém a pensar como ela, recomendo a leitura de Arthur Schopenhauer, que explica, por exemplo, que a obra de arte "só fala a cada um segundo a medida de seu próprio valor intelectual; razão pela qual precisamente as obras mais excelentes de cada arte, as produções mais nobres do gênio devem permanecer um livro eternamente fechado à estúpida maioria dos seres humanos, inacessíveis a eles, deles separadas por um largo abismo. [...] É verdade que mesmo os mais tolos deixam as grandes obras valerem por confiarem na autoridade, para não trair a sua própria fraqueza: porém por dentro estão sempre prontos a exprimir o seu juízo condenatório, desde que lhes seja permitido esperar que podem fazê-lo sem se desmascarar: e então descarregam com deleite seu ódio há muito represado contra tudo o que é grande e belo e que, jamais lhes tendo dito coisa alguma, por isso mesmo humilhou-os, e contra os seus realizadores".
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16 comentários:
Acho que algumas pessoas, ao se dar conta de que existem várias verdades/belezas possíveis, e que são complexas e escorregadias, partem para a conclusão (por preguiça, comodismo, covardia) de que não existem verdades/belezas e que portanto elas não precisam ser buscadas — o que, além de os eximir do esforço de buscar, tenta fazer uma espécie de “nivelamento por baixo”, imediatamente invalidando e ridicularizando a busca da verdade/beleza empreendida pelo outro, tentando arrastar todo mundo pro mesmo atoleiro de relativismo absoluto.
Penso que desfazer as obras de excelência é uma burrice mortal,espécie de preconceito até(burrice, novamente) e isso tem o poder de me tirar a paciência!
Nunca postei comentário neste blog, mas acho conveniente interpor algumas questões nesta discussao.
Não é correto afirmar que Psicologia e Sociologia sejam "ciências rasas" e que isto decorra de preterição da Filosofia. Afinal, a Filosofia é essencial na formulação e conformação daquelas, com exceção dos trabalhos que introduzem palpites no lugar da pesquisa.
Também parece que estética, no texto apresentado e no comentário primeiro, é entendida como expressão de "verdade/beleza", conceito estreito e empobrecido do termo.
Caro "nada será como antes",
Acho que você não leu bem o artigo. Não digo que "a Psicologia" ou "a Sociologia" sejam ciências rasas, mas me refiro às mais rasas DAS ciências cognitivas, psicologias, sociologias..." Lido corretamente, isso significa que me refiro às versões mais rasas dessas ciências, e não a cada uma delas como um todo. O texto citado da Herrnstein Smith é um exemplo do que considero raso.
Quanto à segunda "crítica", simplesmente não tem nada a ver com o texto em questão.
meu bem,
acabei de ler o seu artigo; mesmo. nem tempo de uma segunda leitura para escrever-lhe. e me peguei pensando se existe alguma coisa que possa dizer a respeito.
porque tão bem escrito, tão bonito, tão elucidativo, que, sinceramente, me atenho aos elogios, mais que merecidos!
realmente, é muito louco o que se planta de informações pobres, preguiçosas, em livros que, por isso mesmo, se tornam pretensiosos em demasia.
a coisa é muito mais complexa: não se trata apenas de "interesse subjetivo"; há instrumentos objetivos, dos quais pode-se dispor, para a análise de quaisquer coisas, independentemente de "gostos pessoais".
apenas para exemplificar: por mais que eu ame o caetano veloso cantando e que até o prefira em relação ao milton nascimento (aqui, uma questão subjetiva), há "instrumentos objetivos" -- estudos sobre a voz, sobre o canto, sobre o alcance vocal, o alcande das notas, sobre a extensão vocal --, que me podem confirmar que, apesar de preferir o caetano como cantor, o milton é, sim, um cantor mais completo, com mais possibilidades/recursos vocais que o seu amigo de profissão (aqui, uma questão objetiva).
isto também serve para o chico buarque, por exemplo. não vejo problema algum, a princípio, em alguém me dizer (sempre me assusto um pouco, é fato - rs) que não gosta das suas composições, não gosta do chico poeta (aqui, uma questão subjetiva). mas daí a dizer que "é ruim" porque simplesmente "não gosta", 'pera lá!! as pessoas têm todo direito de não gostarem das composições do chico, mas NUNCA de dizerem que elas são ruins. são coisas distintas, das quais não podemos nos esquecer (aqui, questão objetiva).
aí eu fecho com schopenhauer, que, ao final do seu artigo, dá um show de bom senso e lucidez.
(isso tudo porque me reservaria apenas aos elogios - rs...)
enfim: tudo, como sempre, divino-maravilhoso!!
beijo grande, porto de luz da minha vida!
parabéns!!
Antonio Ciecero,
Tréplica necessária.
Noto a existência de fâ-clube, que talvez afaste leitores que, como eu, não entendem ..."bem o artigo".
Talvez seja petulância de minha parte, leitor estreante neste blog, solicitar que o estilo de seu texto contemple clareza capaz de evitar variada interpretação. Aliás, sua citação de Schopenhauer serve de elitista muralha para afastar comentários inconvenientes, como indica a necessária moderação para a inclusão dos comentários.
Quanto à "segunda crítica", conforme indica sua resposta ao meu comentário inicial, foi escrita no sentido analítico e, salvo delírio de minha parte, constitui a essência de seu texto.
Saudações literárias.
Bravo! Salve o seu pensamento que é um dos mais límpidos e belos do Brasil! Como é bom lê-lo!
Grande abraço,
Adriano Nunes.
Caro "nada será como antes", sua "segunda crítica" é, de fato, um delírio, simplesmente porque, não chegando a dizer nada, não constitui crítica efetiva.
Grande Cicero,
Grande tolice pensar ou dizer que seus textos deixam dúvidas quanto à intepretação ou à clareza ou mesmo ainda quando se referem ao seu blog argumentando sua moderação! Porque todos que aqui aportam sabem que você publica até comentários que são contrários aos seus pensamentos e até lembro que você já postou comentário de alguém que pensava que poderia com palavras insultá-lo... Sua clareza demonstra toda a sua amplidão e sua liberdade, o que para nós, leitores e fãs e amigos, é grandiosidade - ficamos a cada dia que passa mais admiradores do seu talento ímpar, do seu gênio, da sua dedicação para que a razão impere e todo conhecimento seja compartilhado!
Pena que poucas pessoas tenham lido Kant e Schopenhauer! Assim evitariam (se tivessem lido!) tecer "delírios" sem pé nem cabeça... Porque conheço delírios que foram até transformados em obras-primas!
Grande abraço,
Adriano Nunes.
Obrigado, Adriano!
De fato, tenho por princípio publicar todos os comentários exceto:
1) Os que ataquem textos de terceiros aqui postados por mim. Não tenho o direito de expor ao ataque textos que admiro, de pessoas que admiro.
2) Os que não passem de insultos pessoais, sem absolutamente nenhum argumento.
3) Os que violem as cláusulas do contrato com o blogspot, expondo o blog a ser fechado.
Por evitar essas três coisas, é indispensável a moderação. Quanto aos comentários que simplesmente discordem de mim, ainda que violentamente, ou que me ataquem, faço questão de postá-los, embora, às vezes, poste em seguida uma resposta minha.
Abraço
Antonio Cícero e demais senhores,
Não costumo, especialmente em blogs e sob pseudônimo, agredir posições ou indivíduos.
Meus dois comentários anteriores manifestaram, respeitosamente, ressalvas a respeito do conceito de estética aqui disseminado, que considero arcaico, além da sintaxe do texto publicado que exprime, no mínimo, duas interpretações distintas.
Na sequência dos (meus) comentários/respostas, acessei textos anteriores deste blog e pude constatar outras questões que mereceriam reparos, aos quais renuncio devido à relativa hostilidade das respostas e demais comentários.
Tenho discernimento e formação suficientes para não escrever "tolices" e, também, para evitar discussões em terrenos estéreis.
Mantenho as saudações.
Caro "nada será como antes",
Meu artigo é uma crítica a algumas das teses de Herrnstein Smith, que consistem numa mistura indigesta de relativismo, determinismo e positivismo. A única referência à estética que ele contém é quando comento que Herrnstein Smith pretende “atacar a tese do caráter desinteressado do juízo estético”. Não há nele, portanto, nenhuma base para que você diga que eu entenda estética “como expressão de ‘verdade/beleza’”. Você alega que meu texto não é claro e, no entanto, usa, sem explicar, uma expressão – “verdade/beleza” – que não faz parte do texto nem da terminologia de nenhuma estética de que eu me lembre. Talvez você pretenda se refirir ao comentário de Rafael Mantovani. Contudo, quando ele fala de “verdade/beleza”, não o faz para definir a estética, mas para atacar o relativismo, tanto em relação à verdade, quanto em relação aos valores.
Como acho que esse conceito de “verdade/beleza” foi inventado por você, para poder facilmente rechaçar um moinho de vento, não tenho nada a ver com ele. Apesar disso, acho lamentável que você possa imaginar que o fato de um conceito filosófico ser “arcaico” constitua uma objeção a ele. A filosofia não é um produto da indústria eletrônica, que fica obsoleto em três meses. Algumas coisas são como antes. Basta lembrar que um dos conceitos mais modernos da filosofia é um dos mais arcaicos: por exemplo, o de “ápeiron”, de Anaximandro.
Excelente artigo, Cicero. Parabéns!
Sobre o debate aqui travado, lembrou-me minhas aulas de lógica, mais precisamente a "falácia do homem de palha".
Abraços.
Aeta
Cicero,
Gostaria de dizer qualquer coisa a respeito do debate à volta deste post. Adianto desde já que não conhecia e nem nunca tinha lido, até ler o teu texto, nem o personagem, nem o trabalho de Herrnstein Smith. Assim, é perfeitamente possível que o meu comentário saia "ao lado" - uma vez que não disponho sequer do texto integral ao qual o teu comentário responde. Tenho, no entanto, algum conhecimento das ideias de "economia utilitária" a que HS se refere. esse conhecimento tenho-o quer no contexto da chamada "psicologia evolutiva", quer no contexto da "behavioral economy" ("economia comportamental"?) - áreas do conhecimento que, aliás, me parece, têm feito contributos científicos vários e importantes nas últimas décadas.
O que me parece que falha no texto de HS (que volto a repetir, não li) é a sugestão de que a existência de uma "economia utilitária" como parte dos aspectos que regem o comportamento humano implique a total relativização das apreciações estéticas e, portanto, a impossibilidade de, como tu dizes, classificar uma obra clássica como clássica.
Nunca li isto em mais lado nenhum e não me parece de todo que uma coisa implique a outra. Dou um exemplo ridículo, mas que serve para ilustrar a questão:
Imagine-se que fui incubida de preparar uma refeição para 4 pessoas e que me deram uma quantia de dinheiro x para o fazer. A totalidade do dinheiro, serve para comprar os alimentos de que necessito para o jantar e sobra dinheiro para um livro. Há dois livros disponíveis: os Lusíadas ou o Pantagruel (que, não sei se conheces, mas em Portugal é um famoso livro de cozinha do tempo da minha avó). Ora eu, que não sei cozinhar, e que tenho que preparar um jantar, obviamente decido comprar o Pantagruel - sem o qual não posso levar a cabo a tarefa que me foi imposta, que é preparar o jantar.
Ou seja, o valor do Pantagruel, na situação em que estou, é mil vezes superior ao valor dos Lusíadas MAS - e é aqui que HS falha - isto não significa que eu deixe de reconhecer os Lusíadas como um clássico e de saber - como penso que ninguém no seu perfeito juízo argumentaria - que o valor "absoluto" dos Lusíadas como obra literária é mil vezes superior ao do Pantagruel.
Ok, o exemplo é absurdo, serve só para ilustrar a questão de que a existência de um aspecto de "economia utilitária" subjacente aos comportamentos e a decisões de escolha não significa necessariamente que "tudo seja relativo".
Mas pode argumentar-se que o exemplo é mau porque o Pantagruel é um livro de cozinha e os Lusíadas são uma obra literária. Por isso dou outro exemplo (este é real).
Estou a ler o Livro do Desassossego de Fernando Pessoa. Nesta fase da vida só tenho tempo para ler literatura à noite. Há dois dias emprestaram-me o Jesusalém, o último livro do Mia Couto - troquei imediatamente de livro de cabeceira. Porquê? Porque é mais fácil adormecer depois de ler alguns capítulos do livro do Mia e porque, como ele é emprestado, vou ter que o devolver.
Isto significa que o Livro do Desassossego perdeu valor estético e passou a ser um livro pior assim que o Jesusalém apareceu na minha vida? Nada disso, o livro de Mia Couto é muito, muito bom (aliás é talvez um dos maiores livros deles), mas o Livro do desassossego é um livro maior - penso que ninguém no seu perfeito juízo argumentaria o contrário. Se tivesse tempo para ler de dia, e se o Jesusalém fosse meu, provavelmente a troca não teria ocorrido.
Para concluir, sou uma defensora acérrima da interdisciplinaridade. Por exemplo, acho que todas as áreas do conhecimento têm muito que aprender com a Filosofia, tal como penso que a Filosofia tem ganho novas questões de trabalho com o progresso científico das mais diversas áreas. Só lamento que, por vezes, os autores se entusiasmem com o trabalho de outras áreas sem se dar ao trabalho de as perceber primeiro - parece-me ser o caso de HS. Ou então ele é mesmo tonto.
Abraço,
F.
Olá.
O texto me pareceu bastante claro.
Não vejo razões para o debate que aqui se deu.
Cícero, parabéns!
O relativismo, como ideologia dominante, é assim mesmo: não se mostra e instrumentaliza outras disciplinas para se afirmar. É da sua natureza dissimular uma pretensa neutralidade, uma certa 'invisibilidade'...
Penso que o texto do post esteja claro - o combate ao relativismo tem que ser duro e permanente. Mas o comentário da F. trouxe essa contribuição ao debate que, independentemente da forma como se desencadeou, é sempre enriquecedor.
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