O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo , sábado, 12 de julho de 2008.
Sobre o tédio
EM CERTO ponto do romance "O Vermelho e o Negro", de Stendhal, um dos personagens -o príncipe Korasoff- censura a tristeza do herói, Julien Sorel, explicando-lhe que "o ar triste não pode ser de bom tom; o que é necessário é o ar entediado. Se você está triste, há alguma coisa que lhe falta, alguma coisa que você não conseguiu. É mostrar-se inferior. Se você está entediado, ao contrário, o que é inferior é aquilo que em vão tentou agradá-lo". É sem dúvida por essa razão que o ar blasé é tido por muitos como sinal de superioridade.
Não vejo superioridade nenhuma na pessoa cronicamente entediada. Se alguém, para parecer superior, precisa fingir estar entediado, é porque, na verdade, se sente inferior. Seu ar entediado é uma tentativa de se vingar dessa inferioridade. Por outro lado, uma pessoa que esteja sempre ou quase sempre genuinamente entediada não pode deixar de ser, em primeiro lugar, entediante: ela é entediada exatamente porque entendia a si própria.
Refiro-me aqui, é claro, às pessoas livres, isto é, àquelas que podem dispor, em medida considerável, do seu tempo. O que digo não se aplica, por exemplo, a enfermos, a prisioneiros ou a trabalhadores forçados.
E todos nós estamos sujeitos a momentos de tédio, como, por exemplo, quando nos encontramos, sem material de leitura, numa fila de banco, ou numa cerimônia da qual, por alguma razão, não conseguimos deixar de participar.
Fora semelhantes casos, porém, quase todos os nossos tédios são, como diz o poeta Paul Valéry, "nossa criação original". Difamar o mundo -e o mundo é sempre o mundo contemporâneo-, chamando-o de tedioso, diz muito sobre o difamador e nada sobre o mundo. Este não pode ser classificado nem de tedioso nem de interessante, pois é nele que se encontra tudo o que pode haver de interessante e de tedioso. Por isso, ele é entediante para quem é entediante, superficial para quem é superficial, profundo para quem é profundo, e interessante para quem é interessante.
Assim é que, por exemplo, com um estado de espírito oposto ao do difamador do mundo, Montesquieu anotou num caderno que quase nunca tinha tristeza, e menos ainda tédio. Na mesma página, escreveu também: "Acordo de manhã com uma alegria secreta; vejo a luz com uma espécie de arrebatamento". Esse, sim, é um sentimento verdadeiramente superior.
Contudo, não ignoro que haja pessoas livres, com saúde, e até interessantes, que às vezes se entediam exatamente quando têm lazer, isto é, quando poderiam, por exemplo, não digo nem viajar, mas simplesmente ler um grande romance, escrever uma carta ou um poema, ou não mais que andar na rua, apreciando a paisagem ou o movimento, ou, quem sabe, a passagem dessa ou daquela promessa de felicidade. Nem ignoro que qualquer uma das atividades que acabo de citar -ou qualquer outra que se imagine- seria capaz de lhes sugerir exatamente o cúmulo do tédio. Por quê? Como é possível ser tediosa a vida de uma pessoa que dispõe do seu tempo?
Creio que a resposta é que o tédio costuma acometer qualquer um que tenha orientado tudo na sua vida por uma única causa final.
A pessoa para quem o tédio se dá desse modo é aquela que tem um interesse obsessivo por uma só coisa. Nesse caso, encarando todas as demais coisas como meros caminhos ou obstáculos para a consecução do seu objetivo, ela as destitui de qualquer interesse intrínseco.
À medida que, em vez de facilitar o avanço dela rumo a esse ponto final, algo possui uma espessura e opacidade própria, à medida que exige atenção para si mesmo, passa a ser um obstáculo. Sendo assim, o tempo que, a contragosto, tal pessoa é obrigada a lhe dedicar, passa a ser um tempo de desvio, tempo que gostaria de ver passar o mais rapidamente possível, abrindo-lhe novamente caminho para a retomada da corrida rumo à finalidade última. Tal é o tempo do tédio, que ela tenta "matar", como se o tempo não constituísse a própria substância da vida.
O ponto final pode ser, por exemplo, uma paixão devoradora, que atropele tudo o mais. Digamos que uma pessoa vá a uma festa esperando ver o objeto de sua paixão e, lá chegando, não o veja. Então a festa que, não fosse por essa frustração, poderia ser uma delícia, torna-se, para ela, o mais puro tédio. Sem ganhar o objeto da paixão, ela perde o mundo. Eis uma das razões pelas quais tantos filósofos -inclusive Epicuro, que elogiava o prazer- apreciam o amor e a amizade, mas desconfiam da paixão.
13.7.08
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10 comentários:
E há quem entenda que a maioria dos males do Mundo acontecem exactamente pelos entediados!
Coincidência, "postei" há pouco excertos de Fernando Savater onde se fala sobre o assunto. Permita-me que...
http://okayempatins.blogspot.com/search?q=t%C3%A9dio.
Gosto muito de visitar o seu blog!
Parabéns!
:)
"Promessa de felicidade" me fez lembrar com grande satisfação do trecho de Journées já postado aqui no blog e com o qual, confesso agora, ando sempre. Carrego-o comigo, ainda, na mochila. Trata-se de uma arma violenta contra o tédio descoberta aqui.
Grande abraço,
Carlos Eduardo
Caro A. Cicero,
Para além do princípio do prazer, a eudaimonia, que identifica os processos internos de construção do humano- a virtude ( o amor e a amizade como algumas das suas expressões naturais)como geradores da felicidade ou antídotos do tédio; este último, como bem explicita seu belo texto,consequência nefasta da busca de satisfação através de objetos externos e fugazes ( as paixões como exemplo maior).
E como disse Epicuro: " Se queres enriquecer Pítocles, não lhe acrescentes riquezas: diminui-lhe os desejos".
Mais uma vez reitero: seus textos são fraternas bússolas para o meu prazeiroso caminho de construção do humano.
Abraço.
Mariano.
cicero, cicero, cicero,
o que escrever?
o que comentar?
dizer a minha alegria e o meu prazer ao lê-lo, linha a linha? eis o dito na pergunta! ;-)
maravilha! sempre arrebentando e me deixando feliz!
(não bastasse este dia na cidade do rio, janela aberta para o fundo azul, limpo, claro, nítido, a piscina às avessas de que fala eucanaã ferraz num de seus poemas, detendora, a luz azul, da faculdade de luzir as cores várias por sob o seu teto.)
e saravá!
com a mais alta estima deste que o adora e o preza.
Agradeço as palavras generosas de Paulinho, Mariano, Carlos Eduardo e mdsol.
Beijos.
Cícero, bravo! Como sempre sua lucidez nos desperta. Abraço do seu grande admirador. Alexandre Bonafim.
Amei o texto! De uma sensibilidade ímpar! Já devo ter lido umas 20 vezes...
Parabéns!
Antonio Cícero
Leitura dos conteúdos do seu blog em progresso:
A título de curiosidade, esta semana passei por um fragmento de ‘Passagens’ no qual Walter Benjamin define tédio assim:
“O tédio é um tecido cinzento e quente, forrado por dentro com a seda das cores mais variadas e vibrantes. Nele nos enrolamos quando sonhamos. Estamos então em casa nos arabescos do seu fosso. Porém, sob essa coberta, o homem que dorme parece cinzento e entediado. E quando então desperta e quer relatar o que sonhou, na maioria das vezes ele nada comunica além desse tédio. Pois quem conseguiria com um só gesto virar o forro do tempo ao avesso? E, todavia, relatar sonhos nada mais é do que isso. (...)”
Coincidentemente, na semana passada havia anotado a introdução de um fragmento de Roland Barthes em ‘R. B. por R. B.’ onde ele escreve: “Sonhar (bem ou mal) é insípido (que tédio, as narrativas de sonho!)”
a máxima do texto é perfeitamente concluída com o exemplo da festa (talvez) muito agradável e do objeto da paixão. perfeito.
a tristeza e o tédio percorreram meu entendimento graças a teu sábio texto! adorei.
A.Cicero,dá gosto de ler seus textos.
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