13.6.10

Nietzsche e o niilismo




O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 12 de junho:


Nietzsche e o niilismo


Nietzsche, em “A vontade de poder”, pergunta: “Que significa o niilismo?” E responde: “Que os valores supremos estão perdendo o seu valor”. Em “A gaia ciência”, ele descreve o niilismo como “a desconfiança de que há uma oposição entre o mundo em que até há pouco estávamos em casa com nossas venerações [...] e outro mundo em que somos nós mesmos: desconfiança inexorável, radical, profundíssima [...] que poderia colocar a próxima geração ante a terrível alternativa: ou vocês abolem as suas venerações ou – a si próprios! A segunda opção seria o niilismo – mas não seria a primeira também niilismo?”

Na verdade, o niilismo nesse sentido, isto é, a desconfiança e a negação dos valores supremos, constitui a SEGUNDA etapa do niilismo. A primeira consiste na depreciação da vida real em nome da postulação e da valorização de um mundo supra-sensível superior a ela. É o que faz a metafísica platônica, por exemplo. Platão, como se sabe, defende que o mundo que nos é dado pelos sentidos e no qual agimos, não passa de um simulacro do mundo verdadeiramente real, que é o mundo das ideias eternas, universais e imutáveis e, em primeiro lugar, da ideia do bem: do bem em si. “O pior, mais persistente e perigoso dos erros até hoje”, diz Nietzsche, “foi um erro de dogmático: a invenção platônica do puro espírito do bem em si”. Por que? Porque ele desvaloriza o mundo real. O mundo sublunar em que vivemos é tanto menos dotado de realidade e valor, quanto mais se afaste desse mundo ideal.

Segundo Nietzsche, o Cristianismo é um platonismo vulgar, um “platonismo para o povo”. Trata-se, portanto, de niilismo para o povo. É “o nada divinizado”, como diz. Que maior degradação do mundo real pode ser concebida? Tal é a primeira etapa do niilismo, na Europa.

E como se chega à segunda etapa, isto é, o niilismo que já se considera como tal? Em “A vontade do poder”, Nietzsche especula que a moralidade cristã acaba por se voltar contra o próprio Deus cristão. A valorização da veracidade, que faz parte dessa moral, alimenta uma vontade da verdade que acaba por se revoltar contra a falsidade das interpretações cristãs do mundo. Descobre-se que não se tem o menor direito de pressupor um ser transcendente ou um em si das coisas, que fosse ou divino ou a encarnação da moralidade. A reação contra a ficção de que “Deus é a verdade” é: “Tudo é falso”.

A partir disso, negam-se todos os valores supremos. É a morte de Deus. O domínio do transcendente se torna nulo e vazio. O niilista nega Deus, o bem, a verdade, a beleza. Nada é realmente verdadeiro, nada realmente bom. Se antes a vida real era desvalorizada em nome dos valores supremos, agora os próprios valores supremos são desvalorizados, sem que se tenha reabilitado a vida real. Desmente-se o mundo metafísico, sem se crer no mundo físico. Nega-se qualquer finalidade ou unidade ao mundo. Nada vale a pena. No limite, dá-se uma negação de toda vontade. A vida é inteiramente depreciada.

Mas além desse modo passivo de niilismo passivo, que representa decadência e constitui um retrocesso do poder do espírito, há um outro niilismo, que Nietzsche chama de “niilismo ativo”. Este representa o aumento do poder do espírito. Nietzsche afirma que “seu máximo de força relativa, o [espírito] alcança como força violenta de destruição: como niilismo ativo”. Nietzsche classifica a si próprio como o primeiro niilista europeu perfeito, isto é, “o primeiro niilista europeu que já viveu em si o niilismo até o fim, já o deixou atrás de si e o superou”.

Tal niilismo não pode consistir, evidentemente, na destruição física das coisas ou dos seres humanos. Trata-se antes da abertura do caminho para a “transvaloração de todos os valores”, através do reconhecimento do caráter meramente relativo, particular e contingente de todas as crenças e valores dados. Ora, não é exatamente a esse reconhecimento que o ceticismo metódico instaurado pela filosofia moderna deveria ter conduzido, se tivesse realmente sido levado às últimas conseqüências? Não teria ele então consistido em niilismo ativo? Nesse sentido, Heidegger tem razão, ao pensar que Descartes está menos distante de Nietzsche do que este imagina...

9 comentários:

Climacus disse...

nem cá nem lá, nem Platão, nem Nietzsche,

e se mundo ruísse, o que restaria? somente um eu testemunha (marturion) assustada do que afinal não passou de uma grande chatice ou também alguma coisa (das Ding) à espera de outro olhar? e quanto tempo ele suportaria a pergunta sobre sua existência? e onde ele descansaria nesse intervalo silencioso do intermundia?

"Silêncio por favor/ Enquanto esqueço um pouco/ a dor no peito/ Não diga nada/ sobre meus defeitos/ Eu não me lembro mais/ quem me deixou assim/ Hoje eu quero apenas/ Uma pausa de mil compassos/ Para ver as meninas/ E nada mais nos braços/ Só este amor/ assim descontraído/ Quem sabe de tudo não fale/ Quem não sabe nada se cale/ Se for preciso eu repito/ Porque hoje eu vou fazer/ Ao meu jeito eu vou fazer/ Um samba sobre o infinito" ("Para ver as meninas", Paulinho da Viola).

Elisa disse...

Seus textos são sempre lúcidos, Cícero. Muito bom.

Aetano disse...

Caro Cicero,

Incrível! Talvez influenciado pela leitura do livro de Losurdo, intuí que - depois de Heidegger - vc miraria em Nietzsche. Mas, confesso que me surpreendi ao constatar que, em certo sentido, o Antonio Cicero de "O mundo desde o fim" está menos distante de Nietzsche do que EU imaginava.

Excelente reflexão!

Abraço

Alcione disse...

Verdade

Um monte de coisas
Estão sobre a estante
Todas, quase inúteis,
Existem pois são o bastante
Úteis na sua inutilidade
Ocupam os espaços
Além de mim, teu ser
Minha verdade.

Bruno Cava disse...

O niilismo ativo de Nietzsche é mais profundo que a dúvida superficial de Descartes. Este entra em círculo vicioso: a dúvida, por ser exercício da razão, confirma-a no mesmo ato em que a nega. Para Descartes, a razão é imune a ataques da razão. Se a razão ao especular é um espelho que reflete a realidade, de fato é impossível ver do outro lado, o avesso da especulação. Daí que o niilismo nietzschiano vai mais além. Porque desenvolve justamente esse outro lado, o nada que inspira a poesia --- motor latente da criação filosófica. A dúvida de Nietzsche, dúvida da dúvida, niilismo perfeito, mais do que um exercício da razão, é um clima, uma atmosfera, uma sensibilidade, que tem no nada a sua melodia e inspiração. Todo pensamento brota do nada, toda criação é ex nihilo.

Martins Fontes selo Martins disse...

Olá Antonio Cicero, li se artigo, muito bom e aproveito par informa-lo sobre o nosso Niilismo e negritude
Célestin Monga:
Natural de Camarões, Monga tornou-se popular após ter sido preso por criticar o presidente camaronês em um artigo que escreveu para o jornal Le Messager. Sua prisão causou vários protestos pelo país. Por vários anos, ele escreveu artigos para jornais, principalmente fazendo críticas à política camaronesa. Através do seu trabalho, ficou conhecido como um dos maiores intelectuais do país.
Hoje é economista-chefe e assessor do vice-presidente do Banco Mundial em Washington D.C. Durante sua carreira de treze anos no banco, ele ocupou posições no departamento de pesquisa, incluindo o cargo de economista principal na Europa e na Ásia Central e de gerente da equipe de revisão de políticas.

Lançamento: Niilismo e negritude, com a visita do autor no Brasil,SP,RJ e Santos na Tarrafa literária.
Em “Niilismo e negritude”, obra que apresenta, sem exotismo, visões africanas da arte de viver, ele convida o leitor a trilhar as formas de invenção do amor-próprio, as maneiras de encarar a felicidade, os labirintos da moral, os mistérios da estética musical, os meandros da fé religiosa, os dilemas da violência ou a filosofia da morte. Porém não se trata de um texto dogmático. Configura os imaginários da África atual: do absurdo pitoresco da vida cotidiana à economia política do casamento, da filosofia dos cardápios e dos modos à mesa até os usos do corpo. Esse formigar de histórias e de ideias mostra diversas formas de niilismo e de negritude, esboçando a hipótese de uma ética do mal.

Caso lhe interesse a resenha

imprensa@martinsmartinsfontes.com.brr

Martins Fontes selo Martins disse...

Niilismo e Negritude, lançamento da Martins Fontes
Célestin Monga:
Natural de Camarões, Célestin Monga
se tornou popular após ter sido preso por criticar o presidente camaronês em um artigo que escreveu para o jornal Le Messager. Sua prisão causou vários protestos pelo país. Por vários anos, ele escreveu artigos para jornais, principalmente fazendo críticas à política camaronesa. Através do seu trabalho, ele ficou conhecido como um dos maiores intelectuais do país.
Hoje é economista-chefe e assessor do vice-presidente do Banco Mundial em Washington D.C. Durante sua carreira de treze anos no banco, ele ocupou posições no departamento de pesquisa, incluindo o cargo de economista principal na Europa e na Ásia Central e de gerente da equipe de revisão de políticas.  


Autor de Niilismo e Negritude,obra que apresenta, sem exotismo, visões africanas da arte de viver e convida o leitor a trilhar as formas de invenção do amor próprio, as maneiras de encarar a felicidade, os labirintos da moral, os mistérios da estética musical, os meandros da fé religiosa, os dilemas da violência ou a filosofia da morte. Mas não se trata de um texto dogmático. Configura os imaginários da África atual: do absurdo pitoresco da vida cotidiana à economia política do casamento, da filosofia dos cardápios e dos modos à mesa até os usos do corpo. Esse formigar de histórias e de ideias mostra diversas formas de niilismo e de negritude, esboçando a hipótese de uma ética do mal.

Anônimo disse...

Olá Antônio Cícero

Nesse louco mundo virtual onde a informação não brota, explode, procurando eu informações sobre o livro "Vontade de Potência", atribuído a Nietzsche, deparei-me com seu artigo. Dupla surpresa: achar seu blog (eu que, em tempos de jornal impresso costumava ler suas colunas); e achar uma referência sua à essa compilação.

Sempre me incomoda ver esse livro atribuído à Nietzsche, posto que ele, ainda que tenha criado e explicitado o conceito, não deixou nenhuma obra com esse nome.

Além do mais segundo registros históricos e biográficos sobre Nietzsche e sua obra, os quais sempre persigo, a irmã (nacionalista) de Nietzsche, tendenciosamente, agrupou escritos deixados pelo irmão (um anti pan-germânico, no dizer de Antônio Cândido). Esse agrupamento, de intenções distorcivas, colaborou fortemente para nutrir imagens falsas que ainda hoje perduram (como associar Nietzsche ao nazismo, devido à aproximação de Elizabeth com o nazismo e com Adolf Hitler).

Naturalmente não vai aqui uma crítica a você, mesmo porque há muito tempo e por muito tempo essa distorção é difundida.

Mas essa é uma campanha pessoal e solitária que abracei desde que me tornei um ávido leitor de/sobre Nietzsche, o que me "limpou" de quase todo o ranço de religião que carreguei inconscientemente por anos, mesmo após abandonar quaisquer teísmos, aos 16 anos.

Um grande abraço.

Vinicius Siqueira disse...

Olá, Antônio Cícero!

Achei esta passagem crucial, "tal niilismo não pode consistir, evidentemente, na destruição física das coisas ou dos seres humanos. Trata-se antes da abertura do caminho para a “transvaloração de todos os valores”, através do reconhecimento do caráter meramente relativo, particular e contingente de todas as crenças e valores dados".

É interessante entendermos que a transvaloração e a vida niilista ATIVA só acontecem em um espírito livre.

Ou seja, só vivendo a vida de peito aberto é possível não cair no niilismo passivo, que é entregar a vida para o nada.

Na verdade, poderíamos até enquadrar a nossa época, chamada de hedonista, consumista, no niilismo passivo. Não há a fabricação criativa de valores, a potência ativa correndo solta. O que há é uma tentativa de encontrar a felicidade através dos prazeres sensíveis, tomando como fundamento a negação do valor... É cair no nada.

Eu cheguei a abordar este tema em meu site, no Colunas Tortas, quando falei sobre o niilismo, dá uma olhada lá depois :) https://colunastortas.wordpress.com/2014/09/24/o-niilismo-nietzsche-decadencia-como-um-processo/