31.12.09

FELIZ ANO NOVO!

30.12.09

Carlos Drummond de Andrade: "Passagem do ano"




Agradeço ao querido Aetano por me ter enviado o seguinte poema, de que já não me lembrava, de Drummond:



Passagem do ano


O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor [da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, [doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o [clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do [acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos [séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras [espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.



ANDRADE, Carlos Drummond de. "A rosa do povo". In: Poesia completa.. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

29.12.09

Hans Magnus Enzensberger: "Unter der Hirnschale" / "Debaixo do crânio": tradução de Samuel Titan




Debaixo do crânio

Isso que não pára, pulsa
e dispara, isso sou eu?
Mas como? É só
a massa cinzenta de dentro.
Ela me observa,
eu a observo.
Um surpreende o outro.
Nem sempre meu cérebro faz
o que eu quero. Mal-entendidos,
conflitos não faltam.
Quando cai a noite,
eu tento, simplesmente,
desligá-lo. Em vão.
Ele segue a trabalhar, a produzir,
invenções de própria lavra,
e delas nada sei,
por elas mal respondo.
Volta e meia, sem consulta-lo,
eu também faço das minhas.
E só muito tarde paramos
de espreitar um ao outro
e deixamos estar.
Então se faz, por fim, a paz.


Unter der Hirnschale

Was da unaufhörlich tickt
und feuert, das soll ich sein?
Woher denn. Es ist nur
diese graue Masse da drinnen.
Sie beobachtet mich,
ich beobachte sie.
Wir überraschen einander.
Nicht immer macht mein Gehirn,
was ich will. Mißverständnisse,
Kräche bleiben nicht aus.
Wenn es dunkel wird,
versuche ich, es ganz einfach
abzuschalten. Vergebens.
Es arbeitet weiter, erzeugt
Erfindungen, auf eigene Faust,
von denen ich nichts weiß,
für die ich nicht hafte.
Oft, ohne es zu fragen,
denke ich mir mein Teil.
Nur ganz zuletzt hören wir auf,
einander zu belauern,
und lassen es gut sein.
Dann herrscht endlich Ruhe.



ENZENSBERGER, Hans Magnus. Rebus: Gedichte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2009

Tradução: TITAN, Samuel

27.12.09

Abu Muhammad Ibn Sara as-Santarini: "Muchacho de ojos azules": original árabe; tradução castelhana por Teresa Garulo




O poeta andaluz Abu Muhammad Ibn Sara, chamado "as Santarini" por ter nascido em Santarén, viveu entre os séculos XI e XII. Como não leio em árabe, somente conheço sua poesia na -- bela -- tradução castelhana de Teresa Garulo. Eis um exemplo dela:



Muchacho de ojos azules

Es un joven esbelto, sobre cuya túnica
veo alzarse una luna
brillando en un cielo de perfecciones.
Ha sentenciado a nuestros corazones
la recta lanza de su cuerpo
donde reluce el hierro de sus ojos azules.



Rapaz de olhos azuis

É um jovem esbelto, sobre cuja túnica
vejo alçar-se uma lua
brilhando num céu de perfeições.
Sentenciou nossos corações
à reta lança de seu corpo
onde reluz o ferro de seus olhos azuis.



IBN SARA as-SANTARINI, Abu Muhammad. Poemas del fuego y otras casidas. Recopilación, edición, traducción y estudio de Teresa Garulo. Madrid: Hiperión, 2001.

25.12.09

Luís de Camões: "Aquela cativa"

Aquela cativa

Endechas a ũa cativa com quem andava de amores na Índia, chamada Bárbora.

Aquela cativa
que me tem cativo,
porque nela vivo
já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
em suaves molhos,
que pera meus olhos
fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,
nem no céu estrelas
me parecem belas
como os meus amores.
Rosto singular,
olhos sossegados,
pretos e cansados,
mas não de matar.

Uma graça viva,
que neles lhe mora,
para ser senhora
de quem é cativa.
Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde opinião
que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.
Leda mansidão,
que o siso acompanha;
bem parece estranha,
Mas bárbora não.

Presença serena
que a tormenta amansa;
nela, enfim, descansa
toda a minha pena.
Esta é a cativa
que me tem cativo.
E pois nela vivo,
é força que viva.



CAMÕES, Luís de. Lírica completa. Vol.1. Prefácio e notas de Maria de Lurdes Saraiva. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1980.

23.12.09

W.H. Auden: "As I walked out one evening" / "Ao descer a rua Bristol: tradução de Nelson Ascher




Ainda sobre o tempo (tema bem a propósito no fim do ano), uma belíssima balada de W.H. Auden, com a tradução -- que é um admirável tour de force -- de Nelson Ascher:





Ao descer a rua Bristol
uma tarde, eu vi os demais
que eram como, antes da ceifa,
os já maduros trigais.

E ouvi junto ao rio, debaixo
da ponte da ferrovia,
um namorado cantando
como ele sempre amaria:

“Vou te amar, meu bem, até
que a África se junte à China,
que o rio salte a montanha
e salmões cantem na esquina.

Vou te amar até que o oceano
seque pendurado ao léu,
até que as Plêiades grasnem
quem nem os gansos no céu.

Anos fujam como lebres,
pois, nos braços, eu estreito
a Flor de Todas as Eras
e, entre amores, o perfeito.”

Mas, nas ruas, mil relógios
badalaram com alarde:
“Não confies nunca no Tempo,
Ele triunfa cedo ou tarde.

Nos desvãos do pesadelo,
onde a justiça está nua,
o Tempo espreita das trevas
e em teu beijo se insinua.

Em transtornos e ansiedade,
nossa vida esvai-se a esmo
e o Tempo há de impor-se a todos
amanhã ou hoje mesmo.

Neva em muitos vales verdes
e o Tempo reduz a nada
o arco que o mergulhador
descreve e a dança ensaiada.

Põe a mão até o pulso
dentro da água, na bacia,
pondera, ao fitar-lhe o fundo,
que tua vida foi vazia.

Desertos gemem na cama,
o armário acolhe o glaciar,
e a chávena leva à Terra
dos Mortos, ao se rachar.

Lá mendigo é perdulário
e o Gigante agrada a João,
anjinhos rugem ferozes,
Mariazinha dá no chão.

Olha bem, olha no espelho,
olha cheio de pesar:
viver é uma bênção, mesmo
que não possas abençoar.

Fica à janela conforme
ferve o choro assustador;
ama o próximo traiçoeiro
com teu coração traidor.”

Caía a noite, o casal
fora embora, a litania
dos mil relógios cessara
e, profundo, o rio corria.



As I walked out one evening,
Walking down Bristol Street,
The crowds upon the pavement
Were fields of harvest wheat.

And down by the brimming river
I heard a lover sing
Under an arch of the railway:
'Love has no ending.

'I'll love you, dear, I'll love you
Till China and Africa meet,
And the river jumps over the mountain
And the salmon sing in the street,

'I'll love you till the ocean
Is folded and hung up to dry
And the seven stars go squawking
Like geese about the sky.

'The years shall run like rabbits,
For in my arms I hold
The Flower of the Ages,
And the first love of the world.'

But all the clocks in the city
Began to whirr and chime:
'O let not Time deceive you,
You cannot conquer Time.

'In the burrows of the Nightmare
Where Justice naked is,
Time watches from the shadow
And coughs when you would kiss.

'In headaches and in worry
Vaguely life leaks away,
And Time will have his fancy
To-morrow or to-day.

'Into many a green valley
Drifts the appalling snow;
Time breaks the threaded dances
And the diver's brilliant bow.

'O plunge your hands in water,
Plunge them in up to the wrist;
Stare, stare in the basin
And wonder what you've missed.


'The glacier knocks in the cupboard,
The desert sighs in the bed,
And the crack in the tea-cup opens
A lane to the land of the dead.

'Where the beggars raffle the banknotes
And the Giant is enchanting to Jack,
And the Lily-white Boy is a Roarer,
And Jill goes down on her back.

'O look, look in the mirror,
O look in your distress:
Life remains a blessing
Although you cannot bless.

'O stand, stand at the window
As the tears scald and start;
You shall love your crooked neighbour
With your crooked heart.'

It was late, late in the evening,
The lovers they were gone;
The clocks had ceased their chiming,
And the deep river ran on.




Original:
AUDEN, W.H. Selected poems. London: Faber & Faber, 1979.

20.12.09

Haroldo de Campos: "horácio contra horácio"




Haroldo de Campos – que no entanto não só admirava a Ode III.XXX, mas também a traduziu – prefere supor, ao menos no poema "horácio contra horácio", uma contradição entre o carpe diem e a aspiração da Ode III.XXX. Reconheço tratar-se de uma interpretação perfeitamente legítima, mas, para mim, o que em última análise justifica sua adoção é exatamente o fato de ter resultado nesse magnífico poema:


horácio contra horácio

ergui mais do que o bronze ou que a pirâmide
ao tempo resistente um monumento
mas gloria-se em vão quem sobre o tempo
elusivo pensou cantar vitória:
não só a estátua de metal corrói-se
também a letra os versos a memória
— quem nunca soube os cantos dos hititas
ou dos etruscos devassou o arcano?
o tempo não se move ou se comove
ao sabor dos humanos vanilóquios —
rosas e vinho — vamos! — celebremos
o instante       a ruína       a desmemória




CAMPOS, Haroldo de. Crisantempo: No espaço curvo nasce um. São Paulo: Perspectiva, 2004.

18.12.09

Ainda sobre as odes de Horácio




Na Ode III.XXX de Horácio, postada na segunda-feira, dia 15, o poeta diz que seus poemas, inclusive, é claro, essa ode mesma, não serão destruídos pela fuga dos tempos.

Já na Ode I.XI, que postei em 18/05/2009, e que é a origem do conceito de “carpe diem” (“colhe o dia”), o eu lírico recomenda à sua amante, Leucônoe: “Colhe o dia, minimamente crédula no porvir”.

Ou seja, enquanto em III.XXX ele fala do futuro dos seus poemas, em I.XI ele recomenda ignorar o futuro. Que houvesse uma contradição aqui não seria nenhum problema: um poema pode contradizer o outro, sem que nenhum dos dois sofra o menor arranhão. Se ambos forem bons, então, ao ler o primeiro, concordamos inteiramente com ele; ao ler o segundo, é com este que concordamos inteiramente, sem deixar de continuar a concordar com o primeiro. Ambos podem ser profundamente verdadeiros ou reveladores. Um poema é capaz se contradizer a si próprio e ser uma obra prima: ele pode até ter que se contradizer para vir a ser uma obra prima.

De todo modo, não sei sequer se essas duas odes de Horácio realmente se contradizem. Penso que a concepção da poesia que preside a Ode III.XXX é que, dado que os grandes poemas valem por si, eles são inteiramente indiferentes às contingências do tempo. Em princípio, portanto, não haverá tempo em que já não valham. O que interessa é que eles sempre merecem existir agora: seja quando for agora. Apreciá-los é sempre colher o dia: carpere diem. No fundo, portanto, parece-me não haver contradição entre essas duas odes. Algo nesse sentido manifesta-se no meu poema “História”, do livro “A cidade e os livros”, que se refere diretamente à ode XXX.:

[...]
Tudo que há no mundo some:
Babilônia, Tebas, Acra.
Que o mais impecável verso
breve afunda feito o resto
(embora mais lentamente
que o bronze, porque mais leve)
sabe o poeta, e não o ignora
ao querê-lo eterno agora.

16.12.09

Sobre a Ode de Horácio postada ontem

A ode de Horácio que postei ontem é, com razão, considerado um dos maiores poemas líricos de todos os tempos. Horácio diz que seus poemas durarão mais que as pirâmides do Egito e que ele crescerá no louvor dos vindouros. A segunda parte já sabemos ser verdadeira, de modo que, enquanto houver civilização, então, ainda que a erosão causada pela água e pela chuva tenha destruído as pirâmides, as Odes de Horácio – inclusive esta – continuarão de pé. E a verdade é que isso já se sabia na época em que esses poemas foram escritos. Pela evidência da sua deslumbrante beleza, as Odes desde sempre mereceram viver eternamente.

O poema, entretanto, pode oferecer algumas dificuldades ao leitor moderno, principalmente por citar pessoas e lugares hoje esquecidos por quase todo o mundo. Pois bem, a edição (da editora Cotovia) da excelente tradução de Pedro Braga Falcão que utilizei – e que recomendo enfaticamente – é aparelhada com notas que indicam o sentido das referências mais importantes. Abaixo, reproduzo as notas referentes à ode III.XXX. Os números à direita correspondem aos versos em que elas ocorrem.



3 Áquilo: Vento do norte.

7 Libitina: Deusa romana que assistia às cerimónias funerárias.

9 Capitólio.. O Capitólio é, para os Romanos, o símbolo da eternidade de Roma (cf. Vergílio, Eneida IX. 448 e s.): enquanto estiver de pé, Roma sobreviverá. A "Virgem" é a vestal que sobe ao Capitólio para orar pelo bem da cidade; está em silêncio devido à sua solene tarefa.

10 Áufido: O maior rio da Apúlia (actualmente o rio Ofanto), região onde Horácio nasceu. O poeta subtilmente vaticina que na sua terra será para sempre celebrado,

11 Dauno: O mítico fundador da Dáunia (cf. I. 22. 13, n.), mais uma referência à terra natal de Horácio. O rei é "pobre em água" devido à aridez e secura da região.

13 O Primeiro: Horácio foi de facto (exceptuando dois carmina de Catulo, escritos no metro sáfico, nomeadamente o 11 e o 51) o primeiro poeta latino a escrever sistematicamente nos metros da lírica grega eólia, representada por Safo e por Alceu.

16 Melpómene: Esta musa foi por Horácio associada à poesia lírica (cf. I. 24. 3), e não à tragédia, como é costume.

15.12.09

Horácio: Ode XXX do livro III: traduzida por Pedro Braga Falcão








Texto em latim:
HORACE. The Odes. Edited with introduction, revised text and commentary by Kenneth Quinn. London: MacMillan Education, 1985.


Tradução portuguesa:

HORÁCIO. Odes. Tradução de Pedro Braga Falcão. Lisboa: Cotovia, 2008.

13.12.09

Fernando Pessoa e os mitos

O seguinte artigo foi publicado sábado, 13 de dezembro, na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo:

Fernando Pessoa e os mitos


"O MITO é o nada que é tudo", diz o famoso primeiro verso do poema "Ulisses", do livro "Mensagem", de Fernando Pessoa. Em anotação de 1930 que devia ser o esboço do prefácio para a edição projetada das suas obras, ele diz: "Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade".

Essa concepção dos mitos como obras parece-me estar de acordo com a concepção homérica. Na cultura oral primária grega, que desconhecia a escrita, "mythos" se opunha a "epos". "Epos" (de onde vem "epopeia", a produção de "epos") é o discurso que se reitera, como as canções, os provérbios, algumas rezas, os epítetos tradicionais dos heróis ou deuses, e cada palavra individual.

"Mythos" é, ao contrário, o que jamais se reitera, como uma conversa qualquer, isto é, aquilo que se diz sobre alguma coisa. Assim, o mito de Édipo, por exemplo, é simplesmente o que se diz sobre Édipo. Pois bem, o que é que se diz sobre Édipo? Para nós é principalmente o que os poetas disseram sobre Édipo; em primeiro lugar, é o que os maiores poemas sobre Édipo disseram sobre ele: e esses são as peças de Sófocles; em segundo lugar, é o que os outros, como Freud, disseram principalmente a partir do que Sófocles dissera. Assim também, o mito de Ulisses é principalmente o que dele nos contam os poemas homéricos; o de Hamlet, principalmente o que dele nos conta Shakespeare etc.

Segundo o historiador Heródoto, foram os poemas de Hesíodo e de Homero que criaram "uma teogonia para os helenos e deram as denominações e as honras e distribuíram as artes e indicaram os aspectos dos deuses".

Assim, Pessoa tem razão quando, em anotação, de 1918, tendo observado que "a religião cristã é essencialmente dogmática, no sentido de que tem princípios assentes, aos quais o crente tem, dentro de estreitos limites, que subordinar-se”, observa que “no paganismo não é assim. A sua ação imaginativa criadora não se sente presa. Pode inventar um belo mito, que, se na verdade for belo ou insinuador, entrará na religião. Tão humana comunhão com a vida dos deuses não é possível no cristismo. O cristão católico tem a liberdade de inventar aparecimentos de Maria a este ou àquele, mas há severos limites às suas faculdades mitopeicas".

Dado que o criador de mitos, como mostra Heródoto, é o poeta, então é o poeta que, ao criar mitos, exerce, segundo Pessoa, "o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade": e é esse poeta que ele pretende ser.

Observo que essa concepção do poeta como criador de mitos está longe de ser trivial em nossa época. Muito mais comum é a contrária, que herdamos do romantismo, mas cuja origem mais remota talvez esteja em Platão. Refiro-me à concepção segundo a qual o mito é um arquétipo imemorial, incriado, que os poetas, por uma espécie de anamnese, recuperam para a comunidade a que pertencem. Para Pessoa, segundo penso, o mito é exatamente o oposto disso: o produto da poesia.

Não é gratuitamente que Pessoa retoma o mito de Ulisses e sua lendária fundação de Lisboa. Seu Portugal representa o mais alto destino não tanto da Grécia, da Europa ou do Ocidente em particular, mas, no fundo, de todos esses e mais, isto é, o destino do mundo moderno. "A arte portuguesa", diz ele em "Ultimatum e Páginas de Sociologia Política", "será aquela em que a Europa (entendendo por Europa principalmente a Grécia Antiga e o universo inteiro) se mire e se reconheça sem lembrar do espelho".

É assim que a verdade profunda do seguinte texto de Pessoa fica mais evidente quando se compreende que a palavra "português" funciona nele como um curinga, podendo ser substituída por "brasileiro", "italiano", "russo" etc.:

"Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistamos já o Mar: resta que conquistemos o Céu [...]. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa! Criemos assim o Paganismo Superior, o Politeísmo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade".

12.12.09

George Gordon Byron: estrofe 17 do canto IX de "Don Juan": tradução de Augusto de Campos




Don Juan

Canto IX

17
Que sais-je?, esse mote de Montaigne
É uma verdade mais do que curial.
É duvidoso tudo o que se ganhe
Por mais que nos pareça natural,
Certeza não existe, tudo é vão e
Fugaz como é a condição mortal.
Tão pouco nós sabemos desta vida
Que a dúvida da dúvida duvida.


17
'Que sais-je?' was the motto of Montaigne,
As also of the first academicians:
That all is dubious which man may attain,
Was one of their most favourite positions.
There 's no such thing as certainty, that 's plain
As any of Mortality's conditions;
So little do we know what we 're about in
This world, I doubt if doubt itself be doubting.



BYRON, George Gordon. Estrofe 17 do canto IX de "Don Juan". In: CAMPOS, Augusto de. Byron e Keats. Entreversos. Campinas: Unicamp, 2009.

10.12.09

Jaime Gil de Biedma: "No volveré a ser joven" / "Não voltarei a ser jovem": tradução de José Bento





No volveré a ser joven

Que la vida iba en serio
uno lo empieza a comprender más tarde
-- como todos los jóvenes, yo vine
a llevarme la vida por delante.

Dejar huella quería
y marcharme entre aplausos
envejecer, morir, eran tan sólo
las dimensiones del teatro.

Pero ha pasado el tiempo
y la verdad desagradable asoma:
envejecer, morir,
es el único argumento de la obra.



Não voltarei a ser jovem

Que é certo a vida passa
só se começa a compreender mais tarde
– como todos os jovens, decidi
levar a minha vida por diante.

Deixar marca eu queria
e partir entre aplausos
– envelhecer, morrer, eram somente
as dimensões do teatro.

Porém passou o tempo
e a verdade mais amarga assoma:
envelhecer, morrer,
é o argumento único da obra.


BIEDMA, Jaime Gil de. "Poemas póstumos". Antologia poética. Edição bilingue. Seleção e tradução de José Bento. Lisboa: Cotovia, 2003.

8.12.09

Daniel Maia-Pinto Rodrigues: "O meu avô acreditava em cinco coisas"




O meu avô acreditava em cinco coisas.
Eu só acredito em duas.



RODRIGUES, Daniel Maia-Pinto. "O meu avô acreditava em cinco coisas". De Malva 62, 2005. In: Poemas portugueses. Antologia da poesia portuguesa do século XIII ao século XXI. Seleção, organização, introdução e notas de Jorge Reis-Sá e Rui Lage. Porto Editora: 2009.

6.12.09

Inês Pedrosa: "Sexo oral"




Sexo oral


Primeiro a tua língua molha o meu
coração, num vagar de fera. Estendo
aurículas e ventrículos sobre a mesa, entre
os copos, que desaparecem. Não há mais
ninguém no bar cheio de gente. Abres-me agora
                                                           [os
pulmões, um para cada lado, e sopras. Respiras-
-me. O laser das tuas palavras rasga-me o lobo
frontal do cérebro. A tua boca abre-se e fecha-se,
fecha-se e abre-se, avançando
por dentro da minha cabeça. As minhas cidades
ruem como rios, correndo para o fundo dos teus
                                                            [olhos.
O tempo estilhaça-se no fogo
preso das nossas retinas. O empregado do bar
retira da mesa o nosso passado e arruma-o na
                                                            [vitrine,
ao lado dos exércitos de chumbo.
Entramos um no outro,
abrindo e fechando as pernas
das palavras, estremecendo no suor dos
olhos abraçados, fazendo sexo
com a lava incandescente dessa revolução
imprevista a que damos o nome de amor.




Inês Pedrosa
9 de julho de 2007

4.12.09

Safo: Fragmento 1




Safo, Fragmento 1

Afrodite imortal de trono multicor,
filha de Zeus, tecelã de intrigas, suplico-te:
não dobres a sofrimentos e angústias,
senhora, meu coração;

mas aproxima-te, se jamais no passado
ouvindo meu grito de longe
atendeste, e deixando o palácio dourado
do teu pai, vieste,

tendo atrelado o carro: trouxeram-te belos
pardais velozes sobre a terra escura,
e, turbilhonando as asas no ar
celeste,

logo chegaram; e tu, Bem-Aventurada,
com um sorriso no rosto imortal,
perguntaste por que sofro agora e por que
de novo te chamo,

e o que é que mais almeja
meu louco coração. "Quem, agora
convenço para o teu amor? Quem,
ó Safo, te faz mal?

Pois, se ela foge, logo perseguirá;
se recusa presentes, presentes oferecerá,
se não ama, logo amará,
mesmo sem querer."

Vem para mim também agora, livra-me
deste sofrimento atroz, realiza tudo o que meu
coração deseja realizar: sê de novo
minha aliada.







Poetarum Lesbiorum fragmenta. Lobel, E.; Page, D.L. (Org.). Oxford: Clarendon Press, 1968.