Assisti à estréia do excelente "Hamlet" dirigido por Aderbal Freire-Filho e protagonizado pelo Wagner Moura, que mereceu, em 24 do corrente, na "Ilustrada", da Folha de São Paulo, a seguinte crítica de Sérgio Salvia Coelho, que se encontra disponível no seu blog, "Na Moita" (http://namoita.zip.net/):
WAGNER MOURA FAZ O HAMLET DA SUA GERAÇÃO
Wagner Moura lançou-se na empreitada iniciática de “fazer seu Hamlet” anunciando a intenção que fosse apenas mais uma montagem. Falhou: é o Hamlet emblemático da sua geração. Espelho inesgotável, mas que reflete apenas o que se põe na sua frente, a obra prima de Shakespeare, síntese do Teatro, já teve o rosto compenetrado de Sérgio Cardoso, do Teatro do Estudante, que assumia a responsabilidade de construir o moderno teatro brasileiro; e no extremo oposto, um Marcelo Drummond se estraçalhando em uma entrega camicase ao caos dos anos 90, na montagem do Teatro Oficina.
Moura, Hamlet do milênio, tem pela frente um país que se reergue praticamente de ruínas, mas tendo aprendido importantes lições. Vestindo o personagem como uma armadura, consciente da batalha, Moura precisa primeiro exorcizar o fantasma da grandiloqüência com o humor adolescente que tanto o marcou. Não é pela melancolia, mas pelo deboche exasperado que ele rejeita a podridão de seu reino, e ganha a platéia nos trocadilhos e na marcação frenética. Mas há método nessa loucura: quando é preciso, triunfa pela simplicidade, e inesquecíveis monólogos marcam sua entrada definitiva no mundo adulto.
Com uma preciosa tradução dividida entre ele, Bárbara Harrington e o diretor Aderbal Freire-Filho, se faz compreender sem perder o frescor nem a beleza sonora. O “ser ou não ser” tem seu peso devido, ou seja, um devaneio entre parênteses, quando o mais importante está em suas considerações sobre o próprio teatro, e aí a bandeira de Shakespeare se desfralda com o vigoroso vento da sede por um teatro livre dos truques retóricos da autocontemplação.
Para isso, é preciso um diretor que ponha seu currículo inteiro em cena, como faz Freire-Filho. Não pode ser menos, com “Hamlet”: tudo o que o diretor já fez soa como uma preparação para o que se vê aqui. No cenário, retoma com Fernando Mello da Costa a experiência do “Púcaro Búlcaro”: coxias abertas, abarrotadas, com atores atentos, em contraste com o palco nu. Há o vídeo em cena, que esfriava “O Que Diz Molero”, e que agora acompanha passo a passo o texto, desdobrando suas leituras com grande impacto visual. Há sobretudo a soberania total do ator, que dispõe de todos os recursos do “romance em cena”, que lhe põe na mão instantaneamente tudo o que ele precisa.
Em uma das muitas metalinguagens, o pai de Hamlet, rei destronado por um canastrão, é uma entidade coletiva, feita por todo o elenco de apoio que se reveza na armadura: a verdadeira majestade é da trupe, não do indivíduo. Mas cada peça desse quebra-cabeças é precisamente ajustada.
Tonico Pereira, com sua bonomia que remeteria mais a Polônio, faz um Rei Cláudio extremamente simpático, e por isso perigoso: humano na sua fraqueza, Pereira atinge a maturidade como ator encontrando a tragédia no centro do cômico.
Georgiana Góes é uma Ofélia adolescente que se estraçalha na dor, por sambas e frevos que parecem improvisados na hora (façanha do autor da trilha, o hermano Rodrigo Amarante) para culminar no assombro do grito de Munch. Fábio Lago faz um Laertes transfigurado pelo ódio, que recobra a integridade no final; enquanto que Gillray Coutinho aproveita tudo o que Polônio pode lhe oferecer, na sua técnica espantosa, frenesi de tiques e pirotecnia verbal. Marcelo Flores e Cláudio Mendes, par de clowns meticulosos, sabem também honrar seus solos, enquanto coveiros e atores. Carla Ribas tem grande dignidade como Gertrudes, mas fica um pouco deslocada quando o desvario triunfa. Caio Junqueira (um Horácio carismático) e Felipe Kouri (que tira o máximo dos menores personagens) completam um elenco no qual ninguém faz sombra a ninguém, e é a história que prevalece.
A luz de Maneco Quinderé é sutil e precisa, enquanto que o figurino de Marcelo Pies sabe conciliar despojamento e requinte. Este Hamlet é indispensável e antológico justamente por sua essencialidade. Não busca ser original, mas eficiente, e faz um apelo emocionante e contagiante pela própria grandeza do Teatro. É para deixar qualquer um que tenha cedido à idéia da morte do teatro com vergonha. Na ratoeira de Hamlet, o que fica preso é o coração da platéia, com os olhos abertos para se ver refletido nesse espelho infinito. (quatro estrelas)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
3 comentários:
quando todas as máscaras caem
e a armadura,dura
se dissolve
fica o cerne, hiberne
querendo exorcizar meu bem querer
o que há de se fazer
gosto, carne, fome
meu rosto camicase
quer querer você.
Cicero, adorei a crítica. Dá uma noção precisa de como o espetáculo se mostra às retinas. Eu adoro "Hamlet", o texto em si é atual por natureza. Gostaria de ter assistido a nova montagem, Wagner Moura é ótimo. Marcelo, idem. Uma pena não estar aí. Um beijo pra você.
Obrigado, Arthur.
Beijo
Postar um comentário