Sábado, 25 de agosto, faleceu um dos intelectuais mais brilhantes do nosso tempo: o português Eduardo Prado Coelho. Leio com admiração os seus textos desde quando eu estudava no Instituto de Filosofia da UFRJ. Em fevereiro do ano passado, tive o prazer e o privilégio de conhecê-lo e de conversar longamente com ele em Portugal, nas Correntes d’Escritas de Póvoa de Varzim, em Portugal. Publico a seguir a belíssima crônica que a escritora Inês Pedrosa lhe dedicou em sua coluna do jornal Expresso, ontem, sábado, 1 de setembro:
Eduardo
Sobre o teu caixão, um girassol aberto. Disseram-me que o gesto veio da Teresa Belo – tu terás sorrido, e o Ruy Belo floriu contigo nesse sorriso, estendendo-te a mão. Uma das tuas heranças são as amigas, várias, escolhidas a dedo – em geral, mulheres fortes, radiosas como girassóis, com as quais conversavas infinitamente de tudo e de nada. Mulheres que riem. No fundo, invejavam-te tanto esse dom de gerar e manter amizades longas com mulheres como os outros todos – a erudição, a inteligência plástica, a escrita iluminante, o sentido de humor, o prazer de viver, a capacidade de organização, a liberdade da palavra, a visibilidade. E invejavam-te descaradamente o dom da paixão retribuída, que possuías em alto grau. Uma vez, um escritor perguntou-te: «Como é que você faz para ter tanto sucesso com as mulheres quando eu, que sou um homem bonito, não consigo ter nem metade?» Ter-lhe-ás respondido, segundo me contaste: « Não sei, é de facto estranho. O melhor será perguntar-lhes a elas». Fulminante, com uma gargalhada elegantíssima. Também isso te perdoavam pouco: a gargalhada, a elegância.
As mulheres gostavam de conversar contigo porque tu sabias dançar de tema para tema, misturar o sério e o risível, o sublime e o quotidiano. Os homens ainda não são educados para deslizar assim entre os diversos níveis da existência. Tinhas uma curiosidade insaciável e genuinamente democrática: tudo te interessava. Transitavas entre pessoas e artes sem preconceitos de espécie nenhuma – estavas sempre disponível para a alegria da descoberta e do encantamento. Revelaste e estimulaste muitíssimos talentos, sem nunca adoptares a pose tutelar do pai ou do padrinho latino – antes pelo contrário, entregavas-te ao prazer de admirar, que é uma jóia rara, no nosso Portugal de hierarquias, vénias e trocas de favores.
Uma figura grada convocou-te certa vez para um encontro à chuva, e, depois de te deixar marinar bastante no meio de uma praça, lá veio dizer ao que vinha: queria que tu mexesses uns cordelinhos para que lhe atribuíssem um Prémio prestigiado e chorudo. Respondeste que nem membro do júri eras, mas a figura insistia que o teu poder de influência resolveria isso. Eu pasmava com a tua bonomia diante destes assaltos permanentes. Porque continuavas a disponibilizar a mesma atenção – nem mais, nem menos – para o trabalho das múltiplas pessoas que te tentavam usar como SOS-Promoção. Eras generoso a fundo perdido, e fazias disso a tua riqueza: o que vivias, o que conhecias, o que aprendias. Pessoalmente, invejava-te sobretudo a capacidade de esquecer as ofensas. «Não é que perdoe, é que esqueço genuinamente. Não tenho arquivo para as coisas más, o que é que eu hei-de fazer?». E tornavas a rir. Era esse talento para o esquecimento o que te impedia de envelhecer. Dizia Manuel Alberto Valente ao «Público», na bela e dolorosa edição que esse teu jornal de sempre te dedicou, que foste o grande intelectual da geração dele. O pior é que eu olho para a geração seguinte, a minha geração, e também não vejo ninguém como tu, capaz de fazer a ponte entre a universidade, as artes (todas as artes) e a vida, capaz de dar o corpo pelas causas (recordo-te muito doente, no Inverno passado, numa tarde gelada, no Rossio, recolhendo assinaturas para o movimento de cidadãos em prol da interrupção voluntária da gravidez), capaz de estar em tudo, e tão intensamente, como tu. Sendo simultaneamente, como tu eras, como tu és – porque os textos não morrem – um cintilante escritor.
Várias vezes me pareceu que aquilo que escrevias sobre obras alheias era melhor do que a obra em si. E tu, modestamente, incentivavas-me a que olhasse outra vez. Eu olhava – e, se nem sempre consegui gostar do que tu gostavas, consegui pelo menos descobrir novas dimensões e estímulos nas tuas razões. Tinhas um cânone estético bem definido, mas de forma alguma estanque – pouco te perdoavam, aliás, uma coisa e outra. E tu, nas tintas. A frontalidade foi o único traço que senti alterar-se em ti, com o tempo – em particular nos últimos anos: como se a ronda da morte te levasse a escolher palavras cada vez mais directas e límpidas. Essa liberdade paga-se, claro –há pouco tempo telefonaras-me perguntando se não me importaria de a ir ao tribunal atestar do teu bom carácter.
Creio que essa liberdade indomável te terá vedado o acesso a cargos que terias servido na perfeição – ocorrem-me vários, desde Ministro da Cultura a director de programas da RTP. As tuas incessantes ideias e o teu modo comunicante de viver teriam sido muito úteis ao país – os dez anos em que foste conselheiro cultural em Paris marcaram uma projecção exponencial da cultura portuguesa em França.
Consola-me saber que não sofreste. Que apenas adormeceste, ao lado da mulher que amavas, depois de mais um dia feliz. Sem incomodar ninguém – como era teu timbre. Se me pedissem uma definição humana para a suavidade, eu dizia o teu nome. Eduardo Prado Coelho. E continuarei a evocar o teu riso, as tuas palavras, o teu exemplo, como se rodasse um inesgotável girassol.
Inês Pedrosa
2.9.07
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15 comentários:
À maneira de um adendo mínimo a esta belíssima crônica de Inês Pedrosa, reproduzo alguns linhas do que Eduardo Prado Coelho escreveu sobre Maria Gabriela Llanso -- e aí, nessas poucas linhas, está todo um ideário tanto de escrita quanto de leitura. Ei-lo:
"Leio Llansol de lápis na mão, porque é o lápis que me impõe a demora, que me entrava no texto. Isto é, detém-me, contém-me diante da palavra seguinte, obriga-me a voltar atrás, a enredar-me no desenho da escrita. Para mim, há dois tipos de livros muito diferentes: aqueles que se lêem sem lápis na mão, e os outros. (...)
O interessante fica, no entanto, por dizer/pensar: que na leitura-com-lápis, o sujeito da leitura é o devir-escrita do lápis em mim. Sobre o fascínio desse devir-escrita (o sublinhado, o apontamento, a palavra que ressalta, a fórmula, a variação, a derivação, o encadeamento, a precipitação, a fusão de horizontes), há ainda muito a reflectir."
Eduardo Prado Coelho, Tudo o que não escrevi, I: 18-19
E perdão, caro Antonio Cícero, pelas gralhas em "algumas linhas" e "Maria Gabriela Llansol".
Abraços.
Paulinho,
Por mim não tem problema, e eu não posso (ou não sei) corrigir um comentário de outra pessoa. Podemos deixar como está ou, se você preferir, envie uma versão corrigida. Ao recebê-la, eu apagarei a primeira versão.
Antonio Cicero
Saudações Antonio Cicero. Uma amiga recomendou seu blog e acabo de me deparar com uma crônica interessantíssima. Valeu a pena visitar!
Admiro muito seu trabalho, pretendo continuar frequentando seu espaço virtual!
um abraço,
Anderson!
Saudações e obrigado, Anderson:
seja bem-vindo!
Abraço,
Antonio Cicero
Caro Antonio Cicero [sem acento mesmo?], gostaria de lhe enviar um mail, mas não achei o seu endereço no blog... Estou gostando muito do seu livro "O mundo desde o fim". Pretende desenvolver mais o tema da apócrise? Quanto ao blog, cadê o índice de marcadores? Abraço, Edson Gil [www.viamoderna.blogspot.com; edg@ajato.com.br]
Caro Edson,
Alegra-me que você esteja lendo e gostando de "O mundo desde o fim". A apócrise tem sido objeto e ponto de partida de várias reflexões minhas.
Quanto ao índice, a verdade é que não sei. Obrigado pela dica. Vou procurar descobrir como exibi-lo. Não passo de um amador nessa coisa de blog.
Abraço,
Antonio Cicero
Caro Cícero,
Vejo que conseguiu adicionar o índice de marcadores. Eu só acharia melhor que esse índice ficasse depois do Arquivo e antes dos Links. Outra sugestão seria diminuir o tamanho das fontes.
Quanto à Apócrise, acho que você teve uma sacada genial!
Gostaria de saber se você conhece a obra de Erich Heintel, cuja doutrina das diferenças, especialmente da diferença transcendental, lembra bastante a sua teoria da apócrise.
E quanto a R. Lauth, você conhece? É um filósofo alemão, editor das obras completas de Fichte. Para Lauth, o verdadeiro fundador da filosofia transcendental foi Descartes; e Fichte, o grande continuador de Descartes e Kant, tendo menos que ver com os outros idealistas alemães.
Abraço,
Edson Gil
Obrigado pelas dicas. Acontece que acabo de chegar em casa, são quase duas horas da madrugada, e saio para o aeroporto amanhã, para embarcar para Belém, às seis. Assim, não vou poder fazer nada antes de regressar, na quarta-feira.
Não conheço a obra de Heintel. Obrigado pela referência. Quanto a Lauth, conheço-o justamente como editor das obras de Fichte. Tenho em CD-Rom da Karsten-Worm a edição que ele preparou. Não conheço, porém, a obra dele. Entretanto, é claro que já penso concordar com a tese que você menciona.
Obrigado também pelas suas palavras sobre o conceito de apócrise.
Dê uma vista-d'olhos nesta página [e respectivos links]:
http://phaidon.philo.at/asp/eheintel.htm#ll
Abraço,
edg
PREZADO ANTONIO CICERO,
A PORPÓSITO DESSE BONITO TEXTO, ENSEJO PARA DIZER QUE REENCETEI A LEITURA DE SEU LIVROO O MUNDO DESDE O FIM, E TERIA UMA PERGUNTA A LHE FAZER QUANTO AO ESTRATAGEMA EM TRANSFORMAR NÚN EM OÍ NÚN, POSTO NÃO SER NOMINATIVO PLURAL. ISSO NÃO CONTRARIARIA AS REGRAS DO MICRÓN, ALPHA, ÉTHA, SOANTE, CONSOANTE E OS DEVIDOS NOMINATIVOS, VOCATIVOS, ACUSATIVOS, GENTIVOS, DATIVOS E INSTRUMENTAIS... CLARO QUE NADA IMPEDE, MAS DENTRO DA LÓGICA HELENA SERIA A MEU VER UMA EXCRESCÊNCIA ARISTOTÉLICA... MAS ESTOU SÓ PERGUNTANDO... TENHO MAIS PERGUNTAS A FAZER, SOBRETUDO NO CAPÍTULO EU ...ESTOU A LER O SEU LIVRO COM CANETA EM PUNHO, COMO FAÇO COM TODOS OS ESCRITOS...
GRATO
WILSON LUQUES COSTA
Caro Wilson,
“Oi nun” não pode ser uma excrescência aristotélica, uma vez que ocorre num dos maiores escritores atenienses, que foi Platão (Fedro, 224c4). Na verdade, as credenciais dessa forma são puramente helênicas. Trata-se da elipse de uma forma que se encontra em Homero. Na Ilíada, ele diz, por exemplo (uso w para ômega), “oú tis twn oí nun brotoí eisin epixthónioi...”, isto é, “nenhum daqueles que agora são mortais sobre a terra”. O “oí” funciona aqui como pronome relativo. Quando Platão e Aristóteles usam “oi nun”, estão elidindo o pronome relativo e o substantivo “brotoí” ou “ánthrwpoi”. “Oi nun” representa “oi oí nun ánthrwpoi eisin”, isto é, “os que agora são seres humanos”. Em português poderíamos dizer “os de agora” ou, com prefiro, “os agorais”.
Abraço,
Antonio Cicero
Prezado Antonio Cicero,
Grato pelo retorno. Vou tentar encontrar esse texto. Será que seria possível vc grafar em grego... Eu mesmo queria grafar em grego e não consegui na Lan House. Como sigo o método do Murachco, e o pouco que aprendi nos 2 anos e meio que estive cursando no mosteiro de são bento e agora sozinho - consigo ´só´ compreender pelos temas em o micron, alpha e consosante. Você está falando num anafórico para esse caso? Peço desculpas pela palavra excrescência, que não foi grafada no intuito de uma cizânia, mas apontar somente um desvio de uma regra. E quanto à pergunta sobre o ´EU´, eu entendo que o instante está indissoluvelmente ligado ao eu, até onde compreendo, mas nesse caso o eu não seria um fragmento do tempo universal, sendo pontuado pela ´eidade´ particular desse mesmo eu? Outra coisa, o tempo não estaria em função de objetos ´ônticos´ também, além dele em si mesmo, ausente de espaço? Eu entendo o tempo como o mais dos universais dos universais conceitos, e se assim entendo, o instante seria meramente, nesse caso, fragmentos desse tempo universal, pontuado por um ´eu´ particular e finito. É evidente que estou seguindo step by step, ou seja: a modernidade morre a cada instante e também renasce, como no poema do concretista: morre renasce, morre renasce...Mas a minha pergunta é quanto ao tempo mais universal...
Desculpe-me se não estou entendendo devidamente o que escreveu - plo menos vc está aí para retificar as nossas hermenêuticas desazadas...
Muito obrigado pela sua resposta...
wilson luques costa
Quanto à primeira questão, envio-lhe um e-mail em .pdf com os caracteres gregos.
Quanto à segunda:
Você diz que entende o tempo como o mais universal dos conceitos, e tenta entender este instante a partir dessa concepção. Peço-lhe que, ao menos provisoriamente, ponha de lado essa concepção e apenas siga o fio do argumento que desenvolvo a partir da página 17.
O que ali mostro é que, considerado em sua essência, eliminando-se dele tudo o que é acidental, eliminando-se tudo o que poderia não estar nele, este instante não é nada em particular, pois sempre, necessariamente, é este instante. Não posso viver senão neste instante. Tudo o que existe existe neste instante. Portanto, considerado em sua essência, este instante não pode ser fragmento de coisa alguma: ao contrário, qualquer fragmento pertence a ele. Entretanto, este instante é essencialmente o instante em que eu me encontro: do contrário não seria este instante.
Abraço,
Antonio Cicero
Prezado Antonio Cicero,
Vou seguir em frente no texto. Mas a minha dúvida concerne ao pensamento que é atrelado a um soma, porque, e aí eu tenho dúvidas também, e por isso particularizado enquanto apêndice e ´originado desse soma`. Portanto com data de vencimento. Sei que é difícil questionar assim, mas seria pior in loco, porque pode causar muitas pendengas e no Brasil discussão filosófica vira diatribe filosófica, pelo menos as poucas que conheci. Sei que não é o seu caso. Quando você fala do pensamento pensante que lerei com mais rigor, eu acho que seria possível se fosse aeternum´perenis. Mas estou seguindo em frente. Mas você articula muito bem, e é de uma cultura, no Brasil, que seria um ultraje para muitos...
abraços
wilson luques costa
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